Contabilista do GES "é um gestor credível", que "trazia desafios para cima da mesa"
João Rodrigues Pena, ex-CEO da Rioforte, diz que nunca associou Machado da Cruz à orientação da Espírito Santo Internacional.
Nessa altura, em 2012, o CEO do BES comunicou ao Banco de Portugal (BdP) a titularidade de 8,5 milhões de euros em verbas que não havia declarado à Autoridade Tributária, tendo beneficiado de uma taxa fiscal de 7,5%, bastante abaixo do escalão normal que esse tipo de rendimentos obrigaria a pagar (52%).
O problema, mais do que as consequências "reputacionais" que decorrem da existência de verbas não declaradas previamente ao fisco – que o ex-banqueiro justifica com o seu passado fora do país – é a suspeita que recai sobre uma verba específica, os cerca de 14 milhões de euros que Salgado terá recebido de um construtor, José Guilherme, a título de doação ou, como Salgado referiu, uma "liberalidade", ou seja, uma prenda.
Esse tipo de "liberalidade" tornaria duvidosa a idoneidade do banqueiro, e esse tem sido o ponto mais discutido pelos deputados. Afinal, como vários parlamentares têm constatado, bastaria o conhecimento desta situação para que o BdP, chefiado por Carlos Costa, levantasse dúvidas sobre a aptidão de Salgado para gerir os destinos do BES e do Grupo Espírito Santo (GES).
Mas Salgado não foi o único dirigente do GES a recorrer ao RERT. Por isso, os deputados do PCP Miguel Tiago e Bruno Dias requereram, em Dezembro passado, o acesso aos processos de regularização da situação fiscal destes responsáveis, documentação que está à guarda do BdP.
Carlos Costa veio, agora, recusar o pedido, alegando que a informação está protegida por sigilo. Os deputados, que já obtiveram de um dos interessados, José Manuel Espírito Santo, a autorização para o acesso a esses dados, decidiram nesta terça-feira, numa reunião dos coordenadores dos vários grupos parlamentares, à porta fechada, que irão solicitar individualmente aos responsáveis do GES o levantamento do sigilo fiscal para que possam conhecer os valores e as categorias dos rendimentos regularizados ao abrigo do RERT.
Ainda na manhã desta terça-feira, no decurso da audição ao antigo Revisor Oficial de Contas de várias empresas do GES, a questão do sigilo fiscal foi levantada. O deputado Miguel Tiago criticou a duplicidade de critérios do Estado, que promove o levantamento do sigilo fiscal a quem beneficia do abono de família ou do Rendimento Social de Inserção, mas protege com sigilo os elementos fiscais dos responsáveis do GES.
Ex-CEO da Rioforte ouvido pelo Parlamento
"Se me sinto enganado? Sinto-me muito frustrado. A palavra 'enganado' pode ser interpretada como alguém a quem não foi dita toda a verdade. E ainda não posso tirar essa conclusão. É uma reflexão que deixo para mais tarde", observou já esta tarde João Rodrigues Pena, ex-CEO da Rioforte, a holding não financeira, na comissão de inquérito ao colapso do GES/BES, onde está neste momento a prestar esclarecimentos.
A presença do ex-CEO no Parlamento ocorre no mesmo dia que a PT é alvo de buscas a propósito do polémico empréstimo de 897 milhões de euros à Rioforte. "Não tive qualquer interacção com a Portugal Telecom”, no que respeita ao empréstimo concedido à Rioforte. Tendo essa operação sido articulada no BES, na direcção financeira liderada por Amílcar Morais Pires", declara, salientando que qualquer "tomador" de um empréstimo obrigacionista daquele montante o faz de forma consciente, tendo a decisão sido tomada pela gestão da PT.
"A PT não é um investidor qualquer. É um investidor qualificado. Tem consciência das suas decisões. E recordo que o crédito foi renovado em Abril, o que não teria sido feito" se as condições não fossem "as normais", disse.
Na data da renovação da dívida de 897 milhões da Rioforte à PT, o que ocorreu em Abril deste ano, os órgãos sociais da empresa de telecomunicações já dispunham de informação sobre a situação da holding, assegura João Pena, pois nessa altura já tinha sido publicado o relatório de auditoria da Rioforte, realizado pela Ernst & Young com data de Março de 2014. "Houve notícias na imprensa", lembra o ex-CEO, que evidencia que o "relatório estava disponível a qualquer investidor que o pedisse. A 15 de Abril, seguramente o estava. E, em Fevereiro, qualquer investidor que tivesse interesse poderia ter contactado a administração da Rioforte e não o fez."
Em resposta a questões colocadas por Ana Paula Vitorino, Pena evocou ainda que a partir de Abril, a holding não financeira passou a ser pressionada para reforçar o apoio à ESI. A deputada do PS perguntou ainda a João Pena se concordava com Manuel Fernando Espírito Santo (líder da área não financeira do GES), que nesta comissão declarou que "era ele [Pena] que mandava" na Rioforte, tendo este esclarecido que era verdade, mas apenas ao "nível da gestão corrente".
O ex-CEO revela que assim que tomou conhecimento de que as contas da ESI estavam falsificadas teve uma reacção enérgica e que a partir de Maio a dívida à ESI foi anulada.
