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Ele é do nosso tempo

Uma caixa com dois DVDs que comentam a vida e o cinema de Charlie Chaplin. E que ajudam o espectador a levantar-se.

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Pressente-se um vai-e-vem discresto entre universos, entre biografias: Bertolucci, Chabrol, os Dardenne, Kiarostami... sobre Chaplin
O par de DVDs que compõe Chaplin Hoje não é dirigido a especialistas ou a cinéfilos nostálgicos. Não é, também, um produto publicitário, como tantos que por aí pululam, no rasto de efemérides e aniversários. É um objecto que abre ao espectador as diferentes dimensões que constituem o cinema de Charlie Chaplin. O cinema e, acrescente-se, a vida, pois as duas misturam-se, andam a par nos dez filmes que compõem esta caixa. Cada um tem a duração aproximada de 30 minutos e fez-se, com a supervisão de Serge Toubiana, à volta de uma obra específica do cineasta inglês. A selecção é irrepreensível: de O Garoto (1921), passando por O Grande Ditador (1940), até a um Rei em Nova Iorque (1957), a melhor filmografia de Chaplin é comentada, redescoberta e analisada com o contributo de Bernardo Bertolucci, Jim Jarmusch, Abbas Kiarostami, Claude Chabrol, entre outras personalidades. As cabeças falantes aparecem inevitavelmente e, apesar de algumas assinaturas distintas (Edgardo Cozarinsky, Alain Bergala ou Bernard Einsenchitz), o registo não se afasta das convenções do formato, o que é compreensível. Chaplin Hoje encontra o seu destinatário no homem que ainda partilha uma cultura comum com os outros e que ainda ri com os outros.

Há uma acessibilidade que é lograda no modo como os gags ou as sequências mundialmente famosas alternam com as imagens documentais, com as fotografias, com os newsreels, com as cenas de uma intimidade. A esta eloquência juntam-se os olhares dos cineastas convidados, quase todos fecundos, quando não emocionados. Percebe-se que alguns aproveitaram a ocasião para revisitar certo filme e, quem sabe até, para nela projectarem, por curtos momentos, as suas relações com o cinema. Pressente-se um vai-e-vem discreto entre universos, entre biografias. Bertolucci entende na morte de Calvero, o palhaço de As Luzes da Ribalta (1953) a morte do próprio Chaplin, e chama a atenção do espectador para um detalhe: o pano que cobre o rosto de palhaço envelhecido e esquecido não é um lençol, sugere, mas uma tela branca, a tela branca de cinema. O que quererá ao certo dizer? Que morreu Chaplin, morreu o cinema? Na sua última frase, apesar de ambígua, o italiano fala da possibilidade de um renascimento, mas não o descreve. Deixa-nos apenas a sequência da dança musicada por Chaplin.

Quando rodou As Luzes da Ribalta, Chaplin já não era uma figura querida pelas autoridades americanas. O macarthismo transformara-o num inimigo do país no qual se afirmara como artista, autor e comediante. Os efeitos desse antagonismo figuram emocionalmente em vários filmes, como sombra primeiro, como trauma depois. Chaplin faz Um Rei em Nova Iorque (1957), filme político chama-lhe Jim Jarmusch, que nele se revê (há uma linhagem curiosa a assinalar entre ambos), mas sobretudo amargo, dorido, complexo. Como também era o homem por detrás do artista, esse “pai difícil” que, diz Michael Chaplin (nesse filme, a criança a quem os autoridades roubaram os pais comunistas), encarnava um marginal no cinema, mas detestava ver as gralhas a picarem a relva da sua casa na Suíça. Em O Barba Azul Claude Chabrol descreve-o como um cineasta moderno. Não era um técnico irrepreensível, mas repetia as cenas incansavelmente até encontrar a imagem e o tempo certos. Um criador fabuloso e um autor inteligente, arguto, que coloca na boca de Monsier Verdoux a frase terrível: “Os números consagram” ou que em resposta à acusação de assassino e ladrão, faz aquele responder “Não, só faço negócios”. Se em Luzes da Ribalta morreria Chaplin, em O Barba Azul era Charlot que desaparecia, na guilhotina, remata Chabrol.

Não faltam nos dois DVDs, imagens de story-boards, de documentos visuais, memórias descritivas da produção. Para os estudiosos de cinema, Chaplin Hoje tem material rico e certamente útil que, associado aos comentários dos convidados, exige várias revisões. No entanto, é com as redescobertas dos filmes pelos outros cineastas que este objecto se torna interpelador. Fica aqui uma dessas interpelações, trazida pelo reencontro dos Irmãos Dardenne com Tempos Modernos. Lembram-se de Rosetta (1999)? No fim da obra homónima, alguém ajuda a jovem mulher a levantar-se. Sessenta e três anos antes, Charlot inaugurara esse gesto. “Vamos, anda, levanta-te”, disse em 1936 o vagabundo a uma mulher confusa e desiludida. Sim, Charlot, Charlie, Chaplin ainda existe hoje. É do nosso, deste tempo.

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