Onde pára a escrita na Escrita Criativa?
Os cursos ensinam a técnica e tentam desfazer o medo da folha em branco. Mas ensinam a ser-se escritor?
A Oficina do Conto de 15 horas (tem seis semanas e custa 140 euros) é o terceiro curso que faz — o primeiro foi o de Revisão de Texto (4 semanas, 95 euros), onde aprendeu “a limpar um texto” para o deixar “mais directo, menos repetitivo”, por exemplo; depois, veio Ensaboadela no Português (4 semanas, 95 euros), o curso que a ensinou a livrar-se de “erros que toda a gente comete sem saber”. O curso sobre o género do conto, é um “desafio porque estou mais habituada sempre a ler romances e livros mais longos, com toda aquela complexidade de diferentes camadas. Nunca tinha escrito contos e achei que era uma boa forma de começar a ver a escrita de outra maneira”, diz.
Escrever e publicar o seu primeiro livro “foi um sonho”, mas não quer ficar por aqui. Gostaria de poder fazer da escrita a sua vida. Assumindo que “para escrever é preciso ter-se talento”, diz também que “há sempre arestas por limar” e que é isso que aqui se pode aprender. Inês Madeira reconhece que este curso a tem feito ver a escrita para além da inspiração do momento. Nas aulas de duas horas e meia, muitas vezes é dado um exercício para concluir e apresentar. E aí, em 15 minutos, não se pode estar à espera de inspirações. “Dão-nos o nome de uma personagem, uma frase e a partir daí temos que escrever uma história. Às vezes até é difícil parar de escrever. Uma palavra, um som, uma imagem, faz logo nascer qualquer coisa.”
Conceição Garcia, a professora de Inês na Oficina do Conto, “ensina o cânone” e usa “técnicas para espicaçar e pôr as pessoas a escrever”, explica. Começou a dar aulas de escrita criativa há dez anos e há sete fundou a Escrever Escrever. A escola tem visto o número de alunos crescer, diz Conceição, e desde 2007 já ensinaram mais de 6 mil alunos.
Na aula sobre conto vai-se aprendendo a estrutura clássica de Aristóteles: um texto deve ter introdução, conflito e desenlace e deve haver uma clara causalidade entre os acontecimentos e as acções das personagens. Apesar de tomar como padrão nas aulas a teoria com mais de dois mil anos que o filósofo grego escreveu na Poética, Conceição quer deixar claro aos alunos que “não há um só caminho”. É por isso, e para criar uma troca de autores e de leituras, que em todas as aulas pede a um aluno que traga um conto à sua escolha. “Aplicamos a noção do Julio Cortázar que diz que um conto tem que ser um murro no estômago do leitor”.
Escrita Criativa é uma expressão non grata para muita gente. Em Outubro, trocaram-se argumentos contra e a favor em jornais e na blogosfera quando o jurado do Nobel da literatura, Horace Engdahl, disse em entrevista ao jornal francês La Croix que os cursos de escrita criativa e os contratos com as editoras estão a profissionalizar e empobrecer a literatura ocidental — “estes escritores, muitos deles formados em universidades europeias e norte-americanas, não transgridem nada porque os limites que eles próprios desenharam não existem”. Já em Março deste ano, o tema tinha sido lançado quando Hanif Kureishi, escritor e professor na Universidade de Kingston, no Reino Unido, afirmou no Independent Bath Literature Festival que os cursos de escrita criativa, de que ele é professor, são “uma perda de tempo”, já que “99,9% dos alunos não têm talento”.
Em Portugal, “a desconfiança tem a ver com muitos cursos de má qualidade e com falta de preparação”, diz Luís Carmelo, que em 2007 interrompeu a sua actividade académica como professor de Semiótica para criar a Escola de Escrita Criativa Online (EC.ON), que se quer afirmar como uma escola feita por escritores, com aulas individuais online — o que faz com que entre os mais de 200 inscritos, metade sejam portugueses e o resto esteja espalhado pelo Brasil, Angola, Alemanha, Polónia...
A EC.ON tem cerca de 70 cursos com propinas entre os 82 e os 492 euros, e durações entre as quatro e as 20 semanas. Entre oficinas de escrita literária, escrita criativa comunicacional, cursos para adolescentes e crianças, contam-se professores como João Tordo, Patrícia Reis ou José Eduardo Agualusa.
