O eterno dilema das democracias
Algumas são mais ou menos óbvias, mesmo que seja preciso levar em atenção os seus limites. A primeira é o reforço das fronteiras externas de Schengen, com a melhoria do seu sistema de informações. Outras dizem respeito à “partilha de informações” entre os serviços secretos europeus e com os Estados Unidos. Por mais evidente que seja a sua necessidade, esta partilha esbarra numa mútua desconfiança difícil de superar. São instrumentos que já existem mas precisam de ser melhorados. Por exemplo, o chamado Registo dos Nomes dos Passageiros (PNR na sigla inglesa) nos voos entre a Europa e os Estados Unidos (e também o Canadá e a Austrália) que já está a funcionar há alguns anos, ainda não se aplica aos voos na Europa. A responsabilidade cabe ao Parlamento Europeu, que tem para aprovação desde 2011 uma lei nesse sentido, alegando que não salvaguarda o suficiente o direito à privacidade.
A questão politicamente mais delicada – a possibilidade de repor as fronteiras internas dos países do Espaço Schengen –, não constou na lista de prioridades de Cazeneuve e dos seus pares. Mas tem estado presente no debate europeu, nem sempre pelas melhores razões. Já hoje Tratado de Schengen abre essa possibilidade, mas apenas em casos excepcionais, com autorização de Bruxelas e um limite temporal de 15 dias. A banalização desta prática acabava por desvirtuar o seu objectivo. A França não a colocou na agenda. Mas o ministro do Interior espanhol, em declarações ao El País, defendeu-a como necessária, embora sem uma justificação cabal. O anterior Presidente francês Nicolas Sarkozy também chegou a defender uma maior facilidade para repor as fronteiras, embora por razões que pouco tinham a ver com segurança. Tratava-se de impedir os milhares de refugiados da Líbia, na altura da guerra contra Kadafi, que desembarcavam na Itália mas cujo destino era a França. Há uma linha ténue entre as medidas que visam impedir a entrada de jihadistas na Europa e as que visam o controle da entrada de imigrantes ilegais e de refugiados. O problema é hoje tanto mais sério quanto as guerras na Síria e no Iraque estão a atirar para a Europa um gigantesco número de refugiados, que têm os seus direitos garantidos pela Convenção de Genebra. Traçar fronteiras claras não é fácil mas é fundamental.
O debate sobre o equilíbrio entre a segurança e as liberdades cívicas nas democracias não é novo. Depois do 11 de Setembro, a grande questão foi saber até que ponto era necessário cercear as liberdades cívicas para garantir a segurança. Agora, como em 2001, o choque inicial tende a valorizar a segurança e é isso que esperam as opiniões públicas ocidentais. Foi o que aconteceu na Europa, depois de Nova Iorque, de Madrid e de Londres, com o reforço das leis antiterroristas, o aumento da segurança nos aeroportos, as câmaras de vídeo no Metro. Hoje, já nos habituámos a viver com esses incómodos. As liberdades sobreviveram bastante bem.
Esse equilíbrio pressupõe um outro debate sobre os preconceitos e as ideias feitas que muitas vezes estão subjacentes. Olivier Roy, o grande especialista francês do Islamismo, escreveu há dias que “há mais muçulmanos franceses a trabalhar nos servições de segurança do que para a Al Qaeda”. O académico francês insurge-se contra o facto de todos serem integrados na mesma suposta Comunidade muçulmana, que verdadeiramente não existe. “Na França, não há uma Comunidade muçulmana, há uma população muçulmana”. Como António Vitorino, que foi comissário europeu para os Assuntos Internos, lembrava recentemente, há mais de 5 milhões de franceses de origem muçulmana em França que vivem as suas vidas normalmente, e um pouco mais de mil que se deixam atrair pela jihade. As generalizações não são boas. Mas chamava também a atenção para este fenómeno novo (que já setinha visto nos atentados de Londres) que são os terroristas “homegrown” e que, por isso, levantam novas questões. Os terroristas de Paris nasceram na França, são franceses e utilizam as liberdades que esse estatuto lhes confere. Mas este não é um desafio que exija mudanças do Tratado de Schengen, diz o antigo comissário. O sistema já prevê a troca de informações que permite impedir de entrar suspeitos de actividade criminosa ou terroristas. A questão é saber se está a funcionar devidamente.
Citado pela Bloomberg, Jan Techau, director do Carnegie, estabelecia a mesma distinção, referindo-se aos atentados de Paris: “Não foi o 11 de Setembro porque foram cometidos por franceses e não por estrangeiros”. “Não podemos externalizar a ameaça, porque ela está cá dentro”. Não se trata, por isso, de uma “guerra” que ninguém invocou. As decisões são difíceis e não podem ser tomadas a quente. Mas o pior que poderia acontecer era deixar que a Frente Nacional (ou os seus congéneres europeus) se apropriasse da agenda de segurança europeia. Os europeus esperam que os seus governos lhes garantam a segurança. Mas também é necessário dizer-lhes que a democracia, enquanto regime aberto e tolerante, implica sempre um risco. Pode-se minimizá-lo, mas não se pode eliminá-lo sob pena de deixar de ser uma democracia.