A loucura do coleccionador
O coleccionador é um investidor que compra, mas não consegue vender. O coleccionador tem prazer na colecção, mas também insatisfação. A história de José Ferrão, um coleccionador de livros sobre cavalos.
José Ferrão tem cerca de cinco mil volumes na sua biblioteca, perto de dois mil só sobre cavalos. É dos poucos coleccionadores em Portugal sobre este tema. Há livros sobre veterinária de cavalos, sobre atrelagem, sobre ferragem, sobre cavalos de toureio, sobre cavalos e arte, sobre equitação e ensino de equitação, sobre criadores de cavalos.
A biblioteca de José Ferrão fica no primeiro andar de uma casa antiga no Porto. É uma sala grande e fria, tornada confortável apenas pelo tom dos livros antigos. José Ferrão tem o casaco pelas costas, como se fosse num grande passeio, e diz que poderia estar 15 dias a passear dentro da biblioteca, a mostrar livros apaixonantes, porque a grande loucura do coleccionador é encontrar nos livros pormenores extraordinários, estranhas coincidências com o mundo fora dos livros, histórias surpreendentes que levam a outros livros.
Mostra volumes do século XVI e do século XVII, clássicos deste tipo de literatura, quer estrangeiros, quer portugueses. Diz que, apesar de não haver muitos livros portugueses sobre cavalos, os que há são muito bons. Levanta-se, vai até uma das prateleiras da estante, regressa e mostra aquele que considera ser talvez o melhor livro do género em português: Luz da Liberal, e Nobre Arte da Cavallaria, Oferecida ao Senhor D. João, Principe do Brazil, de Manoel Castro de Andrade, “Picador da Picaria Real de Sua Majestade Fidelissima”, de 1790. É um livro com gravuras de nitidez fotográfica e que pode custar cerca de cinco mil euros, se estiver completo com todas as gravuras.
Mesmo para quem não entenda do assunto, é fascinante ter nas mãos, por exemplo, um manuscrito do século XVIII de um homem que foi a Espanha visitar coudelarias para escolher cavalos para a Coudelaria de Alter-Real, em Alter do Chão, no Alentejo, fundada por D. João V em 1748, o lugar onde foi criada a raça de cavalo lusitano alter-real. Ou olhar para um relatório, de dois séculos depois, descrevendo a forma como os militares estavam a gerir a Coudelaria Alter-Real, em 1940, um exemplar especificamente endereçado a António de Oliveira Salazar.
Um dos livros que escolhe para mostrar tem como título Descripção Analytica da Execução da Real Estátua Equestre do Senhor Rei Fidelissimo D. José I e é uma explicação do escultor Joaquim Machado de Castro sobre os estudos e preparativos que fez para criar a estátua que está no centro da Praça do Comércio, em Lisboa, e que foi inaugurada 20 anos depois do grande terramoto de Lisboa. Uma das decisões que Machado de Castro teve de tomar, para representar D. José I a montar, foi escolher um cavalo. Não um cavalo qualquer, mas o cavalo ideal. No livro que José Ferrão mostra, há tabelas com medidas e descrições de vários cavalos, organizadas pelos seus nomes – Arisco, Gentil, Belém – e gravuras com esquemas complexos explicando os critérios através dos quais se encontra o cavalo ideal.
José Ferrão está sentado numa poltrona da biblioteca. De um lado da sala tem todos os livros sobre cavalos. Do outro lado tem os volumes sobre agricultura, vinicultura, botânica, jardins e tudo o que lhe foi interessando durante toda uma vida, em que trabalhou como engenheiro agrónomo e enólogo.
Um dia, à sua biblioteca ainda juntará a biblioteca do pai sobre arte e antiguidades. Aponta para os quatro volumes de Mobiliário Português, que o pai, Bernardo Ferrão, engenheiro civil, escreveu no final da vida, e que diz que é ainda considerado uma bíblia para os coleccionadores e negociantes de antiguidades.
À saída da biblioteca está uma pequena estátua: é do mesmo Machado de Castro que fez a estátua equestre de D. José I. É um estudo para um anjo. Foi das primeiras coisas que o seu pai comprou.
