Afinal quantos franceses ganharam o Nobel da Literatura?
O secretário da Academia Sueca disse que Patrick Modiano era o 11.º autor "nascido em França" a ganhar o Nobel da Literatura, um modo hábil de evitar ter de decidir quais são ao certo os laureados que se podem considerar escritores franceses. Certo é que neste início de milénio a literatura francesa volta a ter no pémio uma presença que não tinha desde os anos 60.
Não terá sido essa a intenção de Englund, mas ao sugerir que só houve 11 laureados franceses, reforça também a ideia, muito glosada na imprensa, de que o prémio nunca privilegiou tanto a França como hoje, já que em apenas sete anos, Modiano é já o segundo francês distinguido, depois de J. M. Le Clézio ter ganho o Nobel em 2008.
Em boa verdade, durante boa parte da história do Nobel da Literatura, era mais ou menos de regra premiar-se dois escritores franceses por década. Só depois de Jean-Paul Sartre ter recusado o prémio em 1964 é que se iniciou, para a França, a grande travessia do deserto, que duraria mais de 20 anos, até 1985, ano em que a Academia Sueca, reconhecendo bastante tardiamente o legado do chamado nouveau roman, atribuiu o prémio a Claude Simon. Um autor que, de resto, não integrará os tais 11 franceses referidos por Englund, ainda que tecnicamente tenha vindo ao mundo em território francês. Madagáscar, onde nasceu em 1913, era então uma colónia francesa, mas já se tornara independente há 25 anos quando o Nobel consagrou o autor do romance O Vento: Tentativa de Reconstituição de Um Retábulo Barroco, que teve o privilégio de ser traduzido para português por Mário Cesariny.
De Simon a Le Clézio, ou seja, de 1985 a 2008, só um cidadão francês recebeu o prémio, em 2000, e digamos que não era propriamente um francês típico, uma vez que nasceu em Ganzhou, na China, escreve essencialmente em mandarim, e dá pelo nome nada gaulês de Gao Xingjian.
Não por acaso, responsáveis da Gallimard, a editora de Patrick Modiano, quiseram ver neste prémio o reconhecimento de que a ficção francesa atravessa um momento pujante. Uma extrapolação que se tornou agora ainda mais irresistível com a atribuição Nobel da Economia a outro francês, Jean Tirole, logo saudado pelos principais responsáveis políticos do país como um prémio que “enche de orgulho a escola de economia francesa”.
No entanto, e voltando agora à literatura, parece indiscutível que a criação literária francesa foi perdendo progressivamente repercussão internacional ao longo das últimas décadas, quer na ficção, quer na poesia, em boa parte pelo triunfo do inglês no mundo globalizado, mas também porque não se vêem hoje muitos sucessores que verdadeiramente pareçam estar à altura dos grandes poetas e romancistas franceses do passado, mesmo que pensemos num passado não muito distante.
A presença da literatura francesa no Nobel ao longo destes últimos anos é semelhante à que teve em vários outros períodos da história do prémio, mas nunca terá correspondido tão pouco a um efectivo reconhecimento internacional da sua importância e influência.
Contas difíceis
Em rigor, estas comparações quantitativas implicariam definir previamente o que se entende por autores franceses. Exercício menos óbvio do que parece. Não nos apressemos, portanto, a censurar o secretário da Academia Sueca por recorrer a um critério de pertinência discutível e que deixa de fora, por exemplo, Albert Camus, cujo lugar na literatura francesa (e não apenas francófona) se julgaria indisputável. A verdade é que outro qualquer critério também esbarraria em casos controversos.
Talvez o mais criticável ainda seja o facto de Englund não ter pelo menos explicado que a expressão “nascido em França” deveria ser lida como significando “nascido na França continental”. É que se o critério for “nascido em território que hoje pertence à França”, então Modiano é o 12.º, e não o 11.º. E se se contabilizarem todos os que nasceram em território que à época era francês, mesmo que hoje já não o seja, então teremos 14.
