Obama evita nova paralisação do governo mas divide Partido Democrata
Câmara dos Representantes aprova lei orçamental até Outubro de 2015 com duas exigências que a ala mais à esquerda dos democratas considera ser uma "chantagem".
Se não houvesse acordo até às 24h00 de quinta-feira, vários serviços garantidos pelo governo dos Estados Unidos em todo o país teriam de ser encerrados, total ou parcialmente, tal como aconteceu durante 16 dias em Outubro do ano passado.
Para evitar a repetição desse cenário (que foi um duro golpe para a imagem de todos os responsáveis políticos, do Congresso à Casa Branca), um grupo de representantes do Partido Republicano e do Partido Democrata desenhou este ano uma lei orçamental com o objectivo de libertar mais de um bilião de dólares (cerca de 800 mil milhões de euros) para garantir o funcionamento de quase todos os braços do governo até ao final de Setembro de 2015. O problema é que a aprovação deste orçamento exigia de ambos os lados concessões que nem todos estavam dispostos a fazer.
Numa semana marcada pela revelação da prática de tortura por agentes da CIA após os ataques de 11 de Setembro de 2001, e pela continuação dos protestos contra a morte de cidadãos negros por polícias brancos, os membros da Câmara dos Representantes viram cair-lhes no colo um documento com 1603 páginas, que teriam de ler, estudar e votar em apenas dois dias se quisessem evitar uma nova crise na política norte-americana.
Ao contrário do que aconteceu no ano passado, quando a determinação em não financiar a reforma no sector da saúde conhecida como Obamacare levou os membros mais à direita do Partido Republicano a liderar a ameaça de paralisação do governo, este ano foi a ala mais liberal do Partido Democrata a tentar fazer valer os seus princípios.
Em causa estão duas polémicas propostas incluídas no documento de 1603 páginas (uma delas inserida na página 1599), que levaram a líder da minoria na Câmara dos Representantes, a democrata Nancy Pelosi, a liderar uma autêntica rebelião contra o Presidente Barack Obama (ou vice-versa), coordenada com a senadora Elizabeth Warren, um nome muito falado para a corrida à Casa Branca em 2016 pelo lado mais à esquerda do Partido Democrata.
Ao aprovarem a lei orçamental que evita a paralisação do governo, os membros da Câmara dos Representantes aprovaram também um enorme aumento dos limites para o financiamento dos partidos por particulares (de 97.200 dólares para 777.600 dólares) e reverteram uma das principais medidas aprovadas após a crise financeira de 2007-2008 – em termos gerais, os contratos derivados de alto risco, que estiveram na base da crise, voltam a estar cobertos pelo dinheiro dos contribuintes, um duro golpe para a grande reforma financeira aprovada em 2010 conhecida como Dodd-Frank, e uma vitória para Wall Street.
"Estou muito desiludida com o facto de a Casa Branca achar que a única forma de aprovar esta lei é concordar com isto", lamentou a democrata Nancy Pelosi, num discurso em que classificou todo o processo como "uma chantagem" da parte do Partido Republicano.
Feito à medida de Wall Street
No editorial de sexta-feira, o jornal The New York Times refere-se à lei orçamental como um documento "escrito em segredo, apresentado como uma alternativa de pegar ou largar para evitar uma paralisação do governo", e acusa os seus responsáveis de conluio com o sector financeiro: "O segundo anexo, feito à medida dos bancos de Wall Street, tem como finalidade matar uma parte crucial da reforma Dodd-Frank, cujo objectivo é conter a especulação negligente dos bancos em derivados complexos que alimentou o ignominioso colapso de 2008 e a grande recessão."
De acordo com o mesmo jornal, esta mudança não só feita à medida do sector financeiro, como foi de facto elaborada pelo sector financeiro, nomeadamente pelo Citigroup. Em 2013, o lóbi do sector conseguiu fazer passar a mesma alteração à lei na Comissão de Serviços Financeiros da Câmara dos Representantes; segundo o The New York Times, "mais de 70 linhas da lei aprovada pela comissão, que tinha 85 linhas, incluíam as recomendações do Citigroup."
As tentativas da ala mais à esquerda do Partido Democrata para retirar da lei os dois polémicos anexos acabaram por ser frustradas pela Casa Branca, que manifestou o seu apoio público ao acordo quando se tornou evidente que havia uma revolta entre as suas fileiras – Obama não queria arriscar uma nova paralisação do governo e, acima de tudo, queria evitar que a discussão passasse para 2015, ano em que o Partido Republicano assumirá a maioria nas duas câmaras do Congresso (a Câmara dos Representantes e o Senado), o que poderia deixar os democratas numa posição ainda mais frágil para negociar uma lei orçamental.
Com este acordo – que deverá ser aprovado pelo Senado neste sábado e ratificado logo a seguir pelo Presidente Barack Obama –, a Casa Branca obtém pequenas vitórias, para além da vitória para todos que é a não paralisação do governo: o Congresso não corta as verbas já destinadas ao Obamacare, apesar de não lhe conceder novo financiamento; o Departamento de Estado, o Departamento de Saúde e as autoridades locais recebem verbas para programas relacionados com a imigração; e as autoridades locais de educação ganham mais autonomia para instituírem os padrões de nutrição defendidos por Michelle Obama.
Do outro lado, várias vitórias e uma declaração de guerra para daqui a menos de três meses: cortes substanciais no financiamento da Agência de Protecção Ambiental e do IRS (Internal Revenue Service, o equivalente à Direcção-Geral das Finanças em Portugal); proibição da transferência de detidos em Guantánamo para prisões nos Estados Unidos; e financiamento do Departamento de Segurança Nacional apenas até ao final de Fevereiro de 2015.
Ainda assim, o facto de o speaker da Câmara dos Representantes, o republicano John Boehner, ter concordado com o financiamento do Departamento de Segurança Nacional por três meses provocou uma outra rebelião, desta vez no seio do Partido Republicano – o sector mais conservador queria deixar o serviço sem dinheiro e impedir que o Presidente Barack Obama arrancasse já com o seu programa para travar a deportação de milhões de imigrantes que vivem e trabalham nos Estados Unidos, mas o máximo que a liderança da sua bancada conseguiu foi adiar a questão para Março, como fez questão de avisar Steve Scalise, um dos líderes da maioria republicana na Câmara dos Representantes: "Marcámos o palco para uma batalha contra o Presidente sobre as suas acções ilegais em relação à imigração para quando tivermos um Senado republicano, dentro de apenas quatro semanas. A batalha vai ser travada de uma forma muito dura, não apenas na Câmara dos Representantes, mas também num Senado republicano."