Dacosta, ou o eterno retorno da pintura
O centenário do pintor António Dacosta é assinalado por uma retrospectiva da sua obra no CAM. Muito para além do Surrealismo, com o qual o seu nome é associado, esta é uma obra que soube motivar as gerações mais novas.
Nascido em Angra do Heroísmo, Dacosta completaria 100 anos se ainda vivesse. Morreu em 1990, em Paris, cidade para onde se auto-exilara em 1947. Nascido numa família humilde, ingressou em 1935 nas Belas-Artes, em Lisboa, para estudar. Por esta altura conheceu António Pedro, com quem participou, em 1940, na famosa exposição da Casa Jalco que marca o início da aventura surrealista em Portugal. José-Augusto França, historiador, crítico e ele próprio participante no grupo surrealista que integrou esses dois pintores, contribuiu para alicerçar este movimento como fundador da obra de Dacosta. Mas, como sublinha José Luís Porfírio, comissário desta exposição, ela ultrapassa em muito os limites algo ilustrativos da plástica surrealista, transformando-se naquilo que a pintura realmente é: conceito, gesto, cor, mancha, luz. “Quis demonstrar que a obra de Dacosta é um eterno recomeçar do mesmo”, afirmou.
E, no entanto, Dacosta nem sempre pintou. A partir de 1943 há uma espécie de esgotamento da sua pintura. Começa a publicar críticas de arte, primeiro a partir de Lisboa e depois de Paris. Só abandonaria esta actividade em 1980. O curador conta como Dacosta menosprezava o que escrevia, chamando-lhe “as minhas croniquetas”. Mas o que é certo é que, na história da crítica de arte em Portugal que ainda está por fazer, constitui um dos raríssimos exemplos de artistas que também foram críticos. No seu caso, a pintura só ressurge em meados da década de 70. De 1947 até lá apenas mantém esta prática a nível estritamente privado.
Em 1980, José-Augusto França pede-lhe um quadro para uma exposição de apoio à candidatura de Ramalho Eanes à Presidência da República. Dacosta manda uma pequena colagem em tons de azul e ocre, que o crítico considera “uma das maiores alegrias na vida.” Começa depois a trabahar com o galerista Manuel de Brito, e faz uma exposição em Lisboa, em 1983, seguida de outra no Porto, na antiga Zen. Era o regresso de Dacosta ao meio da arte portuguesa. Algum tempo mais tarde, dois então jovens críticos, João Pinharanda e Alexandre Melo, num livro assinado por ambos, assumiam-no como um dos artistas mais velhos cuja obra era relevante para as jovens gerações. Depois da euforia ainda de raiz vanguardista que tinha acompanhado os anos da Revolução, Dacosta demonstrava a certeza de que a pintura não tinha, afinal, morrido.
Um pintar mais antigo
Mas regressemos à exposição. O comissário dividiu-a em diferentes núcleos, dos quais apenas dois, Cena aberta e Crise mitológica, são estritamente cronológicos, correspondendo ao período surrealista e àquele que, ainda nos anos 40, se lhe sucede imediatamente. Nestes, podemos confirmar já a extraordinária coerência de uma prática que alia a matriz inspirada nos horizontes desolados de Dalí ou na estranheza das associações de imagens de um De Chirico, uma matriz fundamental no Grupo Surrealista de Lisboa que Dacosta integrou, com uma poética mais íntima e pessoal a que chamaram açoriana. Relevos vulcânicos, figuras petrificadas, uma luz de fogo afloram em quase todas as composições, provavelmente como resultado de memórias de infância ou de uma reflexão sobre a Europa em guerra. Antítese da Calma, uma peça desta época, traduz no seu título uma velada censura política a um país que se orgulhava do seu alheamento do conflito, ao mesmo tempo que introduz referências à obra de Picasso. É que o surrealismo em Portugal, como o neo-realismo quase seu contemporâneo, sempre foi um meio de exercer a oposição política pela arte.
Quando recomeça a pintar, quase três décadas mais tarde, Dacosta opera uma transformação radical na sua prática. A figuração explícita deu lugar à mancha; aos temas surrealizantes, mesmo de invocação insular, prefere uma reflexão sobre a própria condição humana que se traduzirá no trabalho sobre certos motivos ou séries, ou até numa pesquisa profunda sobre as inquietações ancestrais do homem. O alfa e o ómega, por exemplo, ou o tau, tornam-se questões recorrentes que afloram transversalmente nestes últimos 15 anos de trabalho. A exposição está exemplarmente montada para dar a ver esta última questão: há, por exemplo, um conjunto de trabalhos feitos a partir de uma “fonte em Sintra”, motivo sinuoso e simétrico que irá ressurgir uma e outra vez em diferentes pinturas. Noutros, uma pequeníssima série de semi-círculos sobre a paisagem açoreana onde a linha de horizonte se transforma em paralela próxima do diâmetro, deixando o espaço aberto, já não para a disrupção surrealizante, mas para a exultação do céu insular.
José Luís Porfírio, a propósito desta última fase, fala de “uma pintura nova e um olhar cristalino sobre as mais simples coisas”. Conta como se lembra dele em Paris, na década de 60, e do seu olhar arguto sobre a arte. E da diferença que sentiu entre esta época e os anos 80: “Parecia um menino. Tinha dois filhos pequenos, e acho que isso faz diferença num homem.” Dacosta, quanto a ele, disse um dia que regeressara à pintura ajudado “por aquilo que os meninos sabem e os adultos precisam de aprender”. E, de facto, há uma espécie de regresso à origem da pintura nestas últimas obras. Não à origem histórica, ao signo gravado ou pintado na gruta paleolítica, mas ao pintar ainda mais antigo: ao primeiro contacto com a forma, a figura, a cor, a luz, numa paisagem que é, sempre, açoriana. Porfírio acrescenta que Dacosta passou toda a vida a “olhar para o lugar onde não estava”. Nada, afinal, que o surrealismo não pretendesse. É, no fundo, a mesma origem primordial de que o pintor falava quando escrevia sobre a pele que molha a luz.