Quando os moradores (também) foram protagonistas da arquitectura

Serralves é hoje palco de uma conferência sobre o SAAL, um programa de arquitectura social criado logo a seguir ao 25 de Abril de 1974 para alterar as condições de vida das populações. Quarenta anos depois, há algo a aprender com essa experiência.

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Bloco S.ª das Dores, de Álvaro Siza, S. Vítor, Porto, segunda metade dos anos 70 Alexandre Alves Costa
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Manifestação dos moradores ligados ao SAAL/Norte de apoio aos delegados das comissões e associações em reunião com o secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, Porto, 25 de Janeiro de 1975 Alexandre Alves Costa
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Manifestação nacional dos moradores contra o decreto que impede as ocupações, Porto, 17 de Maio de 1975 Alexandre Alves Costa
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Manifestação nacional dos moradores contra o decreto que impede as ocupações, Porto, 17 de Maio de 1975 Alexandre Alves Costa

Vivia-se em pleno frenesim revolucionário pós-25 de Abril, e várias equipas de arquitectos – entre consagrados, jovens e estudantes – foram mobilizadas para as diferentes regiões do país, onde se lançaram a fazer projectos com a participação e em diálogo directo com as populações. Os arquitectos projectavam, os moradores construíam, o Estado pagava os materiais…

Como se imagina, e a História comprova, cada um desses projectos teve desenvolvimentos e sortes diferentes, nomeadamente após a extinção do programa, decidida logo em Outubro de 1976. Mas há actualmente, em todo o país, várias dezenas de bairros que ficaram a materializar essa aventura.

Quatro décadas depois, o Museu de Serralves vai fazer o balanço desse programa. O momento forte dessa evocação será a exposição O Processo SAAL: Arquitectura e Participação 1974-1976, comissariada por Delfim Sardo, e que será inaugurada a 31 de Outubro. Mas, hoje mesmo, o auditório do museu portuense vai acolher, a partir das 9h30 e ao longo do dia, uma primeira iniciativa, o Simpósio SAAL: em Retrospectiva. “Trata-se de reunir os testemunhos de alguns dos protagonistas e arquitectos que foram personagens centrais no SAAL” e pô-los em contraponto com “intervenções e discursos de arquitectos e investigadores de gerações mais novas, que reflictam sobre essa experiência histórica”, explica ao PÚBLICO Delfim Sardo.

No simpósio vão ouvir-se os testemunhos de Nuno Portas, Álvaro Siza, Raul Hestnes Ferreira, Alexandre Alves Costa e Eduardo Souto Moura, alguns desses protagonistas. Mas vão também conhecer-se os olhares de críticos, investigadores e historiadores, como Liliana Coutinho, Jorge Figueira (crítico do PÚBLICO), José António Bandeirinha (autor do livro O Processo SAAL e a Arquitectura no 25 de Abril de 1974; ed. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007), Raquel Varela (autora da História do Povo na Revolução Portuguesa, 1974-75; Bertrand Editora, 2014, que dedica um capítulo ao SAAL) ou Joaquim Moreno, que investigou as consequências do SAAL no ensino da Arquitectura em Portugal. E ainda contributos como o de Pedro Clarke, um jovem arquitecto radicado em Londres que tem trabalhado num projecto de arquitectura participativa no Lesoto, em África.

Passado e futuro

“No simpósio, não nos interessa tanto o ponto de vista historiográfico, mas mais olhar para o passado perspectivando o futuro”, diz Delfim Sardo. O curador e professor universitário classifica esta primeira conferência, pensada estrategicamente para ocorrer cerca de meio ano antes da exposição de Serralves, como “retroprospectiva”.

