A noite em que as mercadorias chegaram tarde ao destino
O grande activo da CP Carga são os seus clientes. Sem frota, trabalhadores e terminais, sobra pouco para privatizar.
Luís Cruz e Urbano Silva, a dupla que irá levar o comboio de mercadorias até à Bobadela, sobe para a locomotiva em Contumil, rendendo os colegas que o tinham trazido de Leixões. A noite está desagradável e toda a viagem será feita com a chuva a fustigar a frente da máquina, por cujos vidros mal se avista a via-férrea, apesar do potente farol que procura romper a escuridão.
Para o maquinista isso não é um problema. A tecnologia instalada a bordo permite-lhe saber o estado dos sinais que vão aparecendo pelo caminho, a velocidade a que pode circular em cada troço e o local onde o comboio está a passar. Em caso de falha, se Luís Cruz passar um vermelho ou exceder a velocidade limite, o próprio sistema se encarrega de frenar a composição fazendo-a parar em plena via.
Nem sempre é fácil dominar este monstro composto por uma pesada máquina Siemens (não é má ideia que a locomotiva seja alemã) que reboca 1099 toneladas distribuídas por 18 vagões porta-contentores. Agora que já atravessámos o Douro e vencemos a rampa à saída das Devezas, os carris estão molhados e a máquina patina, provocando uma valente trepidação na cabine de condução. Nestas circunstâncias, há que “ter dedo”, como se diz na gíria dos maquinistas, e ir “metendo pontos” (acelerar) devagarinho, procurando ao mesmo tempo mandar areia para a linha para que a roda ganhe aderência ao carril. Todos os comboios dispõem de areeiros para esta situações.
Se rebocasse um comboio de passageiros, esta locomotiva poderia chegar aos 220 quilómetros por hora, mas num comboio de mercadorias a velocidade máxima é de 100 à hora e é praticamente essa a velocidade a que se circula durante a maior parte da viagem, excepto quando a sinalização obriga a afrouxamentos, ou até a parar em alguma estação a fim de o comboio ser ultrapassado. É o que acontece agora em Aveiro, em que o 69160 pára no vermelho para ser ultrapassado pelo intercidades com destino a Coimbra. Às três horas de atraso, somam-se agora mais uns minutos a retardar a viagem.
Luís Cruz tem 49 anos e há 19 que trabalha na CP. Foi para maquinista porque viu um anúncio no jornal e não por ter um familiar ferroviário ou por gostar especialmente de comboios, como acontece com grande parte dos seus colegas. Durante sete anos, conduziu automotoras na linha da Póvoa, mas com a sua transformação em Metro do Porto, pediu transferência para a então Unidade de Transportes de Mercadorias e Logísticas (UTML), mais tarde CP Carga.
A viver na Maia, Luís deixou de ir dormir a casa todos os dias e passou a uma vida de saltimbanco repousando nos dormitórios da CP que, entretanto, foram fechando à medida que a empresa fazia contratos com hotéis. Actualmente, costuma dormir uma ou duas noites por semana fora de casa, normalmente em Setúbal, Lisboa ou no Entroncamento, em função da escala de serviço. A sua área de trabalho fá-lo conduzir comboios de mercadorias até Valença, Pocinho, Lisboa e Praias do Sado (Setúbal).
Luís Cruz diz que não ficou assustado quando, em 2009 a UTML deixou de ser uma unidade de negócios e passou a ser a CP Carga, uma sociedade anónima detida pela CP, prontinha para ser privatizada. “A única coisa que me preocupa é a tendência dos privados em questões de perda de direitos e condições de trabalho e de repouso”, diz, dando como exemplo o pessoal da Takargo (empresa ferroviária do grupo Mota Engil), que trabalha mais do que o da CP e tem menos direitos.
Os homens dos comboios querem manter o direito às 40 horas semanais, um horário composto por uma média calculada com base nas horas de condução, de acordo com as escalas de serviço. O facto de este comboio circular, esta noite, com três horas de atraso não significa necessariamente que Luís receba horas extraordinárias. Tudo depende das horas que fizer nos próximos dias.
“Não tenho gosto nenhum em pegar ao serviço à 1h da manhã e conduzir até às 10h ou às vezes até ao meio-dia”, desabafa, a propósito da fama de que os maquinistas são bem pagos. “Ganho 1020 euros por mês e tudo o que recebo de horas extras, do corpo me sai”, frisa.
E se é certo que agora conduz uma locomotiva eléctrica moderna, há serviços em que passa horas aos comandos de velhas máquinas a diesel, barulhentas e sujas de óleo, sujeito às correntes de ar frio no Inverno e ao calor dos meses de Verão. Nesta profissão, rotina é coisa que não existe.
A profissão só tem um lado romântico nos filmes. O dia-a-dia significa tomar refeições económicas em restaurantes e tascas perto da estações, dormir e comer fora de horas e sentir que a coluna sofre cada vez mais à medida que os anos passam e se somam horas sentados aos comandos das máquinas.
Urbano Silva, 62 anos, operador de apoio, acompanha o maquinista na viagem. Vive na Livração (Marco de Canavezes) e hoje toca-lhe também dormir fora de casa. A dupla está mortinha por chegar à Bobadela, onde dois colegas os vão render para levar a composição para Alcântara.
A chegada estava prevista para as 23h44, mas são 2 horas da manhã e o 69160 ainda está a chegar ao Entroncamento. É Urbano Silva quem solta uma interjeição bem à moda do Norte. O sinal à entrada da estação indica que o caminho está feito para um ramal onde, de certeza absoluta, o comboio vai ficar encostado à espera. O chefe de estação traz a má nova. Há obras na via e o tráfego faz-se em via única. É necessário esperar cerca de uma hora até poder prosseguir viagem.
Vencendo o sono e a fome, aproveita-se o intervalo entre dois aguaceiros e desentorpecem-se as pernas junto aos coloridos contentores da composição. Quando a viagem recomeça, a travessia da Lezíria é feita com limitações de 30 quilómetros por hora. Desespera-se à medida que o tempo passa, até que, às 3h50, o comboio dá entrada no terminal da Bobadela. Para Luís e Urbano a jornada de trabalho termina aqui. Um táxi espera-os para os levar a um hotel perto de Entrecampos onde os ferroviários costumam repousar.
Desde que foi criada, em 2009, a CP Carga nunca saiu do vermelho e tem um passivo já de 151 milhões de euros. Tal como a empresa-mãe, as suas contas são esmagadas pelos encargos financeiros que no ano passado foram de 7,5 milhões de euros. Em 2013, as empresas alcançaram 23 milhões.
A empresa facturou em 2013 um pouco mais de 61 milhões de euros. Na sua estrutura de custos (76,6 milhões) pesam sobretudo a mão-de-obra (20,4 milhões de euros) e a renda paga à CP pelo aluguer das locomotivas (18,8 milhões). Cerca de metade das suas despesas ficam no próprio sector público ferroviário, através de serviços pagos à CP, taxa de uso paga à Refer e manutenção paga à EMEF.
Do lado da receita, a CP Carga tem um grande cliente – a Tejo Energia – responsável por 22% do seu tráfego, com o transporte de carvão entre Sines e a central do Pego, em Abrantes. O transporte de contentores (25%) e de cimento (14%) completam o grosso das mercadorias transportadas.
A empresa praticamente não tem activos, a não ser a frota de vagões. Conta com 578 trabalhadores, dos quais 310 afectos à condução dos comboios, mas destes só os operadores de apoio são do quadro. Os 192 maquinistas são da CP. A idade média dos trabalhadores é de 46 anos.
Um do seus poucos activos eram os terminais de mercadorias, mas de Bruxelas veio o aviso de que o acesso a essas infra-estruturas deveria ser aberto a todos os operadores, pelo que a Refer tomou posse delas. No fundo, a CP Carga só tem uma carteira de clientes para ser privatizada, mas nas contas do Governo nunca entraram a externalidades – aquilo que o país ganha em termos ambientais e económicos pelos milhares de camiões que se retiram à estrada ao colocar mercadoria no caminho-de-ferro.