Uma panela de pressão a sair de um caderno vermelho
Enquanto a economia garantir crescimento, empregos e estabilidade, o sonho dos chineses vai mantendo o sistema.
Wang Shaofeng é uma estrela em ascensão no Partido Comunista Chinês. Esforça-se por ficar à vontade com os elogios que uma camarada do partido lhe faz, tentando ocultar o embaraço e o orgulho. “Ele é um exemplo da promoção por mérito. Podia trabalhar onde quisesse, mas escolheu estar aqui. Irá longe”, diz a camarada que apresenta o chefe do distrito de Xicheng, que é um dos bairros mais importantes — se não for o mais importante — de Pequim. O centro financeiro da capital chinesa é ali, e naqueles quarteirões mora gente poderosa, famosa e rica.
“Fixem o nome dele”, diz a camarada aos jornalistas, académicos e opinion makers (de think tanks) de visita a Wang, o escolhido para explicar aos visitantes europeus um mecanismo tão preciso como um relógio complexo — o nascimento e aplicação da nova vaga de reformas que vão mudar para sempre a China.
Wang tem um livrinho vermelho com ele. É um livrinho magro o que saiu do terceiro plenum da 18.ª reunião do Comité Central do Partido Comunista Chinês, em Novembro de 2013. Conta Wang que na primeira leitura viu pouca coisa. “À primeira vista, parece que as novas reformas não se vêem. Perguntamos: o que vamos reformar desta vez?” Voltou a pegar no livro e num lápis e, quando terminou o sublinhado, descobriu 416 reformas por fazer. “Foi o número que encontrei. Percebi que havia todas estas coisas para mudar. Quando lemos um documento destes, temos de ser muito meticulosos e prestar muita atenção a todos os pormenores.”
Já a explicação vai avançada quando Wang Shaofeng diz que pertence ao Comité Central, fazendo-nos duvidar de que teve uma surpresa ao descobrir 416 reformas. Talvez a história do livrinho vermelho, que nos mostra, riscado e anotado, tenha sido um recado aos visitantes — na China, tudo está a mudar, façam o favor de ver o que há para ver, de perceber o que há para perceber, de apagarem da cabeça as ideias feitas, as imprecisões e os lugares-comuns. Primeira lição: não falar no “milagre chinês”, uma expressão que irrita num país onde não há milagres. Há trabalho. “Somos uma nação muito trabalhadora”, dirá, dias depois, o vice-presidente chinês, Li Yuanchao, na fabulosa aula de História de duas horas com que rematou os 11 dias de viagem dos europeus.
Na sua palestra sobre o nascimento das reformas quando a China morria de fome, Wang Shaofeng cita um ditado popular chinês: “Apalpar as pedras para encontrar o caminho.” O Governo chinês, que convidou jornalistas e académicos para perceberem que a frase “reformas na China” não é uma abstracção, fez questão de que houvesse muitas pedras para apalpar no nosso caminho longo.
A primeira pedra
Guangdong é a primeira pedra porque foi a província que, há 30 anos, Deng Xiaoping escolheu como balão de ensaio de um novo regime de reformas económicas que arrancariam a China à miséria causada por séculos de feudalismo e décadas de experiências maoístas.
É a província-génese do modelo de crescimento a várias velocidades que Deng Xiaoping fez nascer e que hoje significa que estão em vigor todas as regras do capitalismo num país onde só há um partido. É este partido, diferente dos partidos que conhecemos no Ocidente, que toma todas as decisões. Ao seu modelo organizacional, político e económico, o partido chama “socialismo com características chinesas”.
Deng escolheu Guangdong por razões históricas. No século XVII, a capital da província, Guangzhou, era o maior porto comercial da China e a cidade mais habituada aos “outros”, aos estrangeiros, e à sua modernidade. A experiência perdeu-se na convulsão política da primeira metade do século XX, mas Deng quis aproveitar a memória que lá estava e a geografia — o delta do Rio das Pérolas, onde também está Hong Kong, outro grande jogador da economia mundial.
Em Dezembro de 1978, na reunião do Comité Central do 11.º Congresso do partido, Deng anunciou a criação das primeiras zonas económicas em Guangdong. Em 30 anos, a província — e as cidades do Rio das Pérolas: Guangzhou, Shenzhen, Zhuhai, Dongguan, Zhongshan, Foshan, Huizhou, Jiangmen, Zhaoqin — tornou-se o principal motor da economia. A produção industrial assegura mais de 30% das exportações do país e Guangdong é hoje reconhecida como a grande fábrica do mundo.
Em 2011, segundo dados do Centro de Pesquisa de Opinião Pública de Guangzhou, das mais de 60 mil fábricas, saía um terço dos sapatos, dos têxteis e dos brinquedos calçados, vestidos e usados no mundo. Uma em cada cinco camisas que existem no planeta são feitas ali. Os outros sectores que sustentam um crescimento que chegou a ultrapassar os 13% ao ano — neste momento está nos 8,5% — são a indústria automóvel, a petroquímica, a electrónica, a metalurgia, com a produção associada a grandes multinacionais como a Apple, a Sony, a Toshiba, a Shell ou a Exxon.
“Sempre estivemos na liderança das reformas e depois das novas orientações, em Novembro do ano passado, as experiências em Guangdong tornaram-se ainda mais importantes”, explica o director provincial das reformas do sector público, Wu Qingchuan.
A cidade
Guangdong é, então, a primeira pedra e, por isso, é lá que arranca a visita, dentro de um barco que navega para cima e para baixo no pedacinho do rio das Pérolas que banha Guangzhou, a capital provincial, uma imensa metrópole que já teve por nome Cantão. À noite, as margens do rio tornam-se feira popular. Os edifícios estão todos iluminados e as empresas parecem rivalizar para ter os néones com mais potência eléctrica, mais cor, mais arabescos kitsch.
Guangzhou acumula 12,9 milhões de habitantes. Nem vista de cima, da janela de um avião, a cidade que se arrasta por pouco mais de sete mil quilómetros quadrados respira. Todo o espaço está ocupado, as ruas são estreitas e nos bairros mais periféricos há prédios tão próximos que a janela da frente fica a centímetros dos nossos dedos. A cidade cresceu em modo pesadelo, acumulando todos os males das grandes cidades mas multiplicados por um número elevado, porque na China não há apenas grandes cidades.
Na China há megacidades, aglomerados colossais que tornam cómicas algumas frases que o grupo — onde a maioria é da Europa pequenina: Portugal, Bulgária, Roménia, Hungria, Bélgica, Chipre — vai ouvindo. Por exemplo esta: “Jieyang é uma pequena cidade de 5,2 milhões de habitantes.”
A grande cidade é o sonho desta China e as urbes são obrigadas a crescer ainda mais. Só 54% dos mais de 1,3 mil milhões de chineses vivem em cidades, o que é pouco para um Governo que traçou como meta ter 60% da população nas zonas urbanas até 2020. “A China atravessa a maior escala de urbanização da História humana”, diz um responsável que encontramos.
As cidades são um ponto importante das reformas sociais que saíram do plenum. Foram tomadas decisões que se vão reflectir nelas. Na China que envelhece e se debate já com a falta de mão-de-obra, foi alterada a política do filho único. Os casais em que um dos elementos seja também filho único podem ter um segundo bebé.
Mas a maior mudança, a que vai provocar uma revolução, é a reforma do hokou, o sistema de registo de população que em traços simples diz que um cidadão só é plenamente cidadão na área onde está registado, perdendo direitos ao sair da sua terra. Perde direitos no acesso à saúde, à educação, à habitação e ao trabalho. Os trabalhadores migrantes ganham menos, vivem mal, são uma das principais fontes da desigualdade — e da tensão associada — que mina cada vez mais a sociedade chinesa e ameaça o equilíbrio desejado pelo Partido Comunista Chinês.
A reforma do sistema de hokou tem um objectivo pragmático: dá plenos direitos aos migrantes que escolherem fixar-se em cidades mais pequenas, com cinco milhões de habitantes ou menos. Com isto, o Governo quer fazer crescer as pequenas e médias cidades; reduzir o fluxo de gente em direcção às megacidades barulhentas, poluídas e caóticas do ponto de vista urbanístico; travar a chegada de cada vez mais mão-de-obra não qualificada às grandes cidades. Um objectivo adicional: satisfaz uma reivindicação social de uma população cada vez mais móvel, mais independente e mais contestatária em relação aos seus direitos e aspirações.
Paralelamente a estas reformas, realizam-se experiências urbanas. Foshan é uma das grandes cidades do Rio das Pérolas — 7,2 milhões de habitantes em 3,8 mil quilómetros quadrados, três milhões deles migrantes. É o berço de Bruce Lee, dizem-nos, a pátria da ópera de Cantão, a origem de uma das mais famosas cerâmicas da China. Mas não a visitaremos. Passamos-lhe ao lado, em direcção ao estaleiro que é Nova Foshan, uma experiência de construção, urbanismo e modelo social na China à procura de uma nova ideia de cidade.
Quando estiver construída, perto de 2020, Nova Foshan será tudo o que as megacidades não são. Terá bom planeamento, boa arquitectura, bons espaços verdes e pouca poluição. Terá qualidade de vida mas, sobretudo, vida de grande qualidade, diz a guia que leva o grupo a visionar o filme de apresentação de Nova Foshan e onde uma das primeiras promessas feitas é que será “mais bonita do que a Europa”.
Em Nova Foshan, será tudo “novo”, que é a palavra que define a ideia de modernidade que se agarrou à China. “Por que é que vocês fotografam coisas velhas?”, pergunta uma das intérpretes do grupo. Na maqueta, Nova Foshan é enorme, brilhante e asséptica.
A atracção alemã
Nova Foshan é um empreendimento chinês em parceria com empresas alemãs. A Alemanha é o paradigma da nova China que se constrói desde Novembro do ano passado. O objectivo, explicam os responsáveis pelo erguer das paredes da nova cidade, é replicar a paisagem e o estilo de vida das cidades modernas e prósperas da Alemanha, com habitações, universidades, avenidas largas, espaços verdes — “o parque será maior do que o Central Park de Nova Iorque” — e um centro comercial “high end”.
Sonha-se, também, com um modelo social alemão, ou com o que se idealiza que ele seja.
Quem poderá comprar os apartamentos desta cidade onde o salário médio oscila entre os 2000 e os 3000 yuan (entre 200 e 300 euros)? Respondem-nos no briefing onde 18 funcionários dão conta das dúvidas de 14 visitantes. Em Nova Foshan, o metro quadrado custará 13 mil yuan (1300 euros) e esperam atrair, como compradores ou moradores, os “talentos”, “top people”.
O empreendimento vai ser um êxito ou um buraco financeiro? A resposta não é directa, mas encerra em si muitas explicações: é um investimento privado (o município ajudou comprando terras a preços baixos que depois vendeu aos investidores a preços mais altos, mas módicos) e espera-se que os consumidores se interessem para haver retorno. Foram contraídos empréstimos bancários de longa duração para se avançar com a construção, mas os juros são relativamente baixos. “Qual é o papel do Estado?”, e os interlocutores espantam-se por haver ainda quem pense que, na China, só se constrói um prédio, uma fábrica ou uma praia — existe uma, artificial, em Nova Foshan — sem ser por iniciativa do Partido Comunista. “Oh, não é bem assim.”
Não é bem assim, mas também é.
O partido
O Partido Comunista da China não é um partido como os conhecemos no Ocidente. Na verdade, não é bem um partido, diz Frank Pieke, especialista em China Moderna da Universidade de Leiden, que na sede do Madariaga — College of Europe Foundation em Bruxelas deu uma aula de preparação aos jornalistas e académicos antes da partida do grupo para a China. O PCC não existe para ganhar eleições, para competir na disputa do poder. “Nasceu para ganhar uma guerra” e, por isso, usou (e usa) todas as armas, legítimas ou não, para atingir os seus fins e reagir às ameaças.
O partido tem uma estrutura burocrática organizada e uma hierarquia onde cada um sabe o seu lugar e o seu papel. Esta estrutura é replicada do topo da hierarquia para a base, de Pequim ao comité local de aldeia. É este modelo de “conspiração organizada” — diz o investigador — que mantém o partido no controlo e a gigante China unificada.
Em Pequim, Wang Shaofeng também deixa claro que o partido é soberano, que o Executivo que governa a China fá-lo em nome do PCC e que é a este que pertence toda a iniciativa reformadora. “O objectivo é marcar a modernização de forma a que o partido esteja mais acessível, mais perto da população”, diz Wang. Sublinha que existe em todo o processo uma participação da população.
Quando o encontro com Wang acontece, o grupo já está na China há uma semana. Mas é aqui que, pela primeira vez, aparecem as palavras e frases “povo”, “opinião do povo”, “desejo do povo”, “queixas do povo”. Os que decidem, sublinha Wang, não podem esquecer que “a governação é uma tarefa delegada pelos chineses no PCC”. “Temos obrigações e o nosso principal objectivo é o desenvolvimento. Mas a estabilidade é outra exigência dos chineses.” Ou seja — traçar as reformas é dever e direito do PCC, manter-se ao leme é direito e dever.