Família de coleccionadores
“Ainda me lembro de o meu pai começar a comprar e a fazer a sua colecção. Em casa, contava-nos como é que tinha procurado e encontrado as peças, quanto tinham custado. Todos os dias, depois do trabalho, lá ia ele. Tinha um grupo de coleccionadores. Juntavam-se num antiquário a falar do que iam descobrindo. Isso também se passa comigo com outros coleccionadores de livros. Creio que é assim com todos os coleccionadores. Sou de uma família em que houve sempre a ideia de coleccionar. O meu avô foi coleccionador de arte e de mobiliário. O meu pai era coleccionador de antiguidades. Um tio meu tinha uma colecção de literatura, sobretudo sobre Fernando Pessoa. Outro tio tinha uma boa colecção de livros de cavalos. Eu costumava ir passar férias com ele e achava graça – gostava de ficar a ver os livros dele. Comecei a comprar livros aos 16 anos. O primeiro que comprei era sobre cavalos – ainda o tenho, ainda no outro dia me passou pelas mãos. Quando esse meu tio morreu, eu herdei a sua biblioteca e, no fundo, a biblioteca dele foi a base da minha colecção. Eu tinha uns 27 ou 28 anos então. Era uma boa biblioteca, mas estava muito incompleta. Fui acrescentando. Dentro da área dos cavalos, queria ter o maior número possível de assuntos. E, depois, isto é um mundo – começando, quer-se saber sempre mais. Fiz sempre isto, primeiro, com a ideia de ter uma colecção; segundo, como um investimento: um investimento com perigos, como todas as colecções, mas um investimento que dá prazer. E, terceiro, porque gosto: gosto de cavalos.
Bibliografia
José Ferrão vive nesta casa com a mulher e os três filhos. O filho mais velho é o que parece ter herdado a veia de coleccionador e de bibliófilo e começou já a sua própria biblioteca, orientada para literatura.
Quando não está nesta casa, José Ferrão está na zona da Bairrada, onde tem uma propriedade. É aí que produz o seu próprio espumante e foi aí que, durante os anos em que os filhos tinham gosto por montar, teve cavalos.
Saindo da biblioteca, os livros de José Ferrão espalham-se pelo corredor e descem pelas escadas. Aqui tem colecções inteiras de revistas, do Porto a Inglaterra, e uma colecção que preza muito e que é bastante valiosa, dos livros da Casa Literária do Arco do Cego, uma editora do século XVIII, que editava livros especializados em agricultura, sobretudo relacionados com o Brasil.
Os livros parecem indicar um caminho a seguir até ao escritório no rés-do-chão da casa, que está cheio de livros, mas ao qual não chama biblioteca. É aqui que tem uma parte importante de qualquer colecção de qualquer bibliófilo: as bibliografias. Tem-nas de vários países, em várias línguas. É aqui que os livros entram e saem, enquanto ele próprio empreende aquela que talvez venha a ser a sua tarefa mais impressionante: uma bibliografia dos livros sobre cavalos portugueses, com as descrições o mais completas possíveis. Pode vir a ocupar-lhe o resto da vida.
Porque lhe vai faltando o espaço, porque a casa cada vez vai ficando mais pequena, vai comprando menos. Mas um coleccionador nunca deixa de coleccionar e as compras agora são gestos de teimosia. Às vezes, aparece-lhe um último volume de uma colecção, um fascículo de um periódico que estava incompleto, algo que procurou durante muitos anos. Já tem comprado na Internet, por preços quase irrisórios, livros para ele muito importantes, porque o destino de uma biblioteca é completar-se. E o do coleccionador estar sempre insatisfeito.
Princípio, meio e fim
“Ao fim do dia, uma pessoa chega do trabalho, senta-se e lê. São os próprios livros que nos ensinam a comprar outros livros. Abrimos um livro e encontramos a descrição de um outro. É importante ter muita bibliografia. Uma bibliografia é uma coisa louca. Há uma bibliografia escrita por um general francês que esteve toda a vida a fazer aquilo. Morreu com 70 e tal anos. Esteve 50 anos a escrever aquilo. Mas tem tudo: é uma bíblia. Há um ano e tal que comecei a escrever uma bibliografia hípica portuguesa e vou em 350 fichas. Ainda só vou nos livros que tenho em casa. É uma loucura de trabalho. Mas o coleccionador é uma pessoa louca. Começa-se a colecção, depois começa-se a estudar e depois começa-se a ter a aspiração de ter. Durante anos, ia todas as semanas aos alfarrabistas aqui no Porto e todos os meses aos alfarrabistas de Lisboa. Sempre que viajava para fora do país, ia aos alfarrabistas estrangeiros. Ainda recebo os catálogos de negociantes de França e de Inglaterra, que são catálogos muito detalhados e nos quais se pode ter confiança. Quando havia dinheiro, comprava. Muitas vezes, comprei com algum sacrifício. Prometi a mim próprio que ia deixar de comprar, mas é impossível. Agora preocupa-me um bocado o que vai acontecer à minha biblioteca. Não gostava que se dividisse. A minha biblioteca tem uma lógica, tem princípio, meio e fim. Sempre pensei que um dia teria que a vender, se os meus filhos não se interessassem por ela, mas não sei se serei capaz.
Segunda-feira: a biblioteca particular de Jorge Meireles.