Com o gás, Moçambique quer fugir do exemplo de Angola

Economia moçambicana aposta em crescimento económico sustentado.

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Palma, zona onde esta prevista a construcao da plataforma de liquefacao de gas proveniente da Bacia do Rovuma Manuel Roberto/PÚBLICO/Arquivo

As enormes descobertas de gás e carvão em Moçambique colocam um novo desafio ao país. O governador do banco central de Moçambique não tem dúvidas: "O crescimento económico tem de ser inclusivo; não quero dizer que é preciso distribuir dinheiro pelas pessoas, mas sim garantir os factores que permitem desenvolver negócios, e o Estado, através da sua máquina, tem de gerar emprego”.

O aviso de Ernesto Gove sobre o país, um dos países africanos mais ricos em recursos naturais e repetidamente apontado como um caso de sucesso ainda a confirmar, surge porque Moçambique está no radar dos investidores internacionais, não só pelas potencialidades a nível de recursos naturais, nomeadamente no gás, mas também pela expectativa sobre a actuação do próximo Governo na manutenção da recente paz e na criação de um ambiente de negócios mais favorável. “Se isto acontecer, as pessoas vão deixar de olhar para os grandes projectos em Moçambique como inimigos do desenvolvimento ou razão da sua desgraça", diz ao PÚBLICO o banqueiro central.

Na corrida presidencial estão Filipe Nyusi (Frelimo – Frente de Libertação de Moçambique), Afonso Dhlakama (Renamo – Resistência Nacional Moçambicana) e Daviz Simango (MDM – Movimento Democrático de Moçambique). Desde o início de 2013, verificaram-se várias acções militares entre o braço armado da Renamo e o exército. A principal estrada nacional ficou condicionada no Centro do país e vários agentes económicos queixaram-se de prejuízos durante 17 meses. Só em Setembro foi assinado um acordo entre as duas partes, que prevê a desmilitarização progressiva da Renamo, embora permita ao partido manter-se com homens armados durante o período eleitoral.

No entanto, as eleições desta quarta-feira não devem preocupar os investidores: “A sociedade está mobilizada para mudar o país, independentemente de quem está na governação e a estratégia nacional de desenvolvimento deve ser respeitada”, assegura. Até porque “os manifestos eleitorais dos partidos mostram um denominador comum, mostram que querem estabilidade macroeconómica e da moeda e inflação baixa, o que significa que estão preocupados com a mobilização do investimento externo”, salienta o governador.

Moçambique, ao contrário de outros países africanos igualmente ricos em recursos naturais, beneficia de um conjunto de factores que podem ser decisivos na hora de as grandes multinacionais escolherem o destino dos seus investimentos. Desde logo, a proximidade com a Ásia, mas também a estabilidade económica e a paz social que se viveu nos últimos anos, que atraiu não só grandes empresas ocidentais, como a italiana Eni e a norte-americana Anadarko, mas também gigantes asiáticos de países como a China, Índia ou Japão.

Dois milhões de barris diários
Para se ter uma ideia do potencial de gás em Moçambique basta um número: só a ENI já descobriu reservas de gás equivalente a 9,5 mil milhões de barris de petróleo. Ou seja, Moçambique poderia, durante 13 anos, produzir dois milhões de barris por dia e passar directamente para o topo dos maiores produtores de petróleo na África subsariana, a par da Nigéria e de Angola. Visto de outra maneira, isto significa que os 150 biliões de pés cúbicos de gás já descobertos são suficientes para alimentar todo o consumo mundial durante mais de dois anos, de acordo com as contas do Banco Africano para o Desenvolvimento.

O problema, no entanto, não é a riqueza natural. Essa está lá e é abundante. O problema é todo o mundo de infra-estruturas que está por fazer: “As infra-estruturas são ainda escassas e inadequadas, principalmente no que diz respeito à mão de obra qualificada, por isso vai ser um verdadeiro desafio concretizar a primeira comercialização de gás em 2018”, a meta do Governo, explica o analista Virendra Chauham, da consultora Energy Aspects, que atira o grande salto económico do país para lá de 2020. “Moçambique é, na verdade, uma história para a próxima década, já que prevemos que a primeira exportação de gás natural liquefeito ocorra em 2020”.

