O Citius e o abuso do poder
Permitir que um dos três poderes – neste caso o legislativo – possa simultaneamente gerir, administrar e controlar um sistema informático com dados tão sensíveis como estes é, em última análise, abrir a porta ao totalitarismo
Mas apesar dos aspectos que tornam (quase) simétricos os efeitos do funcionamento destes dois sistemas operativos, há uma particularidade no Citius que dá bem a medida da delicadeza da sua gestão: a natureza confidencial dos dados que circulam nas suas entranhas. Imagine-se a diversidade de processos judiciais, de investigações em curso, a amplitude de arguidos e testemunhas, a sensibilidade dos depoimentos. Imagine-se uma falha na segurança, uma estrada aberta para o acesso indevido a este material. Imagine-se como gente sem escrúpulos pode tirar partido das informações recolhidas… O Citius não se limita a mexer com as vidas das pessoas, uma falha no seu funcionamento pode arrasar reputações.
Há poucas semanas atrás, o congresso dos juízes abordou a questão. Uma magistrada denunciou o facto de a gestão de dados do Citius estar sob a alçada de um organismo dependente do Ministério da Justiça, quando a lei obriga, desde 2009, a que seja o Conselho Superior da Magistratura a cumprir esse papel. Percebe-se perfeitamente a preocupação dos juízes. A possibilidade de um Governo – qualquer Governo - dispor de um manancial de informação desta natureza é extremamente perigoso. Por um lado, porque como diz Maria José Costeira, secretária-geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, «esta situação deixa o poder judicial cativo do poder político» na medida em que sentem o peso de uma constante observação e avaliação das suas decisões. Por outro, porque há suspeitas fundadas sobre a violação constitucional do princípio da separação de poderes. Desde Montesquieu, com o seu decisivo contributo para a arquitectura dos modernos estados de Direito, que estes se definem justamente pela forma equilibrada como funcionam os três poderes – executivo, legislativo e judicial. Ora, permitir que um destes pilares, neste caso o legislativo, possa gerir, administrar e controlar um sistema informático com dados tão sensíveis como estes, é abrir a porta ao abuso, à manipulação e, no extremo, ao totalitarismo.