Já pelo critério da nacionalidade, seriam 15, não considerando Ivan Bunin, um russo que se refugiou em Paris após a revolução bolchevique e que em algumas listagens dos prémios Nobel da Literatura é arrumado no contingente francês. Mas Bunin, além de ter continuado a escrever em russo, nunca adquiriu a nacionalidade francesa. Em 1933, ano em que recebeu o Nobel, era tecnicamente um apátrida.
Já Gao Xingjian era mesmo cidadão francês (há dois anos) quando foi escolhido pela Academia Sueca, em 2000, e essa talvez tenha sido mesmo uma das razões que levou Peter Englund a não se reger por um critério que implicaria retirar à China um dos seus dois únicos Nobel da Literatura. Uma cautela talvez excessiva, tendo em conta que a reacção das autoridades chinesas à consagração do dissidente Gao Xingjian não foi propriamente entusiástica, ao contrário do que sucederia em 2012 com a atribuição do prémio a Mo Yan, festivamente saudada nos media estatais.
Haveria, finalmente, o critério da língua, que esbarra com o espinhoso caso de Samuel Beckett, que escreveu originalmente em francês uma parte muito considerável da sua obra. Note-se que mesmo a versão inglesa da Wikipédia, ao inventariar por ordem decrescente as línguas mais representadas no Nobel da Literatura, opta por incluir o dramaturgo, ficcionista e poeta irlandês entre os autores de língua francesa. Outros casos de bilinguismo na galeria do Nobel da Literatura são Rabindranath Tagore, o primeiro não-europeu a ganhar o prémio (em 1913), que escrevia em bengali e inglês, e o escritor russo Joseph Brodsky (premiado em 1987), que se tornou cidadão dos Estados Unidos e que utilizava o inglês para a prosa e o russo para a poesia.
Se dispensarmos Beckett, os autores francófonos seriam 14 ou 15, consoante incluamos ou não Frédéric Mistral (ganhou o Nobel em 1904), cuja obsessão pela revitalização da langue d’oc, também chamada occitano, ou provençal, a língua dos primeiros trovadores europeus, o levou a escrever o essencial da sua criação literária nesse idioma.
É provável que, por esta altura, o leitor já se sinta suficientemente baralhado para começar a encarar com alguma condescendência o artifício a que o secretário da Academia Sueca recorreu para evitar enredar-se neste intrincado novelo linguístico-geográfico-político. Afinal, perguntar-se-á, quantos foram afinal os franceses que ganharam o Nobel da Literatura?
Por estranho que pareça, responder “entre 10 e 18” não seria inteiramente absurdo. De facto, se considerarmos apenas os autores que cumprem todos os critérios a que fomos aludindo atrás, não nos restarão mais do que dez. E até seriam apenas nove se retirássemos os que têm alguma outra nacionalidade além da francesa. Mas se, pelo contrário, admitirmos todos os que se enquadrem em pelo menos um dos critérios – ter nascido em França ou num território que já foi francês, dispor de nacionalidade francesa ou ter escrito uma parte significativa da sua obra em língua francesa –, então ficamos com nada menos do que 18.
A “direcção ideal”
O melhor talvez seja percorrê-los um a um, o que nos permitirá ainda ver como a história da presença francesa no Nobel da Literatura serve bem para ilustrar a própria evolução do prémio, com as suas sucessivas mudanças de orientação e critérios.
O escritor que inaugurou a distinção, em 1901, foi o parisiense Sully Prudhomme (1839-1907), um poeta e ensaísta cujo nome será bastante menos familiar aos leitores de hoje (e aos do seu próprio tempo) do que o do seu compatriota e contemporâneo Émile Zola, que morreu no ano seguinte sem receber o Nobel.
Não por acaso, a Academia elogiou a Prudhomme o “elevado idealismo” e a “rara combinação de coração e intelecto”. Se Alfred Nobel quisera que todos os prémios a instituir com a sua fortuna recompensassem os que mais tivessem contribuído para o “benefício da humanidade”, no que respeita ao Nobel Literatura, o seu testamento acrescentava que este deveria ser atribuído aos autores que tivessem “produzido, no domínio da literatura, as obras mais destacadas numa direcção ideal”. Ou “idealista”, já que a palavra sueca “idealisk” é traduzível por ambos os termos e o contexto não é esclarecedor.