A China surge, então, como uma soberania unitária dedicada ao bem-estar do povo. Para o povo ter bem-estar, precisa de viver bem. E para o povo viver bem, precisa de ter desenvolvimento. Nesta cadeia de raciocínios, nasceu o conceito “socialismo com características chinesas”, que o vice-presidente da China, um antigo professor habituado a transformar coisas complicadas em frases simples, explica: é a combinação de um ideal com modelos adoptados ou adaptados do capitalismo, essa combinação gerou “uma tremenda energia”.
Wang chama a todo este processo “capitalismo centralizado” e a colega de partido que lhe auspicia um futuro brilhante prontifica-se a explicar as vantagens: “Nos países onde há democracia, por vezes, há tanta democracia que, no final, não há ninguém para tomar as decisões. Nós tentamos equilibrar esse processo.”
Made in China
Nova Foshan não é, portanto, um delírio das autoridades regionais ou empresários locais. É parte de um plano maior de um partido que se legitima através da procura constante da prosperidade do povo — que se mede em riqueza.
A nova fase de reformas, espera o Presidente Xi Jinping, terá um impacto tão profundo que entrará na História, como as reformas de Deng que puseram a China no segundo lugar da lista das maiores economias do mundo — em breve estará no primeiro lugar, destronando os Estados Unidos da América.
O director Zhao, que encontramos em Foshan, sintetiza a mudança na economia — e no crescimento — que saiu do plenum de Novembro de 2013: “A China tem, hoje, uma economia grande. Mas o nosso objectivo é passar da economia grande para a economia forte. No passado, estivemos interessados na injecção de capitais, agora estamos interessados no conhecimento, no know how, na tecnologia, na inovação.”
Foshan é também um campo de ensaio da mudança estrutural que se opera na China e os efeitos dessa revolução já começaram a ser antecipados. Pelo Instituto McKinsey Global, que garante que, em 2015, Foshan será a 13.ª mais dinâmica economia do mundo, e pela revista Forbes, que diz que já é a 10.ª cidade mais atractiva para fazer negócios.
A China quer deixar de ser a fábrica do mundo. Quer deixar para trás o “make in China” e apresentar ao mundo o “made in China”. Encontrou o seu paradigma — a Alemanha — e foi a ele que foi procurar parcerias estratégicas para criar o modelo industrial e tecnológico a que aspira.
Em Jieyang, outra cidade e o grande pilar da indústria metalúrgica de Guangdong, aprendemos que uma das melhores marcas de aparelhos de cozinha em aço inoxidável à venda na Alemanha é feita ali. “Tudo o que produzimos segue para a Alemanha, esta marca só se vende lá”, diz um responsável, enquanto o grupo vai atravessando o showroom na sede da associação das empresas da indústria metalúrgica, que aspira a federalizar-se, à imagem do que acontece com o sector na Alemanha.
Mas o grupo já deixou de ouvir as explicações. Espalha-se pela sala, apalpa as frigideiras e os tachos, cobiça as panelas de pressão e à noite, quando chega ao hotel, há um pedaço da “tecnologia alemã” que a China já sabe replicar no quarto de cada um. Os metalúrgicos de Jieyang ofereceram-nos panelas de pressão.
“O que deve a China fazer para mudar a imagem que os seus produtos têm no mundo, para podermos ouvir dizer ‘tecnologia chinesa’ como ouvimos dizer ‘tecnologia alemã?”, pergunta um dos elementos da delegação chinesa que nos acompanha, a pensar nos televisores, nos ares condicionados e nos microondas que os coreanos espalham pelo mercado global. Acabamos de sair de outro showroom, numa empresa de televisores de tecnologia avançada e de fogões de design elegante e a pergunta do colega chinês denota urgência.
Morte ao Martim Moniz
Na Sino German Eco Metal City — outro projecto em construção com os alemães —, ficamos a saber que a chanceler Angela Merkel já ali esteve e com ela levou muitos empresários; o painel de fotografias no contentor-sede do empreendimento prova-o. Uma série de antigos governantes alemães estão ligados, através das empresas que agora dirigem, a este projecto que tem o Governo chinês como parceiro e onde vai haver produção mas não só. Os chineses querem importar também outros modelos da Alemanha: a produção sem a carga de poluição que, em 30 anos, envenenou os solos, e o modelo educativo e formativo.
