“Depois disto, se Le Pen for eleita”, Bellaich Rachel vai viver para Israel

Vinte mortos em três dias, incluindo os três atacantes. No bairro da mercearia kosher atacada na sexta-feira, onde vivem muitos judeus mas também muçulmanos e emigrantes recentes de todas as partes, é difícil controlar a raiva.

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”O que aconteceu nestes dias é horrível para todos nós, por igual”, diz Noah, um judeu francês de 17 anos KENZO TRIBOUILLARD/AFP

Sexta-feira, o bairro passou toda a tarde e parte da noite em estado de sítio. Coulibaly entrou perto das 14h na mercearia kosher (que cumpre as regras do judaísmo), matou quatro pessoas e manteve outras 15 reféns até à intervenção da polícia, pelas 17h20. Unidades de contraterrorismo, polícia antimotim, ambulâncias, carros de bombeiros, dezenas e dezenas, iam chegando e fazendo crescer a zona de segurança à medida que o tempo passava, retirando sempre que podiam funcionários e clientes encerrados nas lojas vizinhas.

Sábado, o perímetro policial já estava confinado ao quarteirão da mercearia, na avenida Galliéni, mas o dia não foi de normalidade. Muitas lojas permaneceram encerradas e, enquanto vizinhos e parisienses vindos de outros bairros chegavam para acender velas e deixar ramos de flores encostados às barreiras policiais, alguns habitantes judeus não escondiam a sua cólera. “Já sei que o que eu digo nunca é citado. Mas não aguento, não aguento”, diz Abihssir, 48 anos. “Os árabes, é isso, estou farta. Os jornalistas preferem falar com mulheres de véu, eu sei. Mas isto é o que eu penso.”

Guadj Carole, uma vizinha de 36 anos, tenta acalmar Abihssir, mas não é tarefa fácil. “Eles eram provocadores, não mereciam morrer, mas eram provocadores. E nós? Nós não fazemos mal a ninguém”, continua Abihssir. “Eles” são os jornalistas e colaboradores do Charlie Hebdo, oito dos 12 mortos do ataque de quarta-feira contra a redacção do jornal satírico. “Eu não era radical, mas agora…”, diz Abihssir, antes de enumerar ataques contra a comunidade judaica.

Fala de Toulouse, onde em 2012 Mohamed Merah foi morto pela polícia depois de assassinar militares e atacar uma escola judaica, matando três crianças e um professor. Lembra Dieudonné, o humorista francês que em 2014 viu espectáculos cancelados por usar linguagem e conceitos anti-semitas. “Eles gritam ‘morte aos judeus’”, continua Abihssir, em referência ao slogan ouvido nalgumas manifestações contra violência israelita na Faixa de Gaza. “E Créteil? Aquele pobre casal, refém.” Foi a 1 de Dezembro, um casal judeu alvo de um assalto, a mulher violada, por agressores “que partiram da ideia de que por serem judeu tinham dinheiro”, disse na altura a procuradoria.

“Ninguém quis saber. Os judeus não atacam ninguém, ninguém. Somos atacados e ninguém quer saber. Ele gritou Alá e rezou”, grita ainda Abihssir, repetindo os testemunhos dos reféns da mercearia. “Ela tem razão”, diz Guadj. “Mas aqui sempre vivemos todos em paz uns com os outros. Nesta zona vivem judeus, muçulmanos, negros, portugueses, gente que veio de todas as partes e continua a vir”, afirma.

Dois jovens de 20 anos
Guadj vive na rua que faz esquina com a pastelaria Charles Traiteur, encostada à mercearia. “Só consegui voltar a casa às onze da noite”, conta. “A minha mãe ficou fechada. Fui buscar o meu filho de oito anos à escola e depois estive à espera que me deixassem passar para ir buscar o mais pequeno à creche.” A partir das 16h, a polícia começou a deixar os pais passarem, um a um, para irem buscar as crianças ao infantário dois quarteirões atrás da mercearia.

Ao contrário de outras pessoas, que decidiram trazer os filhos até aqui, para lhes apontar o local do ataque e tentar explicar o que aconteceu, Guadj, que tem dificuldade em controlar as lágrimas, diz que nem consegue pensar em deixar os seus filhos sair de casa. “Eu não sei se isto já acabou, ninguém sabe. Eu fiz ali compras de manhã, antes de ir pôr os miúdos à escola. Podia ter sido eu, a minha mãe”, continua. “Ele matou dois jovens de 20 anos. Como é que é possível?”

