Caso dos vistos gold "pode gerar situações sensíveis com o Estado chinês"

Os vistos dourados não são apenas uma questão económica, e “têm uma elevada sensibilidade política”, diz Miguel Santos Neves, especialista em questões chinesas.

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Miguel Neves começou a estudar as questões chinesas na década de 90 Daniel Rocha

A maior parte dos visto gold concedidos por Portugal estão ligados aos investimentos em imobiliário, e quem mais têm recorrido a este regime são cidadãos chineses. O que explica este fenómeno? Que tipo de investidores são estes?
O investimento em imobiliário representa mais de 90% do total de vistos, 80% dos quais foram atribuídos a cidadãos chineses. Estes investidores são essencialmente membros da nova classe média chinesa com elevado poder de compra, incluindo quadros das estruturas do Estado e grandes empresas estatais e empresários, que concretizam estes investimentos com diversas motivações: reforço do prestígio social associado à compra de activos na Europa; pequenos e médios empresários que procuram diversificar riscos face a incertezas da economia chinesa; obtenção de um visto de residência por razões de segurança e/ou melhoria da qualidade de vida.  

O aumento significativo de cidadãos chineses é explicado por três factores essenciais. Em primeiro lugar, a motivação de procura de segurança jurídica por parte dos principais beneficiários do crescimento económico chinês que pretendem proteger a sua recente riqueza acumulada e não encontram na China as garantias jurídicas necessárias em resultado da inexistência de um estado de direito consolidado onde o risco de confisco arbitrário existe. Este investimento e a obtenção do visto de residência constitui uma "apólice de seguro", um “plano b” caso algo corra mal na China.  Por outro lado, alguns observadores têm notado que os fluxos de capitais provenientes da China têm  aumentado em paralelo com a intensificação das campanhas internas de combate à corrupção em curso. Trata-se de um processo de grande escala que originou até a criação de empresas especializadas como a China Business Immigration (CBIEC) baseada em Shenzhen.

Em segundo lugar, o cancelamento pelo Canadá em Fevereiro de 2014 do seu "immigrant investor programme"de concessão de vistos a empresários, activo desde 1986 e um dos mais procurados por investidores chineses. Este cancelamento deixou cerca de 45.000 candidaturas de investidores chineses pendentes e redireccionou a procura para outros países com sistemas de golden visa, entre os quais Portugal.

Em terceiro lugar, o novo fluxo de investimentos chineses de grande escala em Portugal a partir de 2011, concretizados na sua maioria por grandes empresas estatais, foi um catalizador dos investimentos ao abrigo do golden visa. Os investimentos de grande escala são um sinal político da prioridade atribuída pela China a Portugal e arrastaram consigo investidores de média dimensão que, para além de aproveitarem oportunidades geradas pela própria crise económica, também encaram a crescente presença e influência de grandes empresas estatais chinesas como um factor de redução de riscos políticos e "protecção" dos seus investimentos.

O predomínio de investimentos associados à aquisição de imobiliário e a reduzida expressão das outras modalidades - investimento produtivo ou criação de postos de trabalho -  significa que o objectivo prioritário é a obtenção do visto e não tanto um projecto empresarial. De alguma forma o sistema ainda está a ser testado pelo que, numa primeira fase, os investidores optaram pela modalidade que envolve menor grau de risco. 

 Estes são investidores com alguma capacidade financeira, uma vez que é necessário um investimento imobiliário de 500 mil euros ou superior. Pode-se antecipar o alargamento dos negócios de alguns destes investidores em Portugal?
Em geral são investidores com significativa capacidade financeira mas que, face à natureza recente do sistema do golden visa em Portugal, têm escolhido a modalidade que envolve menor exposição ao risco e menos compromissos futuros. Quanto ao alargamento futuro dos investimentos e a inclusão de investimentos produtivos, até agora não visíveis, esse é um cenário possível. Com efeito, por um lado a concretização de um processo de investimento de longo prazo requer mais tempo e planeamento. Por outro lado, alguns destes investimentos em imobiliário poderão funcionar para os investidores como um teste, para aferirem como corre o processo e a relação com as instituições públicas antes de se comprometerem com investimentos mais significativos e de maior risco. Assim, numa segunda fase poderemos assistir à concretização de investimentos de maior dimensão por parte destes investidores de média dimensão. Alguns desses investimentos poderão até ter alguma ligação operacional aos investimentos chineses de grande escala já concretizados ou que venham ainda a realizar-se nos próximos meses.

 A “Operação Labirinto” veio mostrar a existência de corrupção na concessão destes vistos, com o envolvimento de detentores de algos cargos públicos e cidadãos chineses. Como vê este caso?
Trata-se de um caso muito grave que  criou uma mancha em todo o processo, levantando questões sobre as especiais exigências institucionais na sua gestão. Face à enorme  e crescente procura de vistos de residência por parte de cidadãos chineses, agravada pelo cancelamento do sistema canadiano, a  pressão sobre o sistema é muito grande o que requer uma capacidade institucional robusta para controlar as diferentes dimensões associadas: de imigração; de segurança, ligadas designadamente ao risco de branqueamento de capitais envolvido no processo; e políticas, considerando que alguns dos processos envolvem "capital de refúgio" e podem gerar situações sensíveis com o Estado chinês. Os vistos dourados não são apenas uma mera questão económica de atracção de investimento, têm uma elevada sensibilidade política. Neste contexto, a situação de corrupção a alto nível que está a ser investigada, evidencia não só um problema endémico na estrutura do Estado mas também que não estamos ainda preparados para lidar com operações desta escala as quais, para além de criarem novas exigências, têm o potencial de se transformarem elas próprias num factor adicional de agravamento da corrupção e de outras formas de criminalidade. Espero que este episódio seja apenas um caso excepcional e não um mau presságio no novo quadro de transformação estrutural do relacionamento económico e político Portugal-China que iniciámos em 2012 e que será muito relevante para a economia portuguesa. Infelizmente, quer Portugal quer a China se debatem com problemas sérios e endémicos de corrupção pelo que terão de cooperar de forma estreita para combater este fenómeno.    

 

 

 

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