Na Metal Eco City, haverá pólos universitários, onde serão formados os quadros necessários, centros politécnicos, para formação de operários especializados, e pólos residenciais, para os professores alemães que ali são esperados num futuro próximo. Para os professores alemães não se sentirem deslocados, está a ser construído um centro de lazer à imagem de uma aldeia da Baviera.
A Sino German Eco Metal City, um investimento de 150 mil milhões de dólares destinado a levar a China “a produzir grande qualidade”, já foi listada, explicam-nos, como “modelo a nível nacional”. E ali próximo, em Puning, o modelo já está a ser copiado.
Puning é a cidade da roupa barata, de fraca qualidade e mau design, onde está a nascer a Garment Eco City.
Porque se trata de moda, as parcerias estratégicas estão a ser negociadas com a França e a Itália. Delegações destes dois países já foram a Puning “várias vezes”. “Queremos aprender com os franceses a tecnologia do design. O que temos aqui é grande, mas a qualidade não é brilhante. Sabemos disso e queremos melhorar esta indústria”, diz Zhang Huiling, assessor do presidente da Câmara de Jieyang e responsável pelas relações externas da cidade.
Zhang explica que, como já está a acontecer com a indústria metalúrgica e petroquímica de Guangdong, também aqui há um plano de reconversão das fábricas, agora altamente poluentes, e que estas serão concentradas num só pólo industrial. “Quem não aceitar as novas regras, tem de fechar”, diz Zhang, sublinhando que ali domina a iniciativa privada e que o mercado dita os preços, mas que todos têm de seguir as orientações que vêm de quem manda neste capitalismo centralizado.
Alguns fabricantes já se mudaram para outros países, para o Vietname e a Birmânia, por exemplo, porque a política nacional de aumentos salariais também fez Puning perder competitividade.
A preocupação com a qualidade, explicam os administradores desta cidade da roupa (muitos deles também vendedores), não vai responder apenas às necessidades do mercado externo. Os chineses estão mais ricos e aspiram a ter “um estilo de vida”, o que quer dizer produtos de qualidade.
Uma parte da nova Garment City já está feita (o resto, avaliado em 2,5 mil milhões de dólares, será aprovado até ao fim do ano) —, é o imenso centro de venda a retalho, e para quem conhece o centro comercial do Martim Moniz, onde em Lisboa estão as lojas de revenda deste género de produtos, é imaginá-lo do tamanho de todo o Rossio.
Por enquanto é só isso que está pronto; as milhares de peças expostas ainda são tão pouco apelativas que só um elemento do grupo com falta de meias lavadas pergunta se há tempo para uma compra — não há.
Harmonia e vinho de lÍchia
“O que está aqui a acontecer vai dar uma grande dinâmica à economia, à ecologia, à sociedade”, diz o presidente da Câmara de Jieyang, Chen Lynping, que gere um aglomerado de 6,7 milhões de habitantes. É a primeira cidade charmosa do percurso.
Jienyang está parada no tempo. Não foi eleita como área de intervenção, não atraiu milhões de pessoas como outras e ficou igual ao que era no início de 1990 — não há néones, há cartazes coloridos de cartão e alumínio; não há prédios altos que tapam o céu, há casas baixas e lojas de porta aberta para a rua; não há um centro comercial de luxo, mas um mercado que ocupa os passeios do quarteirão mais comercial da cidade; não há ruas estreitas que acumulam a poluição, não há hora de ponta permanente e ainda se vê gente a pedalar em bicicletas.
A cidade não vai mudar, dizem membros da comitiva que acompanha o grupo. Não se vão cometer os erros que se cometeram noutras cidades. Mas o bem-disposto e popular presidente da câmara — a população acena-lhe quando passa de carro com o vidro aberto — quer que o progresso chegue àquela cidade de atmosfera rural e hábitos de província. “Esperamos ter mais projectos para que os habitantes possam ter acesso aos resultados [do desenvolvimento] e para que haja harmonia”, diz ao jantar, acompanhado por vinho doce de líchia.
“Harmonia”. É uma palavra querida ao Presidente, Xi Jinping. A construção da “sociedade harmoniosa” é o primeiro mandamento do seu mandato de dez anos.