"O programa de reestruturação do GES, as implicações sobre a Rioforte e a forma como o processo se havia desenrolado levaram cada membro do conselho de administração a repensar a sua permanência em funções", evoca João Pena. E salienta que, entre 31 de Março e 11 de Abril, vários gestores acabaram por apresentar "a demissão em conjunto". Também ele chegou a "transmitir essa intenção", mas acabou por se manter em funções após "uma reflexão longa para a qual pesaram" vários factores. Entre eles "a convicção de que os problemas financeiros da ESI haviam sido resolvidos com a operação de compra da ESFG pela Rioforte, dando condições para poder acreditar ser possível prosseguir o plano de refinanciamento".
"Por sentido de dever, consciência pessoal e profissional e por coerência com o facto de ter aceite e assinado a operação de compra da ESFG, optei por permanecer em funções", declara.
Para responder às recomendações do BdP de maior transparência na cascata accionista do GES, o grupo avançou no primeiro trimestre de 2014 com medidas para clarificar os fluxos de financiamento entre holdings e sub-holdings, o que se destinava, na prática, a liquidar a ESI (tóxica) e a transferir progressivamente as suas emissões de papel comercial (dívida) para a Rioforte. Foi esta medida que afundou a Rioforte que João Pena considera "ter ficado à partida condenada".
"O programa previa a desactivação progressiva da ESI e a simplificação societária do GES, passando a Rioforte a assumir o papel de holding de topo do GES, concentrando em si a participação da ESI na ESFG (49,6%) através da aquisição de 100% do capital da ES Irmãos", explica.
Para Pena, "o primeiro sinal de preocupação da gestão executiva da Rioforte com a situação da ESI surge em Setembro, quando a imprensa [PÚBLICO, 18 de Setembro de 2013] noticia a elevada exposição a empresas do GES de fundos colocados pela área financeira e a necessidade da sua redução, com destaque para o fundo ES Liquidez gerido pela ESAF apresentar uma exposição de 897 milhões de euros à ESI". O segundo sinal surgiu "com o processo ETRICC 2", cujo objectivo era o "de avaliar a qualidade da exposição financeira da banca ao GES – ramo não-financeiro", incluindo ESI e suas participadas não financeiras.
Em resposta ao deputado do PCP Bruno Dias, o gestor defendeu que, no período agudo da crise GES/BES, já em 2014, "houve momentos em que a velocidade da tomada de decisão" inviabilizou que todos os procedimentos "seguissem os princípios de bom governo".
Antes, o ex-CEO mostrara-se "convicto", com a informação de que agora dispõe e que "é em larga medida pública, de que o colapso do GES deriva de práticas de gestão deficientes e de uma situação financeira grave que se prolongava há anos". Para João Pena, os acontecimentos de Setembro de 2013 a Agosto de 2014 revelaram-se, "infelizmente, um corolário inevitável".
A deputada Ana Paula Vitorino perguntou a João Pena se o BdP acompanhou a reestruturação do GES, logo a relação com a Rioforte, e este esclareceu: "A resposta é sim. Acompanhou. Mas as relações entre o Banco de Portugal e o GES eram realizadas pelo BES."
Pena não questionou contabilista sobre contas da ESI
Sobre a venda da Escom e inquirido pela deputada do CDS Teresa Anjinho, João Pena garantiu que não esteve associado ao negócio polémico de venda da Escom a um investidor angolano, que seria a Sonangol, mas que foi Álvaro Sobrinho. Esta operação, que deu origem a um sinal de 85 milhões de dólares (parte não chegou aos cofres do vendedor), efectuou-se no final de 2010, quando a empresa com actividade em Angola já revelava prejuízos elevados.
Pena diz que nunca soube a razão pela qual a Escom acabou por não ser vendida, que sempre foi informado de que havia perspectivas fortes para que o negócio se realizasse e que o preço que lhe foi referido foi 500 milhões de dólares.
Instado pelo deputado do PCP Bruno Dias a esclarecer qual o papel do contabilista do GES, Machado da Cruz, na Rioforte, onde desde 2011 exercia funções de administrador, o ex-CEO contou que foi Ricardo Salgado e Manuel Fernando Espírito Santo que o propuseram para integrar os órgãos sociais da holding. João Pena justificou ainda que não questionou Machado da Cruz sobre as contas da ESI, dado que o conhecia como gestor de imóveis no BES Miami e de activos do BES Panamá, mas evidencia o seu contributo como contabilista do GES.
À pergunta sobre que papel desempenhava Machado da Cruz na Rioforte, João Pena explicou: "É o de um gestor credível, experiente, que conhecia o grupo, e trazia um conjunto de desafios para cima da mesa do Conselho de Administração." E, adianta, "nada fazia dele um representante especial do accionista", dizendo que nunca associou o contabilista à orientação da Espírito Santo Internacional. A ligação ao accionista "era feita por Manuel Espirito Santo Silva", que já esteve no Parlamento a depor nesta comissão de inquérito.
A audição de João Rodrigues Pena terminou pouco depois das 20h30. Na próxima quinta-feira será a vez de Machado da Cruz prestar esclarecimentos na comissão de inquérito.