Uma biblioteca para flanar em Lisboa
Por causa da biblioteca João Pimentel e Carmo Gregório começaram uma livraria. Por causa da livraria foram modificando a biblioteca. Em ambas, a vontade de saber sobre a vida das pessoas na cidade.
João:
Abrimos a livraria porque chegámos à conclusão de que gastávamos o dinheiro todo que tínhamos em livros e ter a livraria era uma forma de poder continuar a comprar.
Carmo:
Uma vez tinha dito ao João que aqui, ao lado de casa, ficava bem uma coisa sobre Lisboa e depois pensámos: porque não nós? Isto foi no final de Novembro, abrimos em Março [de 2007]. Fizemos pesquisa para ver se havia suficientes livros sobre Lisboa no mercado para justificar uma livraria.
João: Antes da livraria, a Carmo tinha inventado um sistema para resolver o problema que tínhamos em casa de falta de espaço para os livros.Carmo: É uma caixa que agora está na cozinha com jornais. Estava no corredor, à saída de casa. Púnhamos lá os livros cuja probabilidade de voltarmos a ler era zero vírgula qualquer coisa. E quando as pessoas que nos visitavam saíam, dizíamos que procurassem na caixa a ver se havia algum livro que lhes interessasse e quisessem levar.João: A Carmo na altura até criou um slogan...Carmo: “Um livro depois de lido deve ser oferecido”.Da livraria à biblioteca
A livraria Fabula Urbis fica no centro de uma bifurcação, quem sobe a rua do eléctrico 28, passando a Sé, no sentido das Portas do Sol. Parece ficar na intersecção de uma cruz, entre as ruas que sobem para o castelo e as que descem para o rio, um ponto que apetece logo assinalar no mapa da cidade.
Por esta zona, se fazia a vida em Olisipo, a Lisboa romana, os templos espalhando-se até à Baixa, o teatro romano logo ali na Rua da Saudade, onde viria a nascer José Rodrigues Miguéis, e onde também viveriam Ary dos Santos e Alexandre O’Neill, todos eles importantes na literatura de Lisboa.
Depois, fizeram-se as igrejas, quase se atropelando umas às outras na dúzia de ruas entre as Portas do Sol e a Baixa. No lugar onde está o prédio da Fabula Urbis havia uma igreja, ali mesmo nas traseiras da Sé. Depois, o terramoto transformou a cidade e, ou porque algumas igrejas ficaram destruídas ou porque havia menos população para as frequentar, o número de igrejas diminuiu. Os livros – ou o conhecimento, no sentido humanista – nunca chegaram a ser religião nem a ter tanto fervor.
Antes da livraria, no final do século XX, início do século XXI, houve aqui uma marcenaria, que, como muitos pequenos negócios tradicionais, fechou. Quando decidiram alugar o espaço, este ainda tinha as máquinas da oficina.
É raro, quase estranho, ver uma livraria, entre as lojas gourmet e de souvenirs que se multiplicaram para os turistas. É a única livraria na zona da Sé/Castelo, abrindo quando as livrarias na Baixa estavam prestes a começar a fechar. Vendem livros em várias línguas estrangeiras e especializaram-se em livros sobre Lisboa. No espaço do primeiro andar, organizam comunidades de leitores, cursos, concertos. Fazem pequenas edições. De vez em quando, entra-se na Fabula Urbis e ouve-se o piano do primeiro andar, tocado por viajantes ou expatriados que vagueiam por Lisboa e vão ali praticar.
João Pimentel e Carmo Gregório vivem mesmo ao lado. A entrada da casa parece um armazém e é uma espécie de continuação da livraria, onde têm, por exemplo, os livros mais raros que não estão expostos para não serem muito manuseados.
Depois, começa a sua biblioteca particular, que existiu antes e existirá depois da livraria se esta não sobreviver, e espalha-se por todas as divisões da casa, dando a volta pela sala, cozinha, subindo para o andar superior dos quartos.
Ambos trabalham. De dia, é o João que costuma estar na livraria. Ao fim da tarde, a Carmo substitui-o e ele sai para ir dar aulas de História a adultos. Todo o tempo livre, incluindo os fins-de-semana, são dedicados à livraria e aos livros. Com as tarefas de organizar os livros para vender, sobra-lhes pouco tempo para cuidarem da sua biblioteca particular, por exemplo, para a catalogarem. Pensam que têm, entre os dois – quando se juntaram, juntaram as bibliotecas – cerca de 4 mil volumes. Às vezes desfazem-se de alguns livros, para terem outros. Têm aqueles que cabem e que vão sendo mais importantes para eles a cada momento.
Conversámos à noite, depois de fecharem a livraria às 20h, e de jantarem como muitas vezes, num restaurante do bairro. Falar sobre livros é quase tão bom como lê-los e a noite foi longa.
Uma âncora
Carmo:
Quando fui directora de uma escola, convidei várias vezes o [pensador] Agostinho da Silva a ir falar com os alunos. E lembro-me de uma vez ele dizer que dava os livros, não os guardava porque ficaria preso. Dizia que se não tivesse livros estava sempre pronto a partir. Realmente, os livros amarram-nos.
João:
São uma grande âncora. E um grande lastro. Só de pensar em mudar de casa com estes livros todos... Mas, como dizia um filósofo, se tivermos uma horta e uma biblioteca temos tudo o que precisamos.Carmos:
Era o meu sonho...
