Uma coroa de espinhos?
Usar o cabelo natural torna-se, para muitos, assumir a identidade racial. Para outros, é parte de uma afirmação individual. Afinal, não há negros com rastas nos bancos nem empresários com tranças.
Quando não lhe apetece dar nas vistas, prende o cabelo. Assim não é a Ana Sofia modelo. Assim não a reconhecem. Assim não é uma mulher com cabelo afro. Pode ir ao supermercado e passar na caixa registadora como uma mulher vulgar. “Passar despercebida é mais importante, é sinal de que sou aceite”, diz.
Ei-la hoje, dia azul de Novembro, cabelo arranjado e tratado ao fim de quase duas horas. Ana Sofia mostra-se sem elásticos no cabelo. Com orgulho. Com prazer. Porque não: com vaidade. “Para mim, o cabelo afro é uma coroa porque é uma coisa imponente, é uma coisa que se nota. E é transformar a coroa de espinhos numa coroa valiosa, numa coroa natural”, diz.
Estamos no cabeleireiro de Bruno Vicente, em Carcavelos, especializado em cabelos afro. Se há algo que distingue Ana Sofia, é justamente o seu cabelo. Tornou-se uma imagem de marca. Mas antes travou-se uma luta. A coroa natural também teve de conquistar o seu poder. Foi assim com Ana Sofia, foi e é assim com muitas mulheres e homens que têm cabelos afro, encaracolados, crespos.
No seu blogue, onde fala de muitas coisas, cabelos inclusive, Ana Sofia tem comentários de mães a dizer que mostram as fotos dela às filhas para as tentar convencer a aceitar o seu cabelo. Ana Sofia sabe bem o que isso é: “Até há uns anos questionava-me: porque é que isto me aconteceu se a minha mãe tem um cabelo ondulado tão bonito? Não sabia lidar com o meu cabelo. Porque não temos referências.”
A mãe, branca, mandava-a “para as africanas lá do bairro”, em Oeiras. Um dia o pai teve a tarefa de a pentear. “Bem…”, ri, e conta o episódio de um pente a tentar desembaraçar a cabeleira.
É natural que o cabelo se tenha tornado uma guerra para ela. Um cabelo encaracolado embaraça de forma que nenhum cabelo liso embaraça. Enrola. Parte-se. Magoa. É preciso saber pentear, começando pelas pontas, quando o impulso para quem tem um cabelo liso é começar pelo couro cabeludo.
Também ela andou de cabelo liso, também ela o esticou. Era assim que gostava de se olhar ao espelho em adolescente. Até que um dia, tinha uns 14 anos, estava a participar num concurso de modelos, e começaram a esticar-lhe o cabelo. Demorava mais que as outras. Interromperam: deixaram o cabelo liso atrás, afro à frente. Foram adiantando os cabelos lisos, voltariam a Ana Sofia no fim. Apareceram Sofia Aparício e Nayma, olharam para ela e disseram:
— Cabelo lindo.
— Ainda vou esticar, disse Ana Sofia.
— Não vais nada, vais assim, disseram.
Ana Sofia: “E eu a pensar: ‘Como é possível??? Como é possível fazerem isto comigo, fico tão bonita de cabelo liso?!”
Mal sabia, como conta, que tinha sido a melhor coisa que lhe aconteceu. “Se tivesse o cabelo liso, ia ser mais uma. Foi mesmo uma bênção ter o cabelo assumidamente afro.”
Hoje, o cabelo afro é mais bem aceite do que então. Portugal mudou nesse aspecto, considera ela, que quis trabalhar no mercado americano para se sentir mais confortável. “Dá-se uma altura em que começo a pensar: fico cá e faço uns trabalhitos de vez em quando ou vou para um mercado que me permite viver disto, viver bem e ser aceite?”
Ao olhar à volta no comboio e ver uma menina com afro sente: “É uma vitória de conjunto. Já se consegue perceber que isto também é bonito.”
Mas ainda continuam a existir desconhecidos que se chegam perto dela e dizem: “O teu cabelo é tão fofinho, deixa-me mexer.” Ana Sofia abre muito os olhos ao contar isto. “Isso é uma coisa…”, diz, expressiva. Ela explica: “Não chego ao pé de uma pessoa e começo a mexer no cabelo dela… Já me aconteceu estar numa discoteca e começarem a mexer, especialmente rapazes. Pessoas que não conheço de lado nenhum, chegam e já estão a mexer no meu cabelo… Apetece-me matá-las!”
Quem se põe a mexer está acentuar a ideia de que ela é uma freak. Que é diferente.
— Às vezes as pessoas perguntam: “Consideras-te branca, preta?” Não sou branca, não sou preta-preta, mas considero-me mais preta do que branca. Isto tem uma razão de ser: enquanto raramente senti discriminação de africanos negros, de brancos já senti muita discriminação. Sou as duas coisas. Tendo crescido numa cultura maioritariamente africana, com pessoas de Cabo Verde, criamos ligações. Quem me dera dizer que somos todos iguais. A minha afirmação pessoal passou por assumir o meu cabelo como ele é e andar na rua orgulhosamente com isso. Está na altura de criar novos ídolos, novos heróis que assumam esta coroa natural.”
Bruno Vicente põe ampolas no cabelo de Ana Sofia. Vai aplicar também um bom óleo. Diz-nos que não há cabelos difíceis. “Os cabelos afro são mais secos, é preciso aplicar um bom óleo, um bom champô, um bom condicionador, uma boa máscara… É preciso fazer um diagnóstico e o (truque) está num bom diagnóstico. Cabelo ondulado à partida é mais seco.”
Aos 27 anos, ainda hoje Ana Sofia enjoa com “o cheiro de um produto que toda a gente usava” — como ela — e que parecia pudim. Chamava-se Pink. “É uma coisa que me revolta um bocadinho: ir ao supermercado e ver produtos para as loiras, para as morenas, para as lisas, para os cabelos ondulados, e porque não há para um cabelo afro? As pessoas com este cabelo também vão ao supermercado, às vezes não têm tempo para ir ao Martim Moniz ou a outros sítios em que é esperado terem este tipo de produtos. Acabam por ser marginalizadas.”
Não há cabelos difíceis, há é produtos certos e errados para os cabelos afro, sublinha Bruno. Mas onde está, afinal, o mercado do cabelo africano, se não está nas grandes cadeias de supermercados e nas grandes marcas?
Porta sim, porta sim: juntas são cerca de 30 as lojas dedicadas a cabelos afro no centro comercial Babilónia, na Amadora. Não há montra da parte traseira deste shopping que não mostre cabelos aos molhos, as chamadas extensões, vendidas ao grama. Estamos numa meca para quem precisa de cuidar do cabelo afro.
Dia de semana à tarde de Dezembro e quase todos os pequenos salões estão cheios. Madeixas lisas, madeixas onduladas, madeixas com caracóis, há de tudo. No balcão, as máquinas de costura para coser as pontas. Cada grama de cabelo verdadeiro custa, em média, uns 80 cêntimos; para um cabelo longo são precisos uns 300 gramas, dizem-nos na Afro-Beleza. A aplicação serão uns 50, segundo a cabeleireira Carolina Barbosa, 47 anos. As extensões ficam gastas ao fim de dois/três meses.
Carolina Barbosa foi das primeiras a abrir cabeleireiro no Babilónia, há dez anos, havia apenas outros três. A concorrência ajuda a manter o profissionalismo, mas há casas que começaram a baixar os preços das extensões e distorceram o mercado. A evolução de então para cá foi grande, nota, sobretudo em termos dos produtos e das alternativas. Carolina, guineense, está a aplicar extensões lisas a uma cliente. Ela própria também as tem, loiras. “O nosso cabelo parece que é forte mas não, tem pouca elasticidade e parte com facilidade. Com extensões, conseguimos dar a volta à situação, conseguimos manter o cabelo sempre bonito e penteado.”
Há um ano o look afro voltou, diz. Não sabe explicar porquê. Mas sabe explicar porque voltaram as tranças apanhadas em cima, no cocuruto, como as que usa a assistente Matata: a cantora Beyoncé apareceu assim e virou moda. “O look mais afro está-se a usar muito. Vê-se mesmo. Não sei explicar mas a tendência é essa, vejo nas clientes que pedem.”
Foi justamente há cerca de um ano que Denise Fernandes, 24 anos, criou o blogue Curly Essence com Ana Rita Almeida. E foi nessa altura que começou a assumir o seu cabelo encaracolado. Conheciam-se através de blogues, um dia resolveram encontrar-se e estiveram horas à conversa sobre muita coisa, inclusivamente sobre cabelos. Estavam as duas na fase de esticar e alisar o cabelo. Notavam, conta Denise Fernandes, que em Portugal havia uma falha em termos de produtos. O que encontravam eram produtos para diminuir o volume, nunca para aumentar, “ou seja, uma pessoa usava aqueles cremes e os caracóis ficavam pequeninos”.
Fizeram pesquisa. Descobriram que havia imensos tipos de caracóis, “desde o 3A ao 4C”, aprenderam truques para tratar de forma natural o cabelo, usando ingredientes como mel, azeite, iogurte, abacate, aprenderam que um produto que resulta num tipo de caracóis não resulta necessariamente noutro. “Comecei a perceber: realmente andei a maltratar o meu cabelo estes anos todos!” Truques simples: dormir com cabelo apanhado “cá em cima”, usando a “técnica do ananás”, para manter os caracóis nas pontas; dormir com almofadas de seda porque não estragam os caracóis; evitar usar champô, que seca o cabelo (usar antes vinagre ou bicarbonato)…
Hoje, quando a encontramos, Denise tem o cabelo apanhado. Choveu e a humidade tem um efeito indesejado: faz o cabelo encolher, desfaz os caracóis. Denise fala com entusiasmo de um mundo que ainda está a descobrir. Afinal houve uma altura em que deixou de ir à praia com as amigas, pensava: “Não vou molhar o cabelo porque à noite vou sair e preciso de ter o cabelo esticado.” O liso é que era bonito. Desde o 9.º ano que o esticava sempre. Não o faz há quase ano e meio, conta, como uma conquista.
É que foi, de facto, parte de todo um processo. Cresceu a ser a única das amigas a ter caracóis. “Não me valorizava a mim nem ao meu cabelo. A partir do momento em que aceitei o meu cabelo, estava a aceitar-me.”
Angolana, veio para Portugal com um ano. Mais nova, ouviu comentários racistas “que começavam pelo cabelo”. “Nunca mais me esqueci que um dia estava na escola e um rapaz disse: ‘Cala-te preta.’ Porque eu tinha o cabelo encaracolado. As pessoas, quando eu esticava o cabelo, não notavam, eu não sou muito escura, nem tenho muitas feições angolanas. Nota-se a partir do momento em que tenho o cabelo encaracolado. Foi mesmo passar a gostar de mim e assumir.”
E, claro, o típico “posso mexer no teu cabelo é tão fofinho?” ofende-a. “É como se fôssemos só o nosso cabelo”, comenta. Como se fosse algo “sobrenatural”, “uma coisa que não devia estar ali…”.
Ora é justamente o contrário que ela e Ana Rita querem mudar com o blogue: “Não ter vergonha do que temos.”
Web Designer, Denise trabalha na Baixa. Na zona, há uma drogaria que vende os produtos que ela costuma comprar. Está fechada. Leva-nos a um cabeleireiro no Martim Moniz onde também se vendem as marcas que não há nos supermercados nem se encontra facilmente em qualquer sítio.
Por coincidência, foi aqui que o músico Kalaf esteve de manhã a cortar o cabelo com o seu barbeiro de há uns três anos. Nas paredes há cortes de revistas com modelos de penteados. Uma parte funciona como cabeleireiro. Uma mulher senta-se para escolher extensões, mas acaba por se ir embora.
Ouve-se o som da máquina de cortar. Sentado em frente ao espelho, Kalaf explica que Zé, o barbeiro, corta muito bem e, mais importante, consegue cortar sem lhe causar alergia.
Duas vezes por mês cá está ele nas mãos de Zé, se estiver em Portugal. O músico dos Buraka Som Sistema, e cronista da Revista 2, diz que não há truques para tratar do seu cabelo. Também ele fala de coroa. “O cabelo africano é uma espécie de coroa. Sendo uma coroa, tens de polir, de dar brilho. É motivo de orgulho. Podes estar um maltrapilho, mas um bom corte de cabelo é extremamente importante. É assim que se vê se a pessoa é cuidada, se é asseada. O cabelo é a primeira montra.”
Hoje há orgulho no afro, mesmo que permaneça “a ideia de que um cabelo demasiado carapinha não é bem visto”. Porém, não é tão dominante a ideia do cabelo alisado, desfrisado, que em culturas como a afro-americana “era uma forma de se alinhar com a estética vigente — toda a gente tinha cabelo liso, a população branca, então não se poderia estar longe da imagem imposta pela comunidade”, contextualiza. Surgiram, entretanto, movimentos naturistas.
Kalaf já usou afro, já usou tranças, já o deixou “totalmente selvagem”. “Nunca fui adepto de rasta nem nada do género. O curioso é que as pessoas me incluíam num grupo social ao qual não pertencia, era engraçado ver isso — associavam-me aos maneirismos da comunidade rasta e do reggae e eu ouvia jazz o tempo todo.” O seu cabelo estava, assim, “desenquadrado”. “Até ao dia em que olhei para o espelho e vi que aquilo não podia continuar assim porque eu deixava-o de forma selvagem.”
Nem arrisca pôr o seu cabelo num cabeleireiro que não sabe de cabelos africanos. “Se chegares ao teu lugar de trabalho com uma carapinha, vais ser julgado. Pentear, alisar, está ligado à ideia de que não é fácil cuidar do cabelo africano e de que precisa de cuidados especiais: é como estar despenteado, e uma pessoa não quer estar despenteada. Para as pessoas que não têm muitos meios, o cabelo é onde podem mostrar a sua vaidade.”
Didi tem fama de ser um dos barbeiros especializados em afro mais cotados de Lisboa. A sua barbearia na Alameda está cheia a um dia de semana normal — e não é sexta-feira, altura em que fica lotada.
É um entra e sai neste espaço onde a cultura urbana se espelha nas paredes, no estilo de quem lá está e na música. É com ele que o rapper Tekilla corta o cabelo desde 2010. “Entro mudo e saio calado”, diz o rapper, para explicar que já nem precisa de comunicar por palavras com Didi. Entre barbeiro e cabeleireira, a quem recorre por causa da parte do cabelo que desfrisa, mais os produtos que usa, Tekilla gasta uns 80 euros por mês. Vem de gorro, uma das suas imagens de marca.
— O cabelo é uma questão de identidade, de imposição. A pessoa impõe-se através da sua imagem. Cabelo crespo é sinónimo de raiz, de cultura, de luta, de identidade própria porque vem dos nossos ancestrais. Quando cresceu em África, o negro não se penteava porque não tinha meios, deixava crescer o cabelo ao natural. Eu, que nasci em Portugal e tenho uma cultura europeizada, é normal que tenha outra interpretação”, diz, sentado na poltrona.
Alisa o cabelo porque quer ser ele a criar a sua própria moda. Faz tudo o que uma mulher faz na desfrisagem: alisamento, rolos, mise. “Não gosto de me identificar com ninguém, gosto de ter a minha própria imagem. Sou um líder, não um seguidor”, afirma. E mesmo em África há imensas pessoas a fazer extensões, alisamentos. “Tem que ver com a forma como a pessoa gosta de se ver a si própria. Já gostei mais de me ver de afro do que hoje — ficou um bocado cliché.”
Aos 17, 18 anos, quando o usava, notava que era apontado na rua. “A classe alta interpretava como: ‘Olha este chunga.’ Ia a uma festa com afro e perguntavam se eu jogava à bola. A classe média era: ‘Este deve estar maluco.’ Porque o cabelo no ar dava a conotação de desequilíbrio. Quem tem rasta faz parte da periferia, não está integrado na sociedade. Os departamentos de recursos humanos não querem esse tipo de imagem. Nunca vi um negro de rasta a trabalhar num banco, como se vê em Londres.”
Ulisses Freire, Lúcia Lopes e Carlos Graça pertencem ao movimento activista Sementes D’África e estão a fazer um documentário sobre cabelos. Encontramo-los na Tapada das Mercês, Sintra, e vamos com eles a uma loja de chineses onde se vendem produtos para cabelos afro. Carlos Graça, o coordenador do movimento que não tem hierarquia, explica que o objectivo principal é “criar uma comunidade africana”. “Pode haver grupos africanos, mas não comunidades. Temos o exemplo dos indianos, dos chineses, que são uma comunidade — eles têm os negócios deles, gastam o dinheiro entre eles, consomem o que é deles. A comunidade africana é o único grupo que não tem nada em comum. Tem a ver com a história: não convém que estejamos unidos. Convém continuarmos com os mesmos postos de trabalho. Agora somos escravos com estilo — grande parte continua a fazer trabalho de serventia. O lugar do negro é sempre atrás dos balcões.”
Promovem eventos e interessou-lhes a questão do cabelo afro porque querem valorizar o negro, que “tem aquela conotação negativa de ser chamado preto”. E isso, explicam, tem que ver também com o cabelo. “Estamos aqui a mostrar que o cabelo crespo também é bonito.” Lúcia usa tranças, mas já andou de cabelo liso. Usar o natural tem que ver com uma decisão de assumir “o que sou, gosto dos meus caracóis, vem das minhas raízes, da cultura”. “O cabelo acaba por identificar a minha identidade.”
Ulisses usa rastas por baixo do boné desde há mais de um ano. “Tem tudo a ver comigo. A rasta é um penteado que veio de África, e quando uso rasta identifico-me com os meus ancestrais.”
Já foi forçado a cortar o cabelo quando era recepcionista na Vodafone. Já foi, também, barrado à porta de discotecas africanas por usar rasta. “A sociedade vai-nos pondo obstáculos”, comenta Carlos Graça. “Quanto mais naturais formos, quanto mais africanos formos, mais obstáculos vamos ter. Temos vários tipos de cabelos que são mal vistos. Temos de continuar com o modelo do escravo: cabelo curto. E as mulheres vão ter de seguir o padrão de beleza europeu. Não conheço nenhum empresário de rasta ou o cabelo afro apanhado.”
Ainda é como diz Ana Sofia: a coroa natural transforma-se muitas vezes em coroa de espinhos.