Estudo sobre Hepatite C estima que novos tratamentos evitem 500 transplantes até 2030
Trabalho avaliou impacto dos medicamentos inovadores a travar a infecção em Portugal. Só que o preço pedido pelo laboratório, considerado "imoral" pelo ministro da Saúde e pelo Infarmed, tem atrasado a aprovação do uso destes fármacos em larga escala.
O trabalho Hepatite C: Um Modelo de Saúde Pública, que foi integrado num estudo de âmbito internacional já publicado no Journal of Viral Hepatitis, estima que anualmente as infecções pelo vírus da hepatite C matem 1000 pessoal em Portugal e que a despesa pública com esta doença seja de 7,5 milhões de euros só em medicamentos. Somando todos os tratamentos e cuidados associados, as contas apontam para uma factura de 70 milhões de euros, gastos sobretudo nas fases mais avançadas, em que a hepatite C evolui para situações de cirrose e de cancro.
Jorge Félix, director da consultora Exigo e coordenador da parte portuguesa do trabalho, que contou com o apoio de uma das farmacêuticas detentoras dos fármacos inovadores, a Gilead Sciences, explica que os cenários foram traçados para 2030 “por estarmos perante uma doença de evolução lenta e muitas vezes assintomática”, já que o vírus que afecta o fígado pode demorar mais de dez anos a manifestar-se. Aliás, mesmo em termos de prevalência, as contas da Organização Mundial de Saúde apontavam para que o país tivesse entre 100 mil e 150 mil pessoas infectadas, na maior parte dos casos sem saberem, mas dados recentes do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto indicam que serão no máximo 50 mil. Em 25% dos casos a doença, que resulta normalmente de contacto com sangue ou fluídos corporais infectados, tem cura espontânea, pelo que algumas pessoas nunca chegam a saber que estiveram infectadas.
“Estimámos que, até 2030, excluindo os custos dos medicamentos e se continuarmos com o padrão que conhecemos à data de hoje, o país irá incorrer em custos de 2100 milhões de euros”, sublinha Jorge Félix. Introduzindo as novas terapêuticas já aprovadas pelos organismos europeus, mas que a Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) ainda está a avaliar por o valor apontado por doente ser de 48 mil euros – o que já foi considerado “imoral” pelo ministro da Saúde –, o investigador estima uma poupança de 736 milhões de euros dos 2100 milhões referidos.
“Quem fala no custo estrondoso esquece-se de mencionar os efeitos do tratamento. O que nós estimamos é que até 2030 se possa reduzir em 74% a mortalidade prematura, em 88% o número de carcinomas do fígado, em 80% os transplantes e em 85% a progressão para cirrose descompensada”, afirma Jorge Félix. Isto significaria “evitar 8526 mortes prematuras, 1600 carcinomas, 458 transplantes hepáticos e 3564 cirroses descompensadas”. Com um adiamento de dois anos da entrada destes fármacos, o trabalho aponta para uma perda de 182 milhões de euros.
O infecciologista Francisco Antunes, que tem acompanhado no terreno a evolução do tratamento da hepatite C, reconhece a necessidade de o preço ser negociado com os laboratórios, até porque a vizinha Espanha acabou por conseguir um acordo que fez descer o preço por tratamento para 25 mil euros. E em países como o Egipto o valor é inferior a 1000 euros. Mas alerta que “estão estabelecidas neste momento várias barreiras no acesso ao tratamento da hepatite C. Por um lado, temos a complexidade dos tratados do passado e, por outro, o custo dos tratamentos actuais.”
O professor catedrático do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa especifica que se está a falar da diferença entre tratar alguém com “terapêuticas prolongadas, injectáveis, e por períodos de 12 meses, com efeitos colaterais e com taxas de resposta que atingem os 75%” ou com “um fármaco de fácil administração, com possibilidade de cura superior a 90% em tratamentos de oito, 12 ou 24 semanas”. “Os novos tratamentos são praticamente isentos de efeitos adversos e têm eficácia mais elevada”, resume o médico, para quem é “preocupante” que o acesso ao tratamento esteja dependente de pedidos de utilização excepcional, geridos de forma diferente entre hospitais e apenas para doentes “em risco de vida que, pelas complicações a que chegaram, acabam por beneficiar de uma eficácia mais reduzida” do fármaco.
Por isso mesmo, Jorge Félix, ainda em termos de custos para o Serviço Nacional de Saúde, defende que é preciso “desmistificar a ideia de que temos de tratar os doentes todos hoje”, até porque há “critérios clínicos bem definidos” e nem todos as pessoas infectadas estão diagnosticadas. O coordenador defende que o actual modelo de financiamento dos hospitais seja revisto, passando a ter em consideração os custos futuros que as unidades deixam de ter e os recursos que têm de alocar aos tratamentos mais antigos e morosos.
“É urgente definir um pacote especial, nem que seja com verbas de fora do sector da saúde”, reforça Jorge Félix, explicando que deve ser destinado a estes e outros medicamentos inovadores “que são uma mais-valia”. “Há muitas outras terapêuticas no Serviço Nacional de Saúde mais caras que estas e que não são questionadas”, acrescenta. A proposta do estudo é que se faça uma “entrada progressiva” com um tratamento de 1600 doentes ao ano nos primeiros dois anos, duplicando-se o número nos dois anos subsequentes. Em 2020 o país já deveria tratar mais de 6000 doentes por ano, para chegar a 2030 “perante um cenário que a Organização Mundial de Saúde designa como a quase eliminação da patologia e que corresponderia a menos de 15 mil casos”.