João:
Livros para ler toda a vida e uma horta para as sopas para nos alimentarmos.Carmo:
Mas também não se saía de lá.
João:
Mas não seria preciso sair. Os livros levam-nos para qualquer lado. O Maquiavel tem um texto muito interessante – o Maquiavel não era nada maquiavélico como pensam – em que diz qualquer coisa como: “quando chego a casa visto-me, porque vou encontrar-me com os mais ilustres”... Ia encontrar-se com os grandes autores. Como algumas pessoas se vestiam para ir ao teatro, o Maquiavel vestia-se para ler.
Todas as vidas da cidade
Se vários lugares saem da biblioteca, outros vão dar aqui. Dá ideia de que a biblioteca que começaram há muitos anos, talvez desde o momento em que começaram a ler, seria diferente se não tivessem vindo parar ao centro histórico de Lisboa, o centro nevrálgico onde sempre se mediu o pulso aos costumes da cidade.
João tem um enorme colecção de cancioneiros e livros de música (tem também uma impressionante colecção de guitarras), Carmo tem muitos livros sobre educação e sobre economia doméstica, sobretudo do período do Estado Novo, mas é Lisboa que emerge desta biblioteca. Não os palácios, as igrejas, os monumentos, os reis e políticos, mas as pessoas que fazem a cidade. Quando lhes aparece um livro que ainda não conheciam sobre Lisboa, se conseguirem só um exemplar, a regra é que fica na biblioteca particular e não na livraria.
João tira da prateleira onde tem a colecção sobre teatro e actores – uma colecção que começou por influência do pai, que quis ser actor – um livro-álbum de fotografias sobre Augusto Rosa, o actor que dá nome a rua onde vivem. Sobre a mesa da sala vão colocando clássicos de olisipografia ou registos de taxas de impostos ou de regras de vários ofícios de Lisboa. Têm livros sobre feiras e divertimentos, livros sobre a vida das mulheres na cidade. Aqui cabe todo o espectro da vida das pessoas numa cidade ao longo de várias épocas. É uma curiosidade que não é possível esgotar-se.
João conta como encontrou um livro do início do século XX que o deixou contente apenas por uma breve descrição de um cheiro da cidade daquele tempo: a avenca e o limão num quiosque de capilé. Mostra um livro do século XIX, inicialmente publicado como folhetim por um autor anónimo, O Piolho Viajante: Divididas as Viagens em Mil e Huma Carapuças, editado em Lisboa entre 1803 e 1805, que nunca se cansa de reler pela forma, como através de um piolho narrador que vai saltando de cabeça em cabeça, se descobrem as personagens-tipo da sociedade daquele tempo, do ferreiro ao médico, passando pelo mendigo.No capítulo Carapuça IX, fala da vida de uma lavadeira: “A tal lavadeira era muito governada. Havia vinte anos que era casada e tinha casa e nem uma só única vez a tinham visto no Fanqueiro a comprar fazenda branca. Apesar disso andava sempre muito lavada e mais o seu homem. O que é o aninho! Ela lavava muito bem e tinha muita freguesia. E então o modo com que ela tinha repartido a roupa dos fregueses! Sempre lhe ficava uma ou duas cargas dela lavada, em casa, para se ir servindo. E assim dava volta por todos e todos se serviam. Mas ela não era de tudo, era de algumas coisas como v. gr. lençóis, camisas, anáguas, ceroulas, meias, lenços de assoar, de pescoço, alguma saia, alguma coberta, toalhas, panos, guardanapos, &c., e assim começava o ano e fechava o ano."A João e Carmo interessa-lhes a vida das pessoas. Os livros são, afinal, essencialmente sobre pessoas. Lemos para compreendermos os outros e a nós mesmos. É a melhor forma de poder que se pode imaginar, talvez a mais generosa.
Procurar nos livros
Carmo:
A partir do momento em que se começa a ler pode-se ter acesso a tudo: é a grande liberdade. Fiz uma tese sobre o ensino da leitura e da escrita e foi nessa altura que comecei a andar nos alfarrabistas - à procura de manuais escolares e de coisas que não se encontravam nas bibliotecas públicas. E depois quando se sabe que há determinado livro por aí, não descansamos enquanto não o encontramos. É que aquele livro poder ter a chave...
João:
É que os livros têm coisas lá dentro...
Carmo:
Vais contar a história do Júlio César Machado?João:
Nós vamos editar uma colecção de folhetins do Júlio César Machado e num deles, ele conta que foi com um padre ajudar o António Feliciano de Castilho a mudar a biblioteca. O Castilho era cego...
Carmo:
Ele, em 1850, inventou um método para ensinar a ler.
João:
O padre às tantas não sabia onde tinha os óculos. O Castilho percebeu que o padre procurava alguma coisa, perguntou o que se passava, e ele disse que não sabia onde tinha os óculos. E o Castilho disse: procura entre os livros – nos livros encontra-se tudo. Quando o Eduíno [de Jesus, intelectual açoriano, que tem uma grande biblioteca] fez 80 anos, perguntei-lhe como é fazer 80 anos. E ele disse-me: não vejo grande diferença, a única coisa é que já não compro livros para ler qualquer dia. Às vezes penso nisso: quando será que vou deixar de comprar livros para ler qualquer dia.