Os ritmos do festival Semibreve existem para fazer dançar as certezas
Cada vez mais consolidado, o festival Semibreve voltou a fazer de Braga o refúgio perfeito para uma programação de electrónica experimental que obriga o público a deixar as suas seguranças musicais à porta.
Ao invés do habitual cenário de computador portátil pousado sobre uma toalha preta pousada sobre uma mesa, em que o músico em palco se encontra praticamente tão estático quanto o espectador na plateia, nos Roll the Dice há um pouco mais do que cursores no ecrã ou botões manuseados. A música é também menos abstracta do que aquela que ouvimos a grande parte das luminárias da electrónica experimental que passam por Braga, procurando uma ordem onde muitas vezes parece só se ouvir aleatoriedade.
Quando Mark Fell, por exemplo, apresenta o estimulante espectáculo Multistability, em substituição de última hora da adoecida Karen Gwyer, aquilo a que se assiste é uma música para apreciação mais analítica do que emocional. Durante 35 ou 40 minutos, Fell põe em prática uma espantosa desconstrução rítmica, espécie de pescadinha de rabo na boca em que o rabo teima em escapar-se até ser novamente abocanhado num ciclo ligeiramente diferente. Ou seja, há uma dança de padrões rítmicos, empurrando-se, roubando o protagonismo, transformando constantemente a percepção daquilo que ouvimos e mostrando, afinal, o ritmo como matéria instável. Este lado quase científico do som, explorado igualmente pelo holandês Thomas Ankersmit, parece equivaler neste último a uma acção de contínua sabotagem do sinal sonoro, numa repetida colocação de pedras na engrenagem electrónica, performance mais impenetrável toda ela a gravitar em torno de uma ideia de desestabilização. É um jogo de manipulação a descoberto.
Por isso mesmo, num contexto de elevada experimentação e de propostas cuja fruição musical exige um estômago bem forrado, os concertos dos cabeças de cartaz Roll the Dice (sexta-feira) e Demdike Snare (sábado) soam, repentinamente, a um bálsamo de ordem e estrutura. De forma inteligente, o Semibreve submete o público às experiências mais difíceis ao início da noite, reservando as actuações finais no palco do Theatro Circo para propostas em que existem menos barreiras à entrada. Nos Roll the Dice, a teia de tensão vai-se compondo lentamente, sempre a caminho de um vórtice final. Com as camadas electrónicas atravessadas por melodias minimais ao piano ou fios melódicos que se colam ao ritmo, a construção musical do duo vai engrossando e puxando sempre novas camadas até faltar o ar, até se tornar quase insuportável uma ocupação tão densa do espaço. O som primoroso oferecido pela sala ajudaria a uma actuação que terminou com o público encostado à parede, as cordas pré-gravadas a dar o toque final numa tensão arrepiante e no limite.
Com os excelentes Demdike Stare (Sean Canty e Miles Whittaker), a intensidade não seria menor. Por detrás dos dois, em permanência, imagens que reforçavam a inquietude e a aura fantasmagórica da música, com vislumbres de corpos nus a remeterem não tanto para o desejo como para uma fragilidade demasiado exposta. Não espanta que a dupla confesse ter adoptado inicialmente o mote de estar a fazer uma banda sonora para um filme de terror inexistente. Os sons cruzados pelos dois são de uma tremenda densidade sombria, com uma gravidade subterrânea, de recusa em oