Ele é do nosso tempo
Uma caixa com dois DVDs que comentam a vida e o cinema de Charlie Chaplin. E que ajudam o espectador a levantar-se.
Há uma acessibilidade que é lograda no modo como os gags ou as sequências mundialmente famosas alternam com as imagens documentais, com as fotografias, com os newsreels, com as cenas de uma intimidade. A esta eloquência juntam-se os olhares dos cineastas convidados, quase todos fecundos, quando não emocionados. Percebe-se que alguns aproveitaram a ocasião para revisitar certo filme e, quem sabe até, para nela projectarem, por curtos momentos, as suas relações com o cinema. Pressente-se um vai-e-vem discreto entre universos, entre biografias. Bertolucci entende na morte de Calvero, o palhaço de As Luzes da Ribalta (1953) a morte do próprio Chaplin, e chama a atenção do espectador para um detalhe: o pano que cobre o rosto de palhaço envelhecido e esquecido não é um lençol, sugere, mas uma tela branca, a tela branca de cinema. O que quererá ao certo dizer? Que morreu Chaplin, morreu o cinema? Na sua última frase, apesar de ambígua, o italiano fala da possibilidade de um renascimento, mas não o descreve. Deixa-nos apenas a sequência da dança musicada por Chaplin.
Quando rodou As Luzes da Ribalta, Chaplin já não era uma figura querida pelas autoridades americanas. O macarthismo transformara-o num inimigo do país no qual se afirmara como artista, autor e comediante. Os efeitos desse antagonismo figuram emocionalmente em vários filmes, como sombra primeiro, como trauma depois. Chaplin faz Um Rei em Nova Iorque (1957), filme político chama-lhe Jim Jarmusch, que nele se revê (há uma linhagem curiosa a assinalar entre ambos), mas sobretudo amargo, dorido, complexo. Como também era o homem por detrás do artista, esse “pai difícil” que, diz Michael Chaplin (nesse filme, a criança a quem os autoridades roubaram os pais comunistas), encarnava um marginal no cinema, mas detestava ver as gralhas a picarem a relva da sua casa na Suíça. Em O Barba Azul Claude Chabrol descreve-o como um cineasta moderno. Não era um técnico irrepreensível, mas repetia as cenas incansavelmente até encontrar a imagem e o tempo certos. Um criador fabuloso e um autor inteligente, arguto, que coloca na boca de Monsier Verdoux a frase terrível: “Os números consagram” ou que em resposta à acusação de assassino e ladrão, faz aquele responder “Não, só faço negócios”. Se em Luzes da Ribalta morreria Chaplin, em O Barba Azul era Charlot que desaparecia, na guilhotina, remata Chabrol.
Não faltam nos dois DVDs, imagens de story-boards, de documentos visuais, memórias descritivas da produção. Para os estudiosos de cinema, Chaplin Hoje tem material rico e certamente útil que, associado aos comentários dos convidados, exige várias revisões. No entanto, é com as redescobertas dos filmes pelos outros cineastas que este objecto se torna interpelador. Fica aqui uma dessas interpelações, trazida pelo reencontro dos Irmãos Dardenne com Tempos Modernos. Lembram-se de Rosetta (1999)? No fim da obra homónima, alguém ajuda a jovem mulher a levantar-se. Sessenta e três anos antes, Charlot inaugurara esse gesto. “Vamos, anda, levanta-te”, disse em 1936 o vagabundo a uma mulher confusa e desiludida. Sim, Charlot, Charlie, Chaplin ainda existe hoje. É do nosso, deste tempo.