Sim, é verdade, o título tem quatro erros ortográficos. Mas como tirar da cabeça a letra errada quando se leu um livro de palavra certa? Como fugir à tentação do Z quando é ele mesmo a essência do tema? Música com Z, livro recém-lançado no Brasil e infelizmente ainda não disponível por cá, traz-nos de novo o verbo vivo, inteligente e profundo de Zuza Homem de Mello, homem de mil ofícios que se cruzam invariavelmente na música: jornalista, crítico, investigador, radialista, produtor e, no início da sua carreira, quando rumou a Nova Iorque para estudar na School of Jazz, também ex-contrabaixista.
Quem já o leu, em crónicas regulares ou nos vários livros que publicou (com destaque honroso para os dois volumes de A Canção no Tempo (1997-98) e A Era dos Festivais (2003), ambos da Editora 34, de São Paulo, tal como Música com Z, aliás), saberá que os seus textos não são apenas crónicas de um momento, passageiras, mas sim olhares mais profundos sobre esse tempo que passa. É um “vício” que lhe virá de longe (Zuza tem agora uns felizes e joviais 81 anos), pois, como ele próprio conta no prólogo do seu mais recente livro, essa era uma das suas brincadeiras de criança: “Com meu primeiro gravador, um Webster de fio, inventei de gravar histórias sobre canções, alternando minha narrativa com ilustrações musicais reproduzidas de discos tocados num imenso radiovitrola Standard Electric modelo Notre Dame de imbuia entalhada na casa dos meus pais.” Reparem bem na frase: ele podia dizer apenas que gravava histórias sobre canções tocadas no gira-discos dos pais, mas em vez disso ele nomeia a marca do aparelho, o modelo e até o tipo de madeira ali usada com entalhamentos.
Se querem saber como é Zuza, é assim mesmo: um perfeccionista informativo e formativo. O texto que abre o livro, escrito já em 2011 (Música com Z reúne, em 543 páginas, artigos, reportagens e entrevistas seleccionadas de entre os milhares que publicou entre 1957 e 2014), é disso exemplo. Fala de um tema que todos conhecem, As Time Goes By, de Casablanca, para contar o que quase ninguém conhece: que o pianista do filme, Dooley Wilson, era só cantor e baterista, nunca tocou piano; que o enredo da história foi primeiro proposto à Broadway, que o recusou; que o seu autor, o professor de inglês Murray Burnett, então com 27 anos, acabou por vendê-lo à Warner por 20 mil dólares; que a canção foi composta 11 anos antes do filme por um pianista americano, Herman Hupfeld, para um musical da Broadway e gravada em 1931 pelo crooner Rudy Valle; e que Burnett sugeriu usá-la no filme (os produtores não queriam uma canção nova, mas uma já feita e pouco conhecida), dizendo que a ouvira em 1938, na Riviera Francesa, tocada por um pianista negro. Pormenor: só por um triz a canção não foi retirada do filme e da boca de Dooley Wilson (único do elenco que conhecia a cidade de Casablanca), pois o compositor Max Steiner queria trocá-la por uma inédita. Azar dele e sorte nossa, isso implicaria refilmar a cena com Ingrid Bergman, que já estava ocupada com outro filme.
Tudo isto conta Zuza com muitos outros pormenores. De nomes, lugares e datas. Um labirinto de informações vivas que nos conduz a um outro labirinto, o da história, e à conclusão (inevitável, no caso da leitura dos seus textos) de que é sempre possível apercebermo-nos da nossa ignorância, até naquilo que cuidamos saber em pormenor, quando alguém vai mais fundo no trabalho de pesquisa.
Como esquecer Brilliant Corners, de Thelonious Monk, depois de ler (mais ouvir que ler, já que do texto emana o “som” do disco) o curto texto que Zuza lhe dedicou em 2007? Como reouvir a célebre Fascinação, que muitos conhecerão da admirável interpretação de Elis Regina, depois de saber que tal música foi criada em 1904 para espectáculos de music-hall em França por um italiano que, afinal, a pode ter encomendado (e pago) a Maurice Ravel, então com 29 anos e já lançado na sua carreira?
A par das histórias, muitas, que ele inventaria e descreve com método e minúcia, há as entrevistas, vozes de outros que ele filtra para deleite do leitor: Charles Mingus ou Chico Buarque, Chet Baker ou Moacir Santos, Carmen McRae ou Maria Bethânia, Itamar Assumpção ou Joan Manuel Serrat, a lista é grande e sedutora, por entre o jazz (ele ouviu Coltrane, ao vivo, quando este apenas despontava para o génio) e tantas outras músicas. Ou Múzicaz, no padrão Zuza. Dos mais altos e fiáveis.