Investimento estratégico chinês em Portugal “está agora a começar”
Miguel Santos Neves, investigador e especialista em assuntos chineses, destaca que Portugal e a UE estão a olhar passivamente para o investimento chinês, sem uma resposta adequada às acções concertadas do gigante asiático.
Há um antes e depois no relacionamento entre a China e Portugal a partir de 2011, com os investimentos avultados de empresas estatais chinesas na EDP e REN. Seguiu-se a Fosun, que ficou com a Fidelidade, entrou na REN e ganhou a corrida à ES Saúde. Como analisa estes investimentos?
No quadro de relacionamento entre Portugal e a China houve uma fase completamente centrada na questão de Macau, até à transição. Depois há outra fase, de relativo declínio, sem essa componente política e com relações económicas marginais entre os Estados. E, desde o final da década de 2000, começou a haver uma transformação muito significativa que resultou da confluência de dois factores: por um lado, a crise económica e financeira [a nível mundial], seguida da crise na zona euro e da necessidade de ajustamento em Portugal e, por outro lado, uma aceleração do processo “go global” da China, lançado no início da década de 2000. Estes dois processos cruzaram-se em Portugal, com as oportunidades de investimento que resultaram do programa de privatizações, e a intenção que a China tem de se envolver também em zonas de interesse português, o espaço lusófono, como Brasil, Angola e Moçambique. Além disso, a China vinha à procura de um conjunto de activos que permitissem às suas empresas campeãs uma consolidação da posição na economia global. Há de facto uma mudança qualitativa no relacionamento entre os dois países desde 2011, por duas razões. Verifica-se uma intensificação dos fluxos económicos, sem precedentes, entre os dois países, com a China a ter uma posição marcante em vários sectores estratégicos. E isso não parou, está agora a começar. Mas, sendo a China um actor global, Portugal é apenas uma peça de uma estratégia muito mais abrangente e isso vai ter implicações para o nosso posicionamento na economia global e no nosso próprio relacionamento com a União Europeia
Vê riscos nestes investimentos?
Os riscos resultam da inexistência de uma estratégia para lidar com esta mudança tão significativa. Podemos ter algum risco no plano económico, com vários sectores estratégicos controlados, no fundo, pela mesma entidade: o Estado chinês. Porque são investimentos de empresas estatais, onde há uma coordenação.
A Fosun não é estatal.
A Fosun é uma empresa privada, mas os privados também têm recurso às chamadas ajudas de Estado, e estão integradas numa estratégia definida pelo Estado chinês. É de facto privada e não podemos confundir tudo, mas tem uma relação de grande proximidade em relação ao governo chinês, até pela via do financiamento. Em muitos casos, são os bancos públicos que garantem os meios para este processo de internacionalização.
Estava a referir-se à vertente política…
A questão da vertente política tem a ver com a margem de manobra da decisão, à medida que o investimento chinês vai ganhando maior expressão e diversificando-se por vários sectores, mas, também, com o nosso relacionamento com os países da União Europeia. Este investimento e o reforço da influência da China em Portugal também tem implicações para a gestão das relações entre a União Europeia e a China que, desde há muito tempo, demostrou pretender evitar uma frente coesa que negoceie e proponha um conjunto de regras no relacionamento bilateral. A melhor estratégia é, obviamente, ir dividindo e criar divergência de interesses entre os vários países europeus. Essa é uma questão política que tem de ser ponderada. Portugal está a entrar por completo na lógica da China, com a primazia de um relacionamento bilateral, assimétrico. Acho que Portugal não deve ficar prisioneiro dessa relação, porque isso vai criar problemas futuros.
O relacionamento bilateral de que fala é também muito unidireccional. Muito dificilmente uma empresa portuguesa seria o maior accionista de uma grande eléctrica chinesa…
Exactamente. E esse é um problema não só de Portugal mas também dos outros Estados europeus, que passa pela inexistência de reciprocidade ao nível destes investimentos. Isso fazia parte do pacote de negociação, mas se neste momento a entrada de empresas chinesas em sectores como o financeiro e a energia é feita sem grandes restrições, acho difícil que seja possível alguma reciprocidade no futuro. A posição negocial está enfraquecida. É por isso que se questiona se não devia haver uma estratégia coordenada no âmbito da União Europeia para lidar com esta questão, sobretudo com o investimento de empresas estatais em sectores estratégicos, através de uma visão integrada. Saber qual é o impacto de investimentos no mesmo sector em diversos Estados membros [a State Grid, por exemplo, já entrou na congénere da REN em Itália], e o que é que isso significa para o mercado único, é algo que ainda não está avaliado.
Essa falta de visão integrada é um erro.
É um erro. A Europa está passivamente a olhar para o investimento chinês. É claro que este dá um contributo no imediato, é capital que entra e permite ajudar o financiamento de algumas grandes empresas, mas, a prazo, tem outras consequências que não estão a ser antecipadas, nem há uma estratégia de resposta.
Que tipo de consequências?
Do ponto de vista do país, envolve a perda de relevância num conjunto de empresas que seriam importantes para a afirmação de Portugal na economia global. O exemplo da China mostra que a existência de empresas estratégicas, com o apoio do Estado, é hoje essencial. A ideia de que estamos perante um mercado global, de concorrência, é em parte falacioso. Há uma crescente interferência de factores políticos, e os Estados, numa lógica de diplomacia económica, têm de estar activos na promoção de interesses, sejam ou não accionistas. Assistimos hoje a um entrecruzamento muito significativo entre a economia e política.