Os nomes das vítimas já são conhecidos: Yoav Hattab, de origem tunisina, 21 anos; Yohan Choen, 22 anos, que trabalhava na loja; Philippe Braham, que teria à volta de 40 anos; e François-Michel Saada, de 60.

Três dias sem fim
As autoridades francesas confirmam que o atacante da mercearia foi identificado como o assassino de uma polícia municipal, na quinta-feira, e que estava ligado aos irmãos Cherif e Saïd Kouachi, mortos numa operação lançada minutos antes da ofensiva à mercearia, no Nordeste de Paris, e que a polícia acredita terem estado por trás do atentado contra a redacção do Charlie Hebdo.

Veronique e Manuel, um casal, 35 e 37 anos, acabam de chegar para acender duas velas e deixam-se ficar, sem sequer ouvir as discussões em redor, ele de rosto fechado, braços cruzados, ela de olhos em lágrimas.

“É completamente irreal. Tenho a impressão de estar a viver um filme e só queria acordar”, diz Veronique. “São pais e filhos, levantaram-se, saíram de casa e não voltaram. Damo-nos conta até que ponto a vida é frágil”, afirma, com palavras que custam a sair, o jovem. “Nem acredito que tudo isto se passou em três dias. Parece-me que dura há um mês. Foram três dias sem fim. A dor está cá toda. A tristeza vai demorar a passar, vai-se dissipar, de certeza, mas muito lentamente”, diz Veronique.

Há mais judeus em fúria, incapazes de controlar as emoções. “O Governo não quer saber de nós. Estamos nas mãos de Deus. Eles [os suspeitos] tinham sido detidos em 2003 e nem estavam vigiados. Isto foi um ataque a Israel, a Israel”, afirma Bellaich Rachel, 68 anos. “Já chega. O que é que nós temos a ver com o Charlie Hebdo? Isto é uma guerra de fanáticos contra nós.”

“Se isto continuar eu vou para Israel”, garante Bellaich, que conta que o pai foi fuzilado em 1944 pelos nazis. “Há muita gente a pensar voltar para Israel. Eu não aguento mais”.

Cada vez menos
Jocely, 52 anos, está encostada às barreiras metálicas onde há cada vez mais flores. “É assustador. Nunca pensei que uma coisa assim, tão atroz, pudesse acontecer aqui. Quem ataca inocentes assim não tem religião, são bárbaros”, diz. “Dizer ‘eu sou Charlie’, ‘eu sou judeu’, isso não muda nada. Somos todos pessoas. Toda a gente tem direito a ser feliz e viver”, afirma. Mas também Jocely conhece judeus assustados e decididos a partir.

A comunidade judaica francesa é a maior da Europa, com 350 a 500 mil pessoas, mas não tem parado de diminuir. “Já nem somos 300 mil”, diz Bellaich. “Sobram 100 mil”, tinha dito antes Abihssir. O que se sabe é que têm partido muitos. Em 2014, o número duplicou em relação ao ano anterior: com 7000 pessoas, a França tornou-se no mais país com mais judeus a pedir residência em Israel. “Só nos falta Marine Le Pen na presidência. Depois disto, se ela foi eleita, eu vou mesmo para Israel. Lá não corro mais riscos do que aqui”, afirma Bellaich.

A líder da Frente Nacional, a grande formação da extrema-direita francesa, disse o ano passado que o seu partido é “o melhor escudo” contra os ataques aos judeus franceses, mas o fundador da Frente, o seu pai, Jean-Marie Le Pen, chegou a ser condenado por incitação racial e anti-semitismo.

Noah, de 17 anos, e Milan, de 18, são judeus franceses e nem pensam em sair de Paris. “Eu tenho amigos muçulmanos, um deles trabalha ali, na mercearia, ainda nem sei se está bem. Nenhum muçulmano praticante que eu conheça defende o assassínio de ninguém. O que aconteceu nestes dias é horrível para todos nós, por igual”, diz Noah, que recorda o pânico do tio, quando lhe telefonou a contar o que estava a acontecer. “Ele tinha saído da loja às 11h30.”

A menos de um metro, dois homens discutem sobre a Palestina. “Isto não tem nada a ver”, diz Milan. “Só espero que as pessoas percebam que nos devemos unir. Não podemos virar-nos uns contra os outros. Temos de continuar a viver em paz.”

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