O sucesso, ainda assim, já existe nos indicadores macroeconómicos e nos elogios das instituições internacionais à política económica moçambicana. Na semana passada, o FMI disse que Moçambique vai manter crescimentos pujantes acima de 8% nos próximos anos, conseguindo controlar a inflação e o défice orçamental. Mas as contas públicas podem desequilibrar-se se as receitas previstas da exportação de gás resvalarem no tempo e impedirem os pagamentos aos credores internacionais.

"Só em 2020 ou 2022 é que Moçambique deve começar realmente a exportar gás, mas se adia mais, o crescimento pode abrandar e todos os investimentos e empréstimos contraídos à espera destas receitas podem não se materializar, e começam a surgir problemas financeiros e orçamentais", explica ao PÚBLICO o analista da Economist Intelligence Unit que acompanha o país. Para já, diz Sebastien Marlier, o desafio principal de Moçambique é mesmo uma mudança estrutural na sua economia: "Qualquer que seja o partido vencedor, vai deparar-se com desafios inéditos no país, por isso a questão é como é que o próximo Governo vai conseguir gerir a passagem de um país dependente da ajuda internacional para um país dependente dos recursos naturais".

O presidente do Centro de Promoção do Investimento de Moçambique, equivalente à AICEP portuguesa, Lourenço Sambo, diz ter a resposta. “Primeiro, limpar a casa, depois capacitar o sector privado e empresarial, criando uma classe média; implementar projetos concretos e identificar os mercados-alvo, mas também evitar erros”, disse ao PÚBLICO.

Evitar erros angolanos
Os “erros” a que se refere o director da agência estatal encarregue de captar investimento externo podem resumir-se numa frase – evitar a excessiva dependência económica de um só sector – e têm um país como exemplo. “Temos de evitar os erros de Angola e de outros países que concentraram a sua actividade num só sector, e ficaram dependentes desse sector para prosperar”, diz Lourenço Sambo, que garante que o país “já aprendeu a lição do carvão”, área onde, por falta de infra-estruturas capazes de escoar rapidamente a produção, as grandes multinacionais perderam milhões de dólares com a descida dos preços internacionais e reduziram o envolvimento no país.

A nova Lei do Petróleo, aprovada este verão no Parlamento moçambicano, é um importante contributo e até foi bem recebida pelos analistas e pelas empresas internacionais, contentes por verter em legislação alguns dos acordos já assinados com o Estado, apesar de o executivo ter reservado para si margem de manobra, nomeadamente na discussão directa de atribuição de benefícios às grandes companhias internacionais que exploram os recursos naturais moçambicanos.

Entre os responsáveis moçambicanos e os analistas internacionais percebe-se que Angola é um exemplo sempre presente quando se fala de Moçambique: a maior economia lusófona em África tem um enorme potencial petrolífero e nos últimos anos despertou o interesse das maiores companhias de petróleo mundial, está a ganhar terreno na projecção internacional e no prestígio regional, elevou a sua produção para perto de dois milhões de barris por dia, mas a factura não tardou a chegar.

O sector não petrolífero é incipiente, o orçamento vive suportado no ‘ouro negro’, que rende quase 80% das receitas fiscais e vale 97% das exportações, o país vive agarrado aos mercados que definem os preços do crude internacional, a maioria da população ainda vive com menos de dois dólares por dia, a elite enfrenta diariamente acusações de corrupção e o esforço para diversificar a economia, apesar de assumido publicamente pelos dirigentes, está ainda muito no início.

“O processo é complexo, tem vectores relacionados com a política monetária, orçamental e políticas sectoriais, nomeadamente em relação aos sectores-chave de um processo de diversificação económica: agricultura e indústria transformadora”, explica ao PÚBLICO o director do Centro de Estudos e Investigação Científica (CEIC) da Universidade Católica de Angola.