Portugal poderá investir mais na China?
Pode-se supor que poderão haver algumas oportunidades de investimentos portugueses na China, mas não em sectores estratégicos, que sejam de alguma forma propiciados pelas empresas chinesas que aqui estão. É uma hipótese, em teoria. E a China, quando investe aqui, também está a pensar no seu mercado interno, para estar preparada para concorrer com outros grandes players internacionais. O caso da Fosun é claro. Seguros de saúde e fundos de pensões são dos produtos mais procurados pela classe média chinesa, que procura segurança face ao futuro. E, na China, a capacidade de resposta é limitada, sabendo que, no âmbito dos acordos comerciais, tem de estar preparada para o mercado não ser controlado por grandes multinacionais estrangeiras. Está agora a ganhar essa capacidade para poder competir no seu mercado. A China poderá mobilizar outras empresas portuguesas, que não controla mas que cooperam com as suas empresas, para criar uma resposta sólida no mercado chinês. Mas isto é uma hipótese, não quer dizer que se venha a concretizar.
Um dos factores que ajudou as empresas estatais chinesas a entrar na REN e na EDP foi, além do preço, a envolvente de grandes linhas de financiamento. A forma como a Europa lidou com a crise dos países periféricos, como Portugal, onde o acesso ao crédito parou, facilitou a entrada da China?
As hesitações e as deficiências da resposta europeia à crise abriram claramente as portas à China, que agarrou a oportunidade. Acho que, do ponto de vista chinês, é um pouco incompreensível que uma comunidade que pretende reforçar o seu peso e influência em termos da economia global, reaja desta maneira a uma crise global. Certo é que a China aproveitou essa oportunidade para cimentar a sua posição no seio da União Europeia.
Há então uma visão de curto prazo, contra uma de médio-longo prazo da China. Além disso, ninguém nas instâncias europeias está a acompanhar o investimento que está a chegar a uma enorme velocidade, de forma aparentemente dispersa mas concertada?
Essa é uma discrição muito correcta. No caso de Portugal, e de outros Estados europeus, há uma visão essencialmente de curto prazo, de resposta a problemas imediatos, como os de financiamento.
Há também uma componente ideológica, no que diz respeito às privatizações.
Claro. A China, sendo um dos campeões da globalização, tem um Estado extremamente interveniente e que comanda o processo de intervenção na economia global. Se há algo a aprender com a própria experiência chinesa, nomeadamente no caso português, é esta ideia, muitas vezes repetida, que o Estado tem de abandonar o sector empresarial. É uma ideia absolutamente desajustada às exigências e desafios que a economia global coloca. Porque está a perder um conjunto de instrumentos estratégicos para consolidar os interesses portugueses. E é preciso ser pragmático, realista. Não se trata de reconstituir um sector público de grande dimensão, mas também não é considerar que tudo o que é público deve ser necessariamente privatizado. Aliás, há vários exemplos de que a gestão privada nem sempre é eficiente.
O que é que se pode esperar mais dos investimentos chineses, a médio prazo?
As PME são um elemento essencial da economia chinesa, e enfrentam problemas complicados, como excesso de capacidade produtiva, tendo necessidade de se internacionalizar. As grandes empresas vão à frente, abrindo o caminho, mas as PME virão a seguir. É de esperar que essa vaga aconteça, através, por exemplo, de fornecedores das grandes empresas, pelo que haverá uma diversificação.
A China tem hoje mais influência em Portugal do que tinha antes de 2011…
Sim, claramente. A influência é hoje muito mais significativa, não só em termos económicos mas também porque é hoje evidente que a China, que consolidou a sua posição quanto actor global, está activamente a construir a sua presença no Atlântico sul e no Atlântico no seu conjunto. Já manifestou, perante a desactivação da Base das Lajes e a retirada norte-americana, vontade de ocupar essa posição. E a questão dos Açores, que está claramente em cima da mesa, não se reduz à questão das Lajes, embora para a China ter uma base militar no coração da NATO seria algo muito relevante. Há uma outra questão central, na procura da China por recursos naturais, pelo seu controlo, que é a plataforma continental portuguesa.
Também estão interessados?
Há um interesse enorme, e a aproximação aos Açores também tem a ver com isso. Por parte da China, há uma clara compreensão de que Portugal não tem capacidade financeira para explorar os recursos da plataforma continental, e a capacidade tecnológica também não é suficiente. Da mesma forma, há a percepção de que a Europa vai ser lenta e que a resposta concertada não vai chegar a tempo. Assim, perfilam-se como o parceiro privilegiado.
Estamos a falar de que tipo de recursos a explorar? Pescas?
A questão da pesca é hoje essencial para a China, que tem de garantir a alimentação de uma população crescente. Muitos dos conflitos territoriais onde está envolvida, nomeadamente com o Japão, têm a ver também com os recursos piscícolas. A China sabe que, perante os riscos de insegurança alimentar a que está sujeita, tem de garantir essa fonte de abastecimento. Mas há também a questão dos recursos naturais, de exploração do subsolo, que implica investimentos muito significativos. A prazo, esse é também um objectivo estratégico chinês. Se tiverem uma posição forte na economia portuguesa, ficam com condições para condicionar, de forma significativa, as decisões que forem tomadas nessa matéria.