"As discussões eram de uma sinceridade absoluta, muitas vezes conflituosas mas nunca ninguém bateu em ninguém"

Álvaro Siza voltou a reunir-se, no sábado, com os moradores que o ajudaram a dar vida ao Bairro da Bouça, um dos símbolos da democracia e arquitectura participativas do PREC. A convite de Serralves, o arquitecto recordou o processo SAAL, criticando as actuais políticas de habitação social.

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O arquitecto Álvaro Siza durante o encontro com os moradores que o ajudaram a dar vida ao Bairro da Bouça Ricardo Castelo/Nfactos
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Ricardo Castelo/Nfactos

Parece um encontro de velhos amigos, de camaradas que estiveram juntos numa revolução. E, de facto, estiveram. Uma revolução chamada SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local), programa de realojamento popular lançado no pós-25 de Abril (1974-1976) que, muito por causa de um aguerrido movimento de associativismo reivindicativo, pôs a arquitectura também nas mãos dos moradores e transformou as condições de habitação e de vida de muitas populações desfavorecidas do país. Uma revolução chamada Bairro de Bouça, projectado por Álvaro Siza e um dos capítulos mais especiais das operações do SAAL-Norte.

No sábado, o arquitecto e os cidadãos que prepararam o nascimento do bairro voltaram ao local onde tudo começou: a Associação de Moradores da Bouça, que recebeu, durante a tarde, a primeira sessão do Ambulatório, uma das iniciativas do programa paralelo da exposição em Serralves O Processo SAAL: Arquitectura e Participação 1974-1976. Álvaro Siza, ainda a recuperar “de uma gripe assassina”, falou com uma boa-disposição assinalável perante uma sala cheia e criticou as actuais políticas de habitação social em Portugal mas também noutros países onde trabalhou, como a Holanda e a Alemanha. Contudo um programa como o SAAL, assinalou, “é irrepetível” já que dificilmente voltará a haver as condições políticas que o permitiram a seguir ao 25 de Abril de 74.

“Voltar aos bairros do SAAL-Norte [Bouça, São Victor, Leal e Antas] e reunir em conversas os arquitectos e as pessoas que estiveram envolvidas no processo, bem como os moradores actuais, era já uma ideia antiga”, disse o arquitecto Nuno Grande, comissário deste ciclo que decorre até Janeiro e moderador desta primeira conversa, onde também esteve presente o presidente da Associação de Moradores da Bouça, José Ribeiro.

Um dos temas centrais da discussão foi o fim do SAAL em 1976, por razões económicas, ideológicas e políticas, o que levou à interrupção das obras no Bairro da Bouça (ficaram prontas apenas 56 casas das 128 previstas) e gerou polémica à volta desta urbanização em pleno centro da cidade, numa localização privilegiada. “Depois de 76 voltou a não poder falar-se de pobreza”, atirou José Teixeira, um dos fundadores da associação. “O senhor arquitecto foi marginalizado por estar a dar boas casas a pobres.”

O bairro inacabado “serviu como exemplo máximo da incompetência do SAAL e dos seus protagonistas”, gracejou Siza já de cigarro na mão, contando o episódio em que os moradores da Bouça tiveram de explicar a um conjunto de engenheiros detractores que aquela cor vermelha do bairro, “que eles achavam horrenda”, era uma homenagem ao arquitecto e urbanista Bruno Taut, operador das políticas de habitação de carácter socialista da República de Weimar que tanto influenciaram o arquitecto português. Apesar das críticas, foi por causa da Bouça que Siza teve os primeiros convites para trabalhar fora de Portugal - como referiu o próprio.

Com a ajuda de imagens documentais, Siza falou das várias etapas de construção do Bairro da Bouça, cujo projecto surgiu antes do 25 de Abril de 74, integrado no Fundo de Fomento da Habitação, sendo depois, em 75, incluído na operação SAAL. Os pormenores da obra eram debatidos com os moradores em noites de “discussões de uma sinceridade absoluta, muitas vezes conflituosas, mas nunca ninguém bateu em ninguém”.

Entre conversas paralelas, a plateia encontrava amigos e família nas fotografias que mostravam as manifestações pela habitação (“casas sim barracas não”, era o grito de luta), onde se destacava a forte presença de mulheres – o SAAL foi também um movimento de afirmação feminista, tema que é tantas vezes arrastado para segundo plano. A brigada SAAL na Bouça era, por exemplo, chefiada por uma mulher, Anni Gunther, que durante este debate relembrou os desenhos de Siza feitos no chão com giz e lençóis para tentar explicar aos moradores como ficaria o bairro.

O destino de parte das casas resultantes da retoma das obras no Bairro da Bouça em 2000, com conclusão em 2006, é dos episódios que continua a dividir mais opiniões. Sábado, alguns participantes criticaram a venda de muitos dos novos apartamentos a pessoas de classes mais favorecidas, que não estiveram no SAAL. Para uns, como Siza e Nuno Grande, isso gerou um bairro interclassista e intergeracional, “como devia ser toda a cidade”. Para outros, esta quase glamourização da Bouça tornou-o num caso de gentrificação: uma das primeiras moradoras argumentou que as casas “não foram entregues a quem lutou por elas”, por falta de poder de compra, desvirtuando o objectivo primordial do SAAL. Já em fundo se ouvia cantar José Mário Branco, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.

 

 

 


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