“Quando tomou posse, Xi veio a Guangdong e disse que queria que a província liderasse a construção da sociedade harmoniosa”, diz o vice-governador de Guangdong, Xu Shaohau. Como em todos os lugares visitados, o governador mede o sucesso com números e comparações. “Nos últimos 20 anos, [Guangdong] ultrapassou em crescimento Hong Kong e Taiwan.” Fala na ilha reconhecida como Estado autónomo por poucos países (Portugal não é um deles) como se fosse, de facto, uma província chinesa.
O vice-governador tem um discurso mais preciso e sofisticado do que os dirigentes locais e regionais.
Aproveite-se, por isso, para lhe fazer outro tipo de pergunta. Como vive o povo de Guangdong, o modelo a seguir, a província que Pequim tem debaixo de olho, esperando resultados exportáveis para o país inteiro? Como se vive com esta pressão e a que aspira este povo?
Xu Shaohau responde dizendo o que é preciso fazer para se chegar à “sociedade harmoniosa”. Reconhece que são grandes as desigualdades, sobretudo entre a população que vive perto do rio e a que vive no interior. O ensino, que é mais pobre no interior, é uma grande preocupação, explica, porque é logo nele que a desigualdade nasce — todos os chineses têm acesso aos exames de admissão às melhores faculdades, aos cursos que interessam à nova China e que oferecem melhores trabalhos e salários, mas nem todas as escolas deixam os alunos preparados para esses exames.
“Em 20 anos, assistimos a uma grande mudança no tecido social e Guangdong tornou-se uma sociedade muito competitiva, com muita pressão sobre o indivíduo. Havendo muita competição, há muita ansiedade”, diz o vice-governador sobre Guangdong, mas podia estar a falar sobre toda a China. “Neste momento, as pessoas também não conseguem ter uma ideia do que acontecerá dentro de 20 ou 30 anos. E isso também cria ansiedade social. Cabe ao Governo assegurar que existe desenvolvimento porque para o partido o desenvolvimento significa que todos desfrutam.”
O lavador de cabelos
“Estamos num momento histórico”, diz Huang Yiping, economista da Universidade de Pequim. Já trabalhou para o Barclays e para o Citygroup e agora é também conselheiro do Governo chinês. “Estamos a tentar realizar uma transição fundamental, deixando para trás o milagre económico e passando para algo mais sofisticado.” Há riscos, nota: o crescimento vai baixar, a inflação vai subir, a distribuição desigual da riqueza vai continuar. “O pior cenário é a estagnação e a grande questão é saber se o Governo tem poder para controlar o processo. Aqui não pode haver meias medidas, ou se vai até ao fim ou não se vai”, diz Huang, que deixa uma pergunta: “Conseguiremos completar a reforma?”
É outra maneira de fazer a pergunta que atormenta os chineses: “Onde estará a China dentro de 20 ou 30 anos?” A China do partido único que só se legitima com a prosperidade do povo. A China onde a desigualdade é cada vez mais visível e a discriminação entre classe média e classe operária já se nota. Huang conta uma história, uma fábula moderna sobre as aspirações dos chineses.
Uns dias antes, o professor universitário decidiu cortar o cabelo. O cabeleireiro — “um desses indivíduos de quem dizemos ser mais um artista do que um cabeleireiro” — sentou-o na cadeira e começou a lavar-lhe o cabelo. “É você que me está a lavar a cabeça?, perguntei-lhe. Ele respondeu que não conseguia arranjar ninguém para fazer aquele trabalho. ‘Ganha-se mal’, disse eu, para ir fazendo conversa. E ele respondeu: ‘Não é só isso, já é muito difícil encontrar quem queira fazer isto’.”
Saberá o partido que já não promete uma sociedade sem classes mas apenas “uma sociedade harmoniosa” capaz de produzir um grau de justiça social que mantenha contidos e unidos os 1,35 mil milhões de chineses que vivem em 9,4 milhões de quilómetros quadrados? Será capaz de continuar a produzir emprego e bom nível de vida — que é por enquanto a fórmula para a harmonia social de Xi?
Wang Shaofeng, o presidente da junta do bairro financeiro de Pequim, diz que a sociedade harmoniosa ainda está longe e admite que o partido tem, hoje, um grande desafio: “Que os chineses confiem em nós.” É nesse momento que cita o ditado popular. Quando Deng apalpou as pedras, encontrou um caminho, o das reformas, que nunca mais poderá ser abandonado. “Porque só mantendo esse caminho encontraremos o socialismo.”
A jornalista viajou a convite da Madariaga — College of Europe Foundation e do Departamento de Relações Internacionais do Comité Central do Partido Comunista da China