Nas aulas de Luís Carmelo trabalham-se as técnicas de descrição e de narração, e num nível posterior fala-se de trama, de actantes, de pontos de viragem e de clímax, do que é o desenlace e de como se desenvolvem imagens. “Com a certeza de que estas ferramentas não são testadas em laboratório para nunca falhar, pelo contrário, elas normalmente falham. Em certas pessoas, em certos contextos, podem produzir um livro extraordinário, sejamos optimistas. Mas normalmente não”, avisa os seus alunos.
A escrita criativa não é, para Luís Carmelo, um remédio milagroso que se toma para se ser escritor. Mas nota que esta é a imagem que a disciplina tem vindo a ganhar, por causa de iniciativas como torneios de escrita criativa publicitados nas redes sociais. “As pessoas desconfiam destas metamorfoses mágicas e desconfiam bem. Há muita actividade desta que se pode comparar à dos mágicos que jogam com a psicologia”, diz.
Um destes torneios é organizado pelo escritor Pedro Chagas Freitas, autor de Eu Sou Deus ou In Sexus Veritas, vai na 24ª edição e está a receber inscrições para a 25ª, que começa em Janeiro. Os inscritos enviam todas as semanas um texto original a que é atribuída uma nota de zero a 20. No final de dez semanas, aquele com maior pontuação pode publicar um livro na Chiado Editora (que publica sobretudo autores desconhecidos, tendo estes que comprar uma percentagem do número de exemplares da primeira edição do livro).
“Não é nada de excêntrico ou extravagante”, diz sobre estes torneios o escritor que tem mais de 230 mil seguidores no Facebook. “Sempre que nos sentamos para escrever um texto estamos a fazer escrita criativa”. Estas competições e as suas aulas são um “treinar do músculo da criatividade”, afirma.
No seu site estão anunciados mais de uma dezena de cursos, entre os que são para professores, para crianças ou a oficina de romance para quem quer “escrever uma grande obra e publicá-la imediatamente”, lê-se na sua página. Neste espaço de tutoria individual de 12 semanas, com um custo de 257 euros, cria juntamente com o aluno um mapa da história a escrever “que lhe mostre para onde quer ir e que lhe permite, mesmo que fique algum tempo sem escrever, ter um plano ao qual voltar. É a rede para quando cair não se desmotivar”. No final, a escolha de publicar ou não e em que termos é do autor. “Há quem queira ter uma edição para distribuir pelos amigos, ou quem prefira distribuir também pelo grande público”, conta.
Alguns querem só escrever com mais correcção na sintaxe ou na pontuação, explica, e para isso o autor aplica a “nova metodologia de Pedro Chagas Freitas”. Sem a desvendar por completo, Chagas Freitas fala de técnicas “muito lógicas”, que não precisam de “alunos com determinado nível de formação”, e ainda de “jogos para desbloquear a singularidade de cada um”, mas garante que não se trata de “ensinar a escrever livros”, ou de “ensinar a ser criativo”. “A pessoa já é criativa, já sabe ver as suas coisas de uma maneira muito própria. E isso é o que faz a diferença.”
“Escrever não é nada de extraordinário, é só disciplina”, adianta. “Se escrevemos uma página por dia, temos 365 ao fim de um ano, então é perfeitamente possível escrever um romance com 365 páginas por ano”, explica.
Usou desta disciplina para escrever os seus 20 livros publicados desde 2004, alguns deles nos tops de vendas, como Prometo Falhar, publicado este ano. Durante o período em que trabalhou como publicitário, levantava-se meia hora mais cedo para escrever e deitava-se meia hora mais tarde. Desde 2012 que se dedica a tempo inteiro à escrita e às aulas. Neste momento, mantém 10 cursos individuais e ainda os workshops — cursos de duração e conteúdos variáveis de acordo com os objectivos. Para além disto, dá ainda uma hora de aula por semana no Facebook, num grupo fechado a que chamou Faculdade de Escrita Criativa. Com o pagamento de 20 euros mensais, um grupo de cerca de 20 pessoas pode ler durante cinco meses os conteúdos que o escritor vai publicando nesse grupo. Também se discute e se trocam impressões, como em aulas presenciais. Foi esta a maneira que encontrou de fazer um curso com um preço mais acessível, explica.
Um café perto da Avenida Infante Santo, em Lisboa, enche-se de repente com três dezenas de pessoas. Vêm todos do andar de cima, da sede da EC.ON, onde a escritora Teolinda Gersão esteve a falar sobre como chega a uma ideia e depois a um livro. Todos os sábados, Luís Carmelo organiza estes encontros com escritores, a única aula presencial da escola. “Acaba por se criar aqui um espírito familiar, há alguma coisa que nos une e que nos traz cá a todos”, conta Maria Teresa Devesa, a médica de 58 anos que faz todas as sextas-feiras um hora e meia de caminho desde Beja para assistir a estas aulas. Os seus fins de semana de Janeiro já estão reservados para ouvir escritores como Valério Romão ou Francisco José Viegas.
Maria Teresa decidiu procurar cursos de escrita na Internet quando lhe pareceu “que nem uma carta sabia escrever”. Acabou por começar a fazer as oficinas dadas por Luís Carmelo e vai neste momento na sexta. “Da primeira vez vi-me à rasca. É difícil especialmente para quem não vem da área da literatura e passou a vida a desfazer-se de floreados para ser mais racional e ir directa ao assunto”, conta. A ideia inicial era ficar-se pelo primeiro curso, mas quando acabou percebeu que ia sentir falta do desafio semanal, como num desporto. Todas as semanas havia que aplicar conhecimentos num pequeno texto original, por vezes aplicar determinado conceito — tipos de narrador, de personagens, por exemplo — outras vezes, fazer nascer alguma coisa a partir de um excerto de uma obra literária. Foi assim que foi redescobrindo escritores que “pensava que eram uma seca”, ou que eram demasiado complicados para si — lembra-se do exemplo de O Fio da Navalha, de Somerset Maugham: “Com que olhos é que eu li aquilo na primeira vez que não me interessou nada?”
A ideia “não é formar escritores, mas leitores com competências”, adianta Luís Carmelo. “Aprendeu-se na escola primária a ler e a escrever. Aplicou-se de três ou quatro maneiras e acabou. Se se perceber que a linguagem é um jogo com os seus limites mas que podem ser disputados, isso contribui para uma frescura imaginativa que depois se reflecte noutros saberes”, diz o professor que criou disciplinas de escrita criativa no IADE – Instituto de Design, Arte e Empresa, em cursos de design.
Rui Zink começou a dar aulas de escrita criativa em Portugal no início dos anos 1990, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL), quando não havia cá nada do género e “a classe literária desdenhava. Tudo baronesas de Gouvarinho aos risinhos a perguntar ‘mas pode ensinar-se o talento?’”, lembra-se. Deixa claro que não é isto que afirma a escrita criativa: “Quem frequentar cursos de escrita fica menos mau escritor e pode ficar bastante melhor leitor”.
Para Rui Zink, os cursos de escrita criativa foram inventados quando se inventou a escrita com Homero. “Todos os escritores tiraram um curso de escrita criativa”: todos leram, trocaram impressões, compararam técnicas e trabalhos com outros escritores.
O que as suas aulas propõem são exercícios que criam um constrangimento de escrita e que já existiam nos salões da Marquesa de Alorna, no século XVIII, quando alguém lançava um desafio como “escrever só em soneto”; ou “quando Camões ia para a taberna e alguém o desafiava a escrever de determinada maneira e dizia ‘oh Camões vê lá como é que te safas desta’”, exemplifica o professor.
O constrangimento permite que “a inspiração se torne uma coisa mais terra a terra” e “distrai da maldição da arte”, afirma o autor de A metametamorfose e outras fermosas morfoses. “Quando se diz ‘faça uma frase extremamente original’, obviamente o que sai são clichés. Mas se eu disser, ‘esta é a última frase do conto e agora tem que chegar aqui’, a pessoa não vai tentar ser original.” Para Rui Zink, esta é a mecânica de que parte a literatura: tentar resolver um problema.
Destes exercícios nasce a discussão e crítica dos trabalhos do outro que não deve ser monopolizada pelo professor — “o curso é um círculo” e o orientador apenas “um distribuidor de jogo que se cala o mais possível”, diz Zink. É neste círculo, antes das letras lançadas ao papel, que começa a escrita. “Escrever é ler, é estar atento, estar nas coisas. A parte da caneta e do papel, ou dos dedos no teclado, é apenas uma parte e muitas vezes a menos interessante”.
A sala de aula em que se reúne um grupo de pessoas com o interesse pela leitura e pela escrita é uma réplica dos círculos de artistas que se juntam para falar sobre a sua arte, desenvolver o gosto e o olhar crítico. “Até o Van Gogh, o símbolo máximo do artista louco e solitário, tinha um amigo, o Gauguin, com quem comparava técnicas e ao lado de quem pintava”.
O escritor Mário de Carvalho põe-se a imaginar: “Ninguém ia dizer ao Gógol ‘corte lá isso, não serve para nada”. Faz referência ao início do conto O Capote, um longo aparte que atrasa o encontro do leitor com Blaquemaquine, o protagonista da história. “Só no final da página nos é apresentado o protagonista(...). Não admitiríamos que qualquer professor de escrita criativa admoestasse o escritor ucraniano. ‘Homem, mude lá isso. Deixe-se de derivações. Cut to the chase’”, escreve Mário de Carvalho em Quem disser o contrário é porque tem razão – guia prático de ficção. Este livro, que lançou em Outubro, quer ser um compêndio de leituras e reflecções do autor, mas não é um livro de regras de escrita.
Ao longo do seu Quem disser o contrário é porque tem razão, quando Mário de Carvalho está próximo de definir algo que se parece com uma norma que o “novel escritor” (a quem assume, com alguma ironia, estar a dirigir-se) possa seguir à confiança, oferece logo três ou quatro exemplos da grande literatura que o contrariam. “Eu era capaz de dizer que não há mesmo regras, há sim percalços a evitar. E a partir do momento em que já se fizeram muitas leituras talvez seja mais fácil identificar os lugares comuns”.
Para Mário de Carvalho é um largo conjunto de leituras que leva à escrita. Foi assim que começou a escrever nos anos 1970, depois de ler uma data de livros de todo o tipo, dos russos às aventuras de Rocambole e de Sandokan. Além disto houve a influência do professor e poeta Fernando Guerreiro e do grupo de leitura que se reunia em torno dele para discutir livros. “Se calhar nunca seria escritor se não tivesse passado por aí, por essa figura que muito me estimulou e apoiou”, relembra.
É dos livros e de conversas como aquelas que nasce a literatura, diz. “Muitas das regras que nestes cursos se procuram aplicar mecanicamente, eu diria mesmo cegamente, são transgredidas pelos grandes autores. A literatura é uma arte de ambiguidades, de paradoxos, de incertezas, de instabilidade”, diz para explicar porque não associa à escrita criativa as oficinas de escrita que orienta e onde não se alonga em exercícios.
Começou a dar aulas de escrita no final dos anos 1990 na Escola Superior de Teatro e Cinema, passou pela Escola Superior de Comunicação Social e pela FCSH-UNL. Neste momento dá aulas, mas quando está à frente de uma turma prefere discutir com os alunos uma bibliografia de obras que considera essenciais na literatura e ainda exemplos das artes plásticas ou do cinema que podem abrir espaço a uma ideia.
Também a escritora Luísa Costa Gomes não gosta de ver as suas aulas identificadas com a escrita criativa. “Nunca me passou pela cabeça fazer um curso de escrita criativa”, diz. Orienta oficinas de escrita literária — é o termo que prefere — e comunidades de leitores desde os anos 1990. A razão porque não identifica aquilo que faz com a escrita criativa é achar que esta disciplina “põe uma enfâse desequilibrada na parte técnica, nos truques, nos esquemas, na maneira de fazer. Tudo aquilo que é técnico é repetitivo — e o facto de saber fazer pode ser a causa do texto ser desinteressante”.
Todos os cursos que vem dando, inclusivamente em escolas, a crianças do 4º ao 12º ano (neste momento, tem uma oficina de conto na FCSH-UNL) têm uma bibliografia fundamental, que deve ser lida ao longo das sessões e discutida e que muda de grupo para grupo. “O curso faz-se na relação”, conta. A par disto, cada aluno, dentro de uma turma em média com 15 alunos, desenvolve um projecto de “escrita pessoal e original”, que vai sendo acompanhado pela escritora.
Em cada grupo há uma pequena parte em que Luísa Costa Gomes encontra talento, palavra “que hoje é politicamente incorrecta”, e que sozinha não basta. “Nem todas estas pessoas vão escrever consistentemente. Um contista não se faz com um conto, faz-se com vários livros. É preciso essa perseverança”, explica. O ideal para aqueles que “demonstram qualidade literária” é que haja um horizonte de publicação depois do curso, por exemplo, no caso do conto, em revistas literárias. “Penso que se uma pessoa vem fazer uma oficina tem à partida um horizonte de publicidade e de partilha — mostrar que há continuidade na tradição literária. E quanto mais pessoal, original, interessante, densa, complexa for essa voz pública, melhor.”
Às 10h30 da manhã de segunda-feira, as cinco alunas da aula de conto da Escrever Escrever estão a postos. Ana já terminou o exercício enquanto as colegas ainda estão a escrever e Conceição aproveita para se sentar com ela e aconselhá-la a rever as descrições e os comentários que o narrador do seu texto faz: “pensa — o que é que isto acrescenta à história?”; e mais à frente: “vê se esta personagem vale a pena”.
Na aula anterior, há uma semana, distribuíram-se aleatoriamente nomes por cada uma delas. Tiveram de “andar com estas personagens no bolso” durante toda a semana para lhes inventarem uma vida e uma descrição física, social e psicológica, explica Conceição. No plot desta história há uma reviravolta: os nomes sorteados são nomes de pessoas que as alunas conhecem na realidade e que consideram “personagens”. Inês apresenta o seu Sr. Américo, um velho de cabelo branco e olhos azuis, que viveu uma história de amor com uma rapariga de boas famílias — os pais da moça não aceitaram a relação. Ela acabou por ir fazer carreira como violinista para a Áustria e o Sr. Américo vive sozinho até hoje. É Liliana quem conhece realmente o sr.Américo e deu o seu nome para o exercício: “O verdadeiro Sr. Américo não tem nada a ver com isso. É jovem – deve ter uns 30 anos – é boa pessoa, mas é muito poupado: poupa todas as moedas de dois euros que lhe param na carteira. No fim do ano, compra certificados de aforro.” Aqui já a personagem real conquistou o público da sala. Que mais sobre este Sr. Américo? “Faz gráficos de Excel com os gastos de gasolina”. A partir dali, a missão das outras quatro alunas foi ter personagens mais extraordinárias que as verdadeiras. Não foi fácil.
“Juntar duas palavras do mesmo universo semântico tem um impacto. Juntar palavras de universos diferentes tem outro, é mais inesperado”, explica Conceição lembrando o jogo do binómio fantástico do escritor italiano Gianni Rodari. Faz a experiência: “Se disser frases com as palavras folha e caneta — tenho uma folha e uma caneta; escrevo numa folha com uma caneta; perdi uma folha e uma caneta — elas não são surpreendentes. Mas se usar cão e armário — tenho um cão dentro do meu armário; um armário caiu em cima do meu cão, um cão cheira o meu armário — estas frases têm personagens e histórias por trás”. E a partir dali, Conceição entusiasma-se e quer já partir para o texto: “De quem é este cão que cheira o meu armário? O que é que está lá dentro? Um cadáver? Esta é uma história de crime.”
Dentro da mesma lógica, Conceição junta de vez em quando umas bulas de medicamentos, instruções de preservativos, o código civil do trabalho, uma publicidade a um vidente que lhe deram à saída do metro do Cais do Sodré e soma-lhes um poema de Baudelaire. “E com isto façam um texto”, diz aos alunos que têm que tirar daqui e dali uma e outra frase para criar um sentido — qualquer que ele seja.
Alguns destes exercícios, como o famoso “escreva um texto sem o a”, foram criados pelos movimentos surrealistas ou pelo colectivo francês dos anos 1960 OuLiPo - Ouvroir de Littérature Potentielle, de que faziam parte Raymond Queneau, Georges Perec ou Italo Calvino – “um grupo de pândegos: reuniam-se para beber e para comer e para se divertirem do ponto de vista literário. Inventaram brincadeiras e jogos para produzirem textos novos. Podem significar tudo, produzir textos muito engraçados, ou textos que não têm interesse nenhum. Não há nada que salve um escritor do confronto com as suas próprias limitações e com aquilo que ele quer fazer”, diz Luísa Costa Gomes.