A pauta aduaneira, aprovada em meados deste ano depois de sucessivos adiamentos, é um passo importante, empurrando as empresas exportadoras internacionais a passarem a produtoras no país, mas também a obrigatoriedade de fazer parcerias com empresas locais assume um lugar importante na qualificação da mão-de-obra e no desenvolvimento da economia local, ainda tradicionalmente assente na agricultura de subsistência.

Moçambique tem noção de que Angola só é um exemplo a seguir na projecção internacional e no prestígio regional. Não pode ser o guião para a dependência dos recursos naturais. Só que isso é mais fácil de dizer do que fazer. “Pela dimensão dos recursos existentes, o potencial de gerar receitas de que o Estado moçambicano necessita para sair da dependência externa, para financiar os projetos prioritários que podem contribuir para a redução da pobreza, é grande, mas há que ter cautelas para tomar decisões acertadas”, salienta ao PÚBLICO a investigadora do Centro de Integridade Pública de Moçambique, Fátima Mimbire.

“Esta atenção que se dá a um único sector ofusca a importância de outros, como a agricultura, que garante a subsistência de mais de 70% da população e que há vários anos não tem tido os investimentos devidos”, lamenta.

Lusofonia, uma oportunidade
Para as empresas portuguesas, Angola e Moçambique, assim como os outros países da lusofonia, são um poço de oportunidades, diz o presidente da AICEP: “São 250 milhões de habitantes que representam um mercado de consumo muito relevante e que, em conjunto com mais de um milhão de empresas desse espaço, detêm um PIB superior a 2,5 biliões de dólares, cerca de 4% do produto gerado a nível mundial”.

Esta realidade, lamenta Miguel Frasquilho, “parece ainda não ter sido compreendida por todos, nomeadamente no que tal pode representar em termos económicos, em termos de relações comerciais, de internacionalização e de investimento para os países da lusofonia”.

Em declarações ao PÚBLICO, Frasquilho lembra que “os fluxos de investimento directo estrangeiro dirigidos aos países da CPLP têm sido intensos e crescentes, registando desde 2009 uma taxa de crescimento médio anual de cerca de 9%”. Acrescenta que “ao nível do investimento, os países da CPLP têm-se evidenciado como pólo de atracção de IDE (investimento directo estrangeiro)”.

Nos últimos quatro anos, “o IDE na CPLP registou uma taxa de crescimento médio anual superior a 13% (um aumento de 65% em valor) o que, tendo em conta que neste período ocorreu a crise financeira mundial, demonstra bem como os investidores mundiais estão a olhar para as potencialidades desta comunidade de países”, conclui Frasquilho. Por tudo isto, Moçambique está numa encruzilhada: ou consegue diversificar a economia e realizar todo o seu reconhecido potencial, ou deixa-se afundar na dependência do gás e na exposição à volatibilidade dos mercados internacionais. 

Balança Comercial com Portugal
Do ponto de vista das empresas nacionais, Angola tem sido encarada como uma saída para evitar a contracção da actividade interna, mas Moçambique também já despertou o interesse dos empresários. As exportações de bens e serviços de Portugal para Moçambique subiram significativamente nos últimos quatro anos, passando de 163,7 milhões de euros, em 2009, para 434,1 milhões, no ano passado, uma subida de 165%.

Os números da AICEP sobre a relação comercial entre Portugal e Moçambique empalidecem quando comparados com Angola, o verdadeiro motor da relação económica com África, mas ainda assim estão a subir: Moçambique aumentou as suas exportações de bens e serviços para Portugal em 88% nos últimos quatro anos, tendo vendido quase 131 milhões de euros.

O número de empresas portuguesas a exportar para aquele mercado africano, por seu lado, também mostrou o crescente envolvimento entre os dois países: de 2008 a 2012, duplicou de 1316 para 2677.

Exclusivo PÚBLICO/Agência Lusa