É esta também a perspectiva de Alexandre Alves Costa, o arquitecto e professor que foi o coordenador do SAAL no Porto, e que irá encerrar o painel das intervenções de hoje. “A memória que guardo dessa altura é a de uma grande esperança e de um sonho, algo que não temos agora, em que vivemos uma situação totalmente diferente”, diz. Mas Alves Costa – que faz questão de falar exclusivamente da experiência na cidade do Porto, por ser a que conhece – acrescenta que “há uma metodologia, que é possível aproveitar”, do que foi realizado em 1974-76. E destaca a necessidade, até aproveitando a mudança de política e de gestão autárquica na Câmara do Porto, de se “desencadear novos processos de regeneração urbana em conjunto com os moradores no problema da habitação, e evitando situações como a que foi vivida no caso do Bairro do Aleixo”, demolido por decisão da câmara presidida por Rui Rio.

“Temos de ser capazes de regenerar a cidade, colocando-a ao serviço das pessoas mais pobres e desfavorecidas”, reivindica o arquitecto.

A participação dos moradores no processo SAAL é, de resto, o aspecto normalmente mais realçado na experiência. “Este programa foi o primeiro que visou substituir os grandes bairros do Estado administrador e construtor pela gestão dos próprios moradores interessados, como numa cooperativa, que aliás viriam a surgir no final desse ano de 1974, com apreciável êxito”, recorda Nuno Portas.

O arquitecto e urbanista que foi o responsável político, enquanto membro do II Governo Provisório, pelo lançamento do SAAL, destaca o facto de as populações terem sido então “os protagonistas e não só os arquitectos”.

Delfim Sardo acrescenta-lhe a relevância do modo de financiamento do serviço. “Os projectos não eram financiados com crédito particular”, como viria a acontecer posteriormente – com as consequências que todos conhecemos e estamos hoje a viver na economia do país –, mas através das cooperativas. Este facto teve implicações importantes “no desenvolvimento de políticas habitacionais no plano público e na gestão dos espaços urbanos, ou seja, no ordenamento do território”, assinala José António Bandeirinha.

Este investigador e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Coimbra – onde se doutorou precisamente com uma dissertação sobre O Processo SAAL e a Arquitectura no 25 de Abril de 1974 – releva também a importância que o SAAL viria a ter para a divulgação internacional da arquitectura portuguesa, “que na altura era já muito qualificada, mas não tinha ainda saltado para a ribalta internacional”.

Aqui, a principal beneficiária foi a Escola do Porto, “cujo protagonismo – nota Bandeirinha – vinha já de trás”, de antes do 25 de Abril de 1974. “Havia uma grande interacção entre os arquitectos dessa Escola, um espírito próprio”, que a experiência do SAAL viria potenciar.

Dos nomes da Escola do Porto, Álvaro Siza foi o que mais facilmente se evidenciou, até pelo currículo que então já apresentava, desde que, no início dos anos 1960, se tinha feito notar com a Casa de Chá da Boa Nova e a Piscina das Marés, em Leça da Palmeira – ao qual a experiência no SAAL viria a acrescentar, depois, os bairros sociais de São Vítor e da Bouça, no Porto.

“Há muitos SAAL no país”, diz Delfim Sardo, chamando a atenção para as inúmeras experiências, com diferentes resultados, que se desenvolveram um pouco por todo o país.

“A memória que guardo do SAAL é a de um momento excepcional de possibilidade de trabalhar a arquitectura numa relação directa com os seus destinatários, os moradores”, diz Alves Costa, acrescentando acreditar que, hoje, é novamente possível “regenerar a cidade” – e é nesse sentido que o professor e investigador vai fazer a sua intervenção.

Um tema e uma discussão que, para além da jornada de hoje, serão retomados no dia 14 de Novembro num colóquio que vai ser promovido pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra nesta cidade, em paralelo com a exposição que, nessa altura, já estará em cena em Serralves.

“Espero que nessa exposição se mostrem diferentes programas da época, com siglas diversas mas objectivos semelhantes. Ou seja: os moradores como protagonistas e não só os arquitectos. Como dizíamos na altura: ‘Os processos também se desenham no diálogo’”, reclama Nuno Portas.

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