O corpo de Pasolini atropelado por uma floresta de skaters
Teorema, criação de John Romão a partir do filme e do texto homónimos do autor italiano, é a primeira estreia absoluta do reaberto Teatro Municipal Rivoli, no Porto.
Foi um "caso", e continua aberto (especialmente agora que, depois da estreia em Veneza do biopic de Abel Ferrara, foi declarada oficialmente aberta a Pasolini-renaissance e várias gerações, contemporâneas ou descendentes da morte do cineasta, "desenterram" activamente o seu cadáver). Não por necrofilia, no caso de John Romão: "Este espectáculo não poderia ter sido feito se não soubéssemos do fim trágico de Pasolini. Ele próprio disse frequentemente em vida que a sua obra só poderia ser entendida quando morresse – a morte dele, em certo sentido, encerra a obra, é uma chave determinante para a sua leitura."
Onde estamos, afinal, nesta noite em que um actor se faz cercar por 12 skaters, um acordeonista (Fábio Palma) e uma peça da compositora russa Sofia Gubaidulina (Et exspecto)? Em 1975, junto à praia, na noite da morte de Pasolini; em 1968, na Itália burguesa (mas a luta, de classes, continua) de Teorema – o filme proscrito, considerado "inadmissível" pelo Vaticano, que John Romão vampirizou para construir este espectáculo –; ou em 2014, no Porto da depredação capitalista onde os motards entregam pizzas ao domicílio e os skaters fazem círculos em torno dos não-lugares, sobretudo quando são fotogénicos?
"Este espectáculo procura uma relação com o filme e com o texto homónimos, mas também procura uma relação com a actualidade. Não se trata de transpor, trata-se de propor uma relação com os corpos da obra de Pasolini, que aliás era perito em misturar nos seus filmes os grandes actores com gente do povo, e com o próprio corpo de Pasolini. Os skaters têm esse papel: são figuras profanas – mas ao mesmo tempo objectos de desejo, de fétiche e de contemplação – do mundo contemporâneo. É esse lado da suspensão do olhar sobre os skaters, exibicionistas por natureza, que quero explorar, elevando essa suspensão ao nível sagrado, religioso, da contemplação", defende John Romão, a quem também interessa a ambiguidade dessas figuras, na fronteira entre a marginalidade e a total assimilação pelas lógicas do consumo capitalista.
Desejo, luta de classes, marginalidade, capitalismo, sagrado: estamos, afinal, dentro da cabeça de Pasolini, tanto quanto é possível sondar, ainda que apenas superficialmente, uma cabeça tão irredutível (demasiado decadente para a direita, demasiado fetichista para a esquerda, no sentido religioso da palavra). A presença do encenador em palco é, nesse sentido, uma forma de reclamar a necessidade dessa cabeça para pensar os dias de hoje: "O meu corpo enuncia não a minha morte, como o corpo de Pasolini naquela noite de 1975, mas a possibilidade de seguir por caminhos mais desconhecidos e mais inimagináveis."
Para John Romão, é um processo em curso desde 2013, o ano em que co-dirigiu com Paulo Castro a peça Cada Sopro, em que o dramaturgo australiano Benedict Andrews se apropria do mesmo Teorema, e que se prolongará em 2015 com a encenação de Pocilga, naquela que será a primeira montagem da peça em língua portuguesa: "Sinto-me quase perseguido pelo Pasolini. Mas é uma perseguição natural porque como actor e encenador sempre me interessaram os corpos e as relações – de poder, submissão, adoração, fascínio, contemplação, desejo – que eles suscitam. Nisso sinto que o Pasolini não é um autor de outro tempo mas um autor do meu tempo." Que adaptou tão livremente neste Teorema quanto Pasolini se adaptou a si próprio no trânsito entre o filme e o texto em que se baseia esta primeira estreia absoluta do ciclo O Rivoli Já Dança! que segue depois para Lisboa, onde se apresentará a 27 e 28 de Novembro no Festival Temps d'Images.