Oito meses depois de terem chegado oficialmente ao cargo, José Manuel Costa e o subdirector Rui Machado apresentaram e falaram pela primeira vez sobre as suas ideias para uma Cinemateca em contexto de mudança. A necessidade da manutenção de formas de exibição tanto analógicas (a película) como digitais e da criação de registos digitais de alta definição do cinema português para a sua sobrevivência histórica são grandes linhas estratégicas para a instituição, com José Manuel Costa a trocar as coisas por miúdos: sem projectores analógicos e latas e bobines, “daqui a 50 anos vai ser muito difícil explicar a um jovem por que é que os filmes do John Ford eram feitos como eram, por que é que os planos têm aquela duração, por que é que os movimentos de câmara são aqueles e qual é a relação entre isso e a sublimação do espaço e do tempo que existe naquela obra”.

A Cinemateca quer lançar as bases de “uma rede patrimonial de cinema”, quer dentro de anos “um programa ambicioso de produção de novas matrizes digitais de alta definição” para que o cinema português clássico não fique restringido à própria Cinemateca, e quer chegar a novos públicos. “Às gerações mais novas faltam hoje, paradoxalmente, muitas referências para escolher e compreender a história do cinema nesse mar de imagens que lhes estão directamente acessíveis”, identifica José Manuel Costa. Se nos anos 1990 as salas da Cinemateca estavam cheias de “um público com um profundo conhecimento de cinema, mas muito teórico e a quem faltava a possibilidade de ver as obras”, agora é preciso “maior diversidade de acção”, diz ao PÚBLICO. “Apresentações, contextualizações, debates em torno da história do cinema”, como o regresso das Histórias do Cinema, em que um historiador apresenta numa semana cinco filmes com contexto, e residências artísticas para convidados programarem.

Um dos pedidos mais frequentes à Cinemateca é o acesso e uso de imagens das actualidades do Estado Novo. E algo que a instituição há muito queria fazer era a edição de uma linha de DVD própria. Jornal Português, a primeira série dos magazines audiovisuais (1938-1951) da era Salazar, vai ser editado integralmente pela Cinemateca e em 2015, em parceria com a Midas Filmes, chegam os restauros digitais de Os Verdes Anos e Mudar de Vida (de Paulo Rocha e com a participação do realizador Pedro Costa), seguindo-se-lhes Se Eu Fosse Ladrão… Roubava, o último filme do importante cineasta português. Uma parceria com o Museu de Etnologia levará pelo mesmo caminho os filmes de Margot Dias em campo em Moçambique, anunciando-se que o senhor que se segue neste percurso pela etnografia é Rui Cinatti e o seu olhar sobre Timor na década de 1960.

Ainda na edição, os livros e uma nova revista. A Cinemateca vai voltar aos catálogos dos seus ciclos e a editar progressivamente com a Fundação Gulbenkian os Escritos de Cinema de João Bénard da Costa – que reúnem textos de catálogos, mas também as folhas diárias que o antigo director da instituição tornou desde os anos 1980 “um dos traços identitários desta casa”, descreve Costa, acompanhando as sessões do dia. Trimestralmente, editar-se-á uma revista de história e museologia do cinema graças a uma parceria, ainda em estudo, com a Imprensa Nacional Casa da Moeda.

Parcerias e rentabilização, palavras incontornáveis da gestão cultural em tempo de crise e para uma Cinemateca que, como disse Costa na apresentação da manhã desta segunda-feira aos jornalistas, viveu “um momento particularmente difícil” em 2013, o último ano no cargo da sua antecessora, Maria João Seixas. Suborçamentação crónica, sobretudo desde que a sua principal fonte de receita, a taxa cobrada sobre a publicidade exibida nas televisões, está em quebra acentuada. E que fez com que, em 2014, como disse ao PÚBLICO Rui Machado, as limitações da instituição, que não são só orçamentais (3,3 milhões de euros para 2014, dos quais 1,3 do FCC, e 3,6 milhões de euros para 2015, segundo a proposta de Orçamento do Estado) tivessem um “impacto profundo” na programação. A contenção e as regras das instituições da administração pública fizeram com que não se requisitassem tantas cópias do estrangeiro, o que acabou por levar a “programar com as cópias da Cinemateca, com problemas do ponto de vista patrimonial porque as passámos muito mais e com alguma repetição dos títulos”. “Um ano atípico para a programação da Cinemateca que reencaminhou algumas verbas para os pequenos investimentos que estamos a tentar fazer na área do digital”, explica Rui Machado.

Agora, e enquanto outros ciclos de clássicos pisaram o território tradicional da Cinemateca com grande sucesso (como foi o caso dedicado a Ingmar Bergman) – “algo que sempre aconteceu na maior parte das capitais europeias em que, paralelamente às cinematecas, há cinemas de reportório”, elogia José Manuel Costa –, a direcção da instituição garante que o seu plano para 2015 “não é utópico” e que está previsto no orçamento da instituição. “O que pode variar é o ritmo a que vai ser feito.”

Há um ano, José Manuel Costa dizia ao PÚBLICO que a Cinemateca vivia uma “situação de emergência” em 2013 e 2014. Sobre 2015, o director garante que a discussão sobre um novo modelo de gestão e financiamento para a Cinemateca ainda decorre com a tutela, embora o FFC volte a ser a solução para o próximo ano. É ele que permite “manter um funcionamento mínimo digno da Cinemateca” e continuar a investir no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM), “a Torre do Tombo do audiovisual”, diz Costa. E volta à questão da obtenção de receitas, exemplificando com serviços prestados pela Cinemateca como o seu laboratório de restauro analógico, e de “fundraising próprio como a criação da Associação de Amigos da Cinemateca”, que está em vias de implementação. No ANIM passará a existir, graças a um novo protocolo, a primeira unidade fora dos EUA do Cineric, um dos mais importantes laboratórios de restauro digital do sector, o que poderá também ser fonte de receitas para a instituição no futuro.