Paris 11/1/2015, uma miragem de utopia
Líderes mundiais e muitos milhares de anónimos mostraram uma rara unidade sem iludir as diferenças.
Se no início de Janeiro alguém dissesse que mais de meia centena de líderes mundiais iriam desfilar em Paris, com pouca atenção aos protocolos, no meio de uma gigantesca manifestação popular, ninguém acreditaria. E, no entanto, um inominável crime fez com isso se tornasse possível em poucos dias, com muito pouco tempo de preparação mas uma vontade que (sem descurar as normas de segurança) afastou todos os obstáculos. Havendo um sentido comum na manifestação, a rejeição do terror e a defesa pública da liberdade contra os seus inimigos, um dos aspectos mais notáveis da marcha foi a não diluição das diferenças, que cada qual se orgulhou de exibir, desde as muitas bandeiras às vestes ou às siglas. Muçulmanos com dísticos dizendo “Não em meu nome” ou “Tem calma, sou muçulmano, não sou um terrorista”, outros empunhando cartazes com frases como “As religiões unidas contra o ódio”, “Vivamos todos em conjunto”, “Sou judeu, sou muçulmano, sou polícia, sou francês”. Ou simplesmente isto: “Sou humano”.
E, no entanto, estiveram em Paris, “sendo Charlie”, líderes de países onde jornalistas e bloggers são perseguidos, como assinalou a organização repórteres Sem Fronteiras (é o caso do Egipto, a Rússia, a Turquia ou os Emirados Árabes Unidos. E estiveram juntos, no que deveria ser um bom sinal mas decerto não passará de um episódio passageiro, Mahmoud Abbas e Benjamin Netanyahu, protagonistas máximos de um conflito que se arrasta há décadas sem solução, o que opõe Israel e a Palestina. E, não em Paris, mas em Beaucaire, no sul da França, Marine Le Pen “foi” também Charlie contra o “terrorismo islamista”, contando tirar dividendos políticos a prazo do medo instalado (Manuel Valls cometeu o erro de declarar que a Frente Nacional não seria bem-vinda à manifestação, oferecendo de bandeja a Marine Le Pen o papel de “rejeitada” da unidade francesa). Contudo, nada disto toldou o essencial: a demonstração, inequívoca, de uma vontade de paz e liberdade contra o terrorismo e todo o tipo de xenofobias. Não apenas contra as que hostilizam judeus e os muçulmanos, mas contra o desrespeito pelas diferenças.
Dito isto, e cumprida de forma miraculosamente segura a manifestação onde França serviu de palco a legítimos desejos do mundo, há outras páginas que é necessário virar. A par do combate, que não poderá abrandar, ao racismo e à xenofobia, é preciso deixar de olhar para as contínuas viagens dos jihadistas a campos de treino ou a cenários de guerra como se se tratassem de simples viagens de estudantes em fim de curso, com os seus episódios rocambolescos e anedotas juvenis. É preciso, sem cair numa paranóia securitária indesejável, estar mais atento aos sinais de perigo de modo a poupar vidas, as dos potenciais alvos e até as dos presumíveis atacantes. Com duas cimeiras contra o terrorismo no horizonte próximo, a primeira a 12 de Fevereiro na União Europeia e a segunda seis dias depois nos Estados Unidos, é importante que haja respostas para o que agora sucedeu: combatendo o medo, a insegurança e pondo acima de tudo a liberdade.