Ao longo dos anos, a Academia iria interpretar esta frase mais ou menos a seu bel-prazer, mas só há algumas décadas começaram a ser premiados criadores de obras mais marcadamente negras e pessimistas.
O escritor e historiador da literatura Kjell Espmark, membro da Academia Sueca há mais de meio século, defendeu num artigo que os anos iniciais do Nobel da Literatura ficaram marcados pela influência do poeta e crítico Carl David af Wirsén, que foi secretário da Academia até à sua morte, em 1912, e a quem chamavam “o D. Quixote do idealismo romântico sueco”. Wirsén era um idealista conservador, para quem a Igreja, o Estado e a família eram instituições sagradas, e que, claro, detestava Zola, com o seu naturalismo, a sua violência social, os seus bêbados e prostitutas.
Percebe-se, assim, que autores como Tolstoi (a mais gritante ausência nesta primeira fase do prémio), ou Ibsen, um dos fundadores do modernismo no teatro, tenham sido preteridos em favor do estimável Rudyard Kilping, o primeiro autor de língua inglesa a receber o prémio, em 1907, ou do hoje bastante esquecido Paul Heyse, um prolífico autor alemão que tinha já 80 anos quando lhe deram o Nobel.
É ainda neste período do consulado de Wirsén que, em 1904, a escolha recai num segundo francês, o já citado Frédéric Mistral (1830-1914), que é um dos tais que não cumpre, por assim dizer, todos os critérios. Nasceu no sul de França e era indubitavelmente francês, mas o essencial da sua obra foi escrito em occitano. Deve-se-lhe aliás um dicionário de provençal que ainda hoje é uma referência.
Já o dramaturgo e poeta simbolista belga Maurice Maeterlinck (1862-1949), premiado em 1911, cumpre apenas o critério da língua: nasceu em Ghent, na região flamenga da Bélgica, mas provinha de uma família francófona e escreveu as suas obras em francês.
Clássicos e populares
Segue-se o dramaturgo e ficcionista Romain Rolland (1866-1944), autor da monumental saga romanesca Jean-Christophe, premiado em 1915. Admirador de Gandhi, Rolland era um humanista e pacifista, tendo publicado, em plena primeira guerra, artigos e panfletos a criticar o seu próprio país por querer prosseguir o conflito até uma vitória total que lhe parecia desnecessária e destrutiva. Talvez por isso mesmo, foi o único autor de uma das nações beligerantes a ganhar o Nobel da Literatura desde o início do conflito até 1920. Em 1914 e 1918, o prémio não foi atribuído, e nos restantes anos foi quase só atribuído a escritores escandinavos. A excepção, o poeta suíço Carl Spitteler, premiado em 1919, vinha de um país neutral.
O francês seguinte, o romancista e crítico literário Anatole France (1844-1924), ganhou o Nobel em 1921, quando a Academia, ainda que mostrando predilecção por uma certa grandeza clássica – em 1929, iria consagrar Thomas Mann –, já se tornara menos picuinhas na interpretação do testamento do fundador. Argumentando que a “direcção ideal”, que Wirsén tomara bastante à letra, passou então a ser lida como significando “uma calorosa humanidade”, Kjell Espmark defende que só esta mudança permitiu que fossem premiados autores como Anatole France ou o dramaturgo socialista irlandês George Bernard Shaw.
Em 1927, o prémio consagrou um filósofo francês, Henri Bergson (1859-1941), e seis anos mais tarde foi atribuído ao já referido Ivan Bunin, que dos tais 18 autores que, por um outro critério, se poderiam considerar escritores franceses, é talvez o caso mais forçado.
Nos anos 30, a Academia Sueca pareceu privilegiar autores de grande público, com uma escrita acessível, em detrimento de escritores mais difíceis e inovadores: é a década de Sinclair Lewis (1930), John Galsworthy (1932) ou Pearl S. Buck (1938). Em França, o beneficiado foi Roger Martin du Gard (1881-1958), autor de romances muito populares na Europa do tempo, como Jean Barois ou a saga familiar Les Thibault, em oito volumes, que lhe levou vinte anos a escrever.
Inovadores do pós-guerra
Após a segunda guerra, os académicos suecos começam a favorecer autores menos populares, mas que estavam a inovar e a transformar a literatura, como Hermann Hesse (1946), T. S. Eliot (1948) ou William Faulkner (1949). Se Marcel Proust não tivesse morrido precocemente em 1922, é bem possível que tivesse recebido o Nobel neste período, que assistiu à consagração dos seus compatriotas André Gide (1881-1958) e François Mauriac (1885-1970), respectivamente em 1947 e 1952.
E chegamos, com o prémio de 1957, àquele que é talvez o autor mais escandalosamente “excluído” da literatura francesa pelo critério geográfico de Englund: Albert Camus (1913-1960), autor de O Estrangeiro e A Peste, que nasceu na Argélia, filho de pais também já nascidos na então colónia francesa do norte de África. Mas o seu pai descendia de antigos colonos franceses e a sua mãe vinha de uma família espanhola de Menorca, no arquipélago das Baleares. É verdade que Camus manteve sempre uma fortíssima ligação à Argélia, que viria a tornar-se independente dois anos após a sua morte, mas retirá-lo à literatura francesa e considerá-lo um autor argelino é capaz de ser um bocado precipitado.
Outro caso de enquadramento controverso no critério de Englund é o Nobel de 1960, o poeta Saint-John Perse (1887-1975), pseudónimo do diplomata Aléxis Léger, que nasceu em Guadalupe, nas Caraíbas, colónia francesa desde o século XVII e ainda hoje um departamento ultramarino francês.
Em 1964, o laureado foi o romancista, dramaturgo e filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), que nasceu e morreu em Paris. Mais controverso é que tenha de facto recebido o Nobel, uma vez que o recusou.
Ignorando o caso de Samuel Beckett, premiado em 1969, a literatura francesa só regressa ao Nobel em 1985, com Claude Simon. E saltando também Gao Xingjian, antes de Modiano resta apenas Le Clézio, que nasceu em Nice, pelo que cabe no critério de Peter Englund, embora a sua família, originária da Bretanha francesa, esteja radicada na ilha Maurícia desde o século XVIII e ele próprio tenha dupla nacionalidade e se considere um escritor de cultura maurícia e língua francesa.
O próprio Modiano, embora nascido em França, nos arredores de Paris, é filho de uma actriz belga flamenga e descende, pelo lado paterno, de uma família de judeus sefarditas expulsa de Espanha pelo decreto de 1492 e que se fixou em Tessalónica, na Grécia, onde ainda mantinha descendência no início da Segunda Guerra.
Mais nome, menos nome, a lista de franceses que ganharam o Nobel é longa, mas não necessariamente mais interessante do que a dos escritores franceses que tecnicamente podiam ter ganho o Nobel da Literatura e que morreram sem o receber. Se se percebe que a Academia Sueca entendesse que uma obra como a de Louis-Ferdinand Céline, por muito genial que fosse, não rumava propriamente na “direcção ideal”, e se é certo que teria de ter estado bastante atenta para reconhecer o génio de Proust antes da sua morte, em 1922, há muitos outros autores de língua francesa que não perdem na comparação com a maioria dos laureados. Um caso óbvio é o do poeta e ensaísta Paul Valéry, que morreu em 1945. Mas consoante os gostos de cada um, e referindo-se apenas meia dúzia de nomes, poderiam citar-se, num conjunto deliberadamente ecléctico, Antonin Artaud ou André Malraux, o prolífico Georges Simenon ou a clássica Marguerite Yourcenar, o poeta René Char ou a romancista e cineasta Marguerite Duras.