“O banco até já esteve a ameaçar os meus pais que ia tirar a casa”

Unicef aconselha Governo a criar uma estratégia nacional de combate à pobreza infantil e recomenda acesso gratuito às creches dos 0 aos três anos de idade para as famílias mais pobres.

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77 crianças, com idades entre os oito e os 17 anos, foram ouvidas para o relatório da UNICEF Daniel Rocha

Ao dar-lhes a voz, o documento divulgado esta segunda-feira levanta o véu sobre uma realidade demasiadas vezes escondida entre quatro paredes. “Quando a senhora dizia o preço dos remédios, o meu pai ficava assustado, porque eram muito caros e eram imensas coisas”, conta uma adolescente de 12 anos, uma entre as 77 crianças, com idades entre os 8 e os 17 anos, que foram ouvidas no âmbito neste relatório e de onde emanam recomendações como a criação de uma estratégia nacional para a erradicação da pobreza infantil. “Quando não há comida, os meus pais fazem isto: deixam de comer para nos dar à gente”, conta, por seu turno, um miúdo de 14 anos, pai desempregado. “A minha avó foi com a gente às compras e ela pagou as compras duma semana e coisas assim”, outro adolescente, 16 anos.

No relatório lêem-se ainda frases assim: “Alguns [colegas da escola] não devem comer muito, ou mesmo, não devem ter refeições (…). Eles não contam, mas dá para reparar.” E ainda: “A minha mãe ficou sem trabalho (…). Ela tirou-me da natação, da ginástica, da música (…) do inglês.” E há o caso do miúdo de 9 anos, mãe desempregada, que relata: “O banco até já esteve a ameaçar os meus pais que ia tirar a casa.”

Estes relatos remetem-nos para as consequências práticas e quotidianas de vários anos de desinvestimento nas políticas públicas de apoio à família, como constata o estudo encomendado a uma equipa de investigadoras do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, coordenado pelas investigadoras Karin Wall e Ana Nunes de Almeida e que mostra como a crise está a repercutir-se na vida das crianças, “com consequências a médio e longo prazo”.

“A partir de 2010, a situação económica e financeira de Portugal agravou-se com a adopção de um conjunto de medidas de austeridade que tiveram e continuam a ter repercussões directas no bem-estar das crianças a nível da saúde, da educação e dos apoios sociais do Estado às famílias, especialmente às mais carenciadas”, escrevem as autoras do relatório, sublinhando que “a elevada taxa de desemprego” gera “não só situações de carência económica grave, mas também de elevada instabilidade emocional e psicológica que afectam as vivências das crianças”.   

O diagnóstico relativo a 2012 mostra-nos que nesse ano havia 678 mil pessoas em situação de incumprimento face a dívidas contraídas. E, desde então, continua a aumentar “a taxa de privação das famílias com crianças em situação de pobreza relativamente à capacidade para pagar dívidas, empréstimos, rendas, contas e despesas imprevistas, assim como a possibilidade de ter um carro”.

Casais desempregados aumentam 688%
O retrato em números mostra-nos que, em 2011, havia 560 mil crianças em risco de pobreza e exclusão social. “Cerca de uma em cada três crianças (28,6%) encontrava-se em risco de pobreza ou exclusão social”, precisa o relatório, para sublinhar ainda que 21,8% das crianças viviam “em agregados com rendimentos per capita inferiores a 416 euros por mês”.

Se considerássemos o risco de pobreza antes das transferências sociais (subsídios, pensões, abonos de família…), teríamos 33% das crianças em situação de vulnerabilidade económica. Nas famílias numerosas (três ou mais crianças) e monoparentais, o risco de pobreza cresce para 31% e 41%, respectivamente. E nas famílias monoparentais – os Censos 2011 mostravam que estas perfaziam 14,9% do total de famílias –, em que a figura parental fica desempregada, o risco de pobreza sobe para os 90%.

O desemprego é assim meio caminho andado para a pobreza. Nas famílias de casais com filhos em que um dos adultos está desempregado, o risco de pobreza atingia uns expressivos 34,3%. E se os dois adultos ficarem desempregados, o risco de pobreza sobe para 53,2% – mais de metade, portanto. Lembremo-nos agora que, em 2011, eram cerca de 723 mil os adultos desempregados com crianças a seu cargo. Não surpreende assim a conclusão de que, naquele mesmo ano, mais de um quarto das crianças portuguesas (25,2%) estivesse em privação material.

E a situação piorou, entretanto. Entre Outubro de 2010 e Junho de 2013, o número de casais desempregados inscritos nos centros de emprego aumentou mais de 688%: de 1530 para 12.065. Em Fevereiro de 2013, havia 26.374 indivíduos a viver em casal em que ambos os cônjuges estavam desempregados. Daqueles, apenas 5602, ou seja, cerca de um quinto, tinham direito à majoração de 10% no subsídio de desemprego. “O stress causado pela falta de dinheiro e a incerteza em relação ao futuro afecta não só o relacionamento entre o casal, mas também o relacionamento entre pais e filhos, que, em casos extremos, poderá levar a situações de negligência ou mesmo de violência”, alerta o relatório.

Abono de família com menos 546 mil crianças
No capítulo dedicado às políticas públicas nestes anos de crise, o relatório constata que houve uma redução significativa do apoio económico do Estado às famílias. Ao mesmo tempo que aumentaram os impostos, o acesso a prestações como o Rendimento Social de Inserção, abono de família, acção social escolar e subsídio social de desemprego ficou muito mais restrito. E o montante dos apoios financeiros também diminuiu. No caso do abono de família, por exemplo, 546.354 crianças perderam o direito àquela prestação, em 2010. Corresponde isto a 30% dos beneficiários. Por outro lado, a despesa do Estado com esta prestação caiu 33% em 2011. Em 2012, com uma nova quebra de cerca de 4%, o valor da despesa com esta prestação “a preços constantes” aproximou-se do valor de 2002.

No cômputo geral, “apesar das medidas tomadas perlo actual Governo no âmbito do Programa de Emergência Social – e.g. recuperação do Fundo de Socorro Social, criação das tarifas sociais de gás natural e de electricidade, majoração do subsídio de desemprego para casais com filhos em que ambos estão desempregados – a vulnerabilidade económica dos agregados familiares, designadamente daqueles com crianças a cargo, acentuou-se entre 2010 e 2013”.

Na comparação internacional, e no que toca ao apoio às famílias, Portugal não se sai muito bem na fotografia: em 2009, o Estado português investiu 1,7% do PIB em despesas com prestações familiares, contra os 2,6% da média dos países da OCDE. Na Suécia é de 3.75% e em França de 3.98%.

No capítulo das recomendações – e entre reparos ao aumento do número legal de crianças por sala no pré-escolar, o que “põe em causa a qualidade dos serviços prestados, a segurança e o bem-estar das crianças” –, a Unicef começa por lembrar que “a recuperação da crise deve começar com os mais vulneráveis e desprotegidos”. No seguimento dessa lógica, propõe a criação de uma estratégia nacional para a erradicação da pobreza infantil centrada nos direitos da criança que “promova uma intervenção integrada e coordenada das várias áreas sectoriais (saúde, educação, serviços de segurança social, emprego, finanças), definindo metas de objectivos concretos”.

Para que seja possível um retrato realístico da situação das crianças portuguesas, a Unicef propõe ainda o desenvolvimento de um sistema “global e integrado” de recolha de dados que abranja todos os aspectos da vida das crianças até aos 18 anos, “especialmente em tempos de crise”. Ao mesmo tempo, o Governo é aconselhado a avaliar o potencial impacto das políticas de resposta à crise na vida das crianças, “nomeadamente no direito à sobrevivência e desenvolvimento, no direito de beneficiar de segurança social, saúde e educação”. “Esta avaliação deve centrar-se não só sobre medidas passadas, mas também sobre as actuais e futuras”, precisam os autores do relatório.

A garantia de acesso gratuito das crianças entre os zero e os três anos de idade e provenientes de famílias carenciadas à educação pré-escolar é outra das recomendações do Comité Português para a Unicef. Que, por último, sugere ainda a criação de uma entidade para os Assuntos das Crianças e da Juventude como resposta à falta de uma estrutura nacional de coordenação e monitorização da aplicação da Convenção Sobre os Direitos da Criança em Portugal.

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