Diz a mamã: “Não se pode curar alguém só porque o amamos”
Foi a mãe de Xavier Dolan no primeiro dele, J’ai Tué Ma Mère. Agora é A Mãe, em Mamã, que hoje estreia. Pertence-lhe a história do cinema dele. Uma parte dela Anne Dorval conta-a aqui.
Rever J’ai tué ma mère (2009), depois de ver Mamã, produz uma sensação estranha: este é, não o remake, mas uma variação, e o que é relevante é o que ele acrescenta ao cinema de Xavier Dolan, o que nele se supera. Já existia, no filme anterior, um filho entre duas mulheres, a mãe e uma amiga. Já havia um trio - a mãe e a amiga interpretadas pelas mesmas actrizes, você e Suzanne Clément.
São dois filmes e personagens diferentes. O que é comum é o facto de em ambos existirem mulheres bastante complexas, assunto que ele gosta de tratar no ecrã, uma vez que foi criado por mulheres. Foi educado num colégio interno, mas regressava periodicamente a casa, à mãe. Depois, teve a fase em que viveu com uma tia e estava rodeado de primas. Em todo o bairro, aliás, havia muitas mulheres, que ele observava, que tomavam conta sozinhas dos filhos, o que sempre o tocou. São esses os modelos do que se passa no cinema dele: a vontade de mostrar, de celebrar essas mulheres. J’ai Tué ma Mére foi um filme de crise de adolescência, Mamã é mais profundo, mais essencial.
Estamos de acordo. Sobre a proximidade de J’ai Tué ma Mère à adolescência - no sentido de filme adolescente - e à adolescência de Dolan: em Mamã o biográfico é superado.
Sim, é isso. A mãe deste filme não é a sua mãe, como em J’ai Tué ma Mère. Na verdade, tudo começou com um artigo da imprensa americana, a história de vida de uma mãe com o filho violento. Ela procurava uma forma de lidar com a situação e de se proteger. A história de Mamã é ficção pura, uma história que Xavier pôde imaginar depois de ter lido a carta dessa mãe no jornal, sobre o seu desespero com o filho que tinha graves problemas de comportamento e ela inquieta em relação ao futuro da criança e ao seu futuro - e com medo de ser violentada pelo filho. Isso perturbou Xavier e ele inventou uma história; não tem nada a ver com o que observava no meio em que vivia.
Todos os seus filmes são feitos de som e de fúria, as coisas são sempre exacerbadas, fala de seres que pedem muito. O miúdo de Mamã é doente, é alguém que passa por estados de alma diferentes: um acontecimento banal pode fazê-lo atingir limites, e nessas ocasiões teria necessidade de um médico, de uma equipa para o acalmar. A mãe não tem meios, só tem amor, mas isso não é suficiente, não se pode curar alguém só porque o amamos. E há um momento em que é ela que passa a estar em perigo.
É uma história de fusão, de folie à trois...
Absolutamente. São três seres diferentes e cujo encontro - veja-se a cena em que dançam ao som de Céline Dion - faz a luz aparecer. Tudo parece possível. O que é doloroso no filme, e que faz com que as pessoas sejam tocadas por ele, é que sabemos que um mundo melhor não vai acontecer. São sobreviventes, de alguma forma, é o encontro com o rapaz que vai permitir que os espíritos se apazigúem momentaneamente.
Como é que a energia tão extraordinária de Antoine Olivier Pilon, intérprete da personagem do filho, pôde ter ajudado a varrer aquilo que vinha sendo uma das marcas do cinema de Dolan, o narcisismo? Antoine Olivier trabalhara com Dolan no videoclip College Boy, dos Indochine. Mas você e Suzanne Clément são detentoras de uma parte da história do cinema dele...
... Xavier veio ter comigo quando ele tinha 15 anos...
Há uma energia, uma forma de trabalhar, que as duas já conheciam. Como é que Antoine Olivier pôde habitar essa fusão?
Xavier adoptou-o. Antoine começou cedo, Xavier viu-o em filmes, na televisão, e foi tocado por ele. Pensou nele para o clip. Um tem 16 anos e outro 25, mas não estão assim tão afastados em termos geracionais. É como se ele fosse o irmão mais novo de Xavier. Xavier é um adulto, mas é capaz de ser uma criança, de se divertir com Antoine. Rimo-nos muito com Xavier. Não foi difícil trazer Antoine Olivier para esta energia, já que Xavier está mais próximo da idade dele do que da minha.
Eu já tinha trabalhado com Antoine Olivier, mas qualquer resto de incómodo que pudesse subsistir entre nós desaparecia com Xavier no plateau. Olivier tornou-se, por isso, o meu companheiro de jogo, o meu filho adoptivo. E foi assim também com Suzanne, partilhámos um filho. Não há fronteiras nem gerações entre actores: somos companheiros de jogo, capazes de rir juntos, com a mesma vontade de nos abandonarmos às mãos de um realizador em que confiamos - quando não compreendíamos o que ele queria, Xavier respondia sempre com doçura e muitas vezes mudava as coisas, transformava-as, sem condescendência.
É interessante que diga isso, aliás reforçando relatos seus sobre o Dolan dos primeiros filmes, que não sabia o que fazer e perguntava ao director de fotografia o passo seguinte... Não é a imagem que mostra nas entrevistas e nas conferências, em que é afirmativo, sabe tudo e faz tudo...
Ele é apaixonado por várias coisas, gosta de interpretar, gosta de participar na escolha do guarda-roupa, ouve música, não pára... quer ver tudo, ouvir tudo. Mas é normal: tendo ele ideias na cabeça, o tempo que vai levar para conseguir passar isso a alguém vai exigir tempo e dinheiro. Não é por pretensão. Mas é capaz de dizer: "enganei-me." Isso é a marca dos artistas. Há um lado de dúvida em Xavier, de novo a marca dos artistas. É claro que a imagem pública é a que resulta de exposições de cinco minutos. Não pode ser isso a servir de julgamento. Acontece termos uma ideia negativa de alguém que vemos na televisão, ideia que muda no momento de um encontro e que nos leva a dizer: “afinal, enganei-me”. Somos monstros numa noite e anjos na manhã seguinte. É essa a candura dos seres humanos, e fazemos filmes para mostrar isso. As personagens de que Xavier fala são daquelas que ao passarem na rua são logo julgadas. Tentamos fazer um retrato delas mais íntimo, profundo.
Há um território humano nesse cinema, de facto: gente que fala de uma certa maneira - não me refiro só ao sotaque quebequense -, a agressividade do calão...
... a vulgaridade. Nem todos falam assim no Quebeque. Mas os artistas têm a capacidade de fazerem com a realidade aquilo que quiserem. A língua de Racine não existe. É inventada, embora nunca se ponha em causa a verdade das suas personagens. Em Mamã é sublinhada a vulgaridade, veja-se a minha personagem, os jeans apertados, as dobras nas costas, as t-shirts adolescentes... não é que as pessoas se vistam todas assim, é uma “língua” crua, que se ouve às vezes. Esta é uma mulher que não tem vocabulário, falta-lhe verniz e cultura mas sobra-lhe inteligência. É uma personagem que existe na ficção a partir das pessoas que Xavier via no seu subúrbio. É uma língua que existe entre nós, mas é exagerada, tornada objecto de criação.
Forma de Dolan criar a sua linguagem...
Sim, como nas roupas, como nas cores.
Ficaram decepcionados por não terem recebido a Palma de Ouro de Cannes, já que era o filme de que se falava e se todos falavam, vocês devem ter ouvido...?
Todos os filmes que competem em Cannes não vão atrás da medalha de Bronze. Todos sonham com a Palma de Ouro. Ele sonhava ir a Cannes, já era muito. Mas ficou feliz com o prémio que recebeu. A decepção durou um segundo. Quando rodava o primeiro filme, dizia: “Quero ir a Cannes”. E eu: “Bem podes querer! Nem sairá nos ecrãs, quanto mais Cannes...” Ele é que tinha razão. Falta-me se calhar algo para sonhar assim. Tem a ver com a idade: sonha-se de maneira diferente.