Para a a escritora é este lado pessoal da escrita que falta salvaguardar nos programas de escrita criativa das universidades norte-americanas, onde estes cursos são comuns e de onde vem muita da sua tradição — de East Anglia, a Nova Iorque, passando por Iowa ou Harvard. “Aquilo que o modelo americano propõe é uma profissionalização precoce da escrita, com uma formação muito lacta mas muito técnica”, explica. “Há uma formatação da criatividade. O nível literário é muito bom, mas os textos são áridos, são totalmente vazios, quase exibicionistas na sua literariedade e mesmo assim, um bocejo. Tudo o que é real e autêntico, tudo o que é vital é formatado, imediatamente metido dentro dos protocolos da escrita.”
Para juntar-se à “falta de coisas para dizer”, que Luísa Costa Gomes aponta, Mário de Carvalho lembra os clichés de que a literatura saída da academia norte-americana é capaz: “’fulano fumava no alpendre’; ‘Laura estava lá fora’ — uma pessoa já não pode suportar este tipo de coisas. Depois são as raparigas abusadas em pequenas, os pedófilos, armas, irmãos desavindos, incestos. Há uma série de efeitos de moda que se sabe que resultam bem e que suscitam a atenção de certo tipo de público. Têm os tais defeitos de previsibilidade, são sempre as mesmas historietas, os mesmo efeitos.” Mário de Carvalho lembra-se de Philip Roth ou de Cormac McCarthy como excepções, e Luísa Costa Gomes, de Don Delillo. “Passaram eventualmente por aulas de escrita criativa e superaram tudo isso”, brinca Mário de Carvalho.
Kurt Vonnegut, o escritor norte-americano favorito de Rui Zink, não só passou por aulas de escrita criativa, como foi professor da disciplina nos anos 70. Em Portugal, o professor lembra-se de ver passar pelas cadeiras das suas aulas autores como Patrícia Reis, Ricardo Araújo Pereira, Francisco Dionísio, Cristina Norton. Zink nota em Portugal este atraso: ainda hoje a disciplina não é comum nas faculdades — há alguns cursos livres e a Universidade Lusófona abriu em 2007 a licenciatura em Tradução e Escrita Criativa. Zink prevê que num futuro próximo haja mesmo um enquadramento profissional do trabalho literário, à semelhança do que acontece nas academias anglo-saxónicas, mas por enquanto a obra de ficção que ele e outros professores universitários publicam não é valorizada enquanto curriculum, diz.
Se pedirmos a Mário de Carvalho um exercício ele prescreve: leia. E volte a ler e a sublinhar, a tirar notas e a comparar edições e traduções. Quer aprender a escrever títulos? Vá a uma biblioteca e veja como se arquitectaram uma dúzia deles, e a mesma coisa para aberturas de contos. E passeie por museus, e veja ainda filmes de todos os tipos. “A escrita é feita com tudo aquilo que nós temos: toda a nossa vivência, tudo aquilo que adquirimos. Pode partir de um quadro, de um filme, de um sonho, mas tudo isto envolve a mobilização de uma totalidade — está tudo ligado. É importante tomar contacto com a extrema complexidade e riqueza deste mundo”.
Pedro Chagas Freitas aponta sem hesitação as três regras para escrever um bom livro: 1. “encontrar o equilíbrio entre a coerência e a surpresa”; 2. “o equilíbrio entre as alterações no espaço físico e no espaço psicológico das personagens”; 3. “levar o leitor a concluir em vez de sermos nós a dizer-lhe. Mostrar em vez de dizer”.
“Se o leitor tiver uma expectativa em relação à literatura que é a da ‘história bem contada’ — uma ideia um bocado enervante — fica cada vez com menos abertura para se entregar a uma experiência que é realmente um pouco mais provocante”, acrescenta Luísa Costa Gomes, que diz ser “difícil definir o que é um bom texto, mas muito fácil de identificar”.
Para Mário de Carvalho, está em causa a procura de uma musicalidade pessoal na escrita — um trabalho cansativo e doloroso: “Às vezes soa a rachado e tem que ir fora, ou mudar-se uma palavra”. E parece simples quando Mário de Carvalho diz calmamente que “não há escrita que valha a pena ler-se sem que responda a um fundo de leituras, que se tenha atrevido a medir-se com o património literário universal”. Então, é ler, escrever e medir-se? “Sim, podia ter começado por aí e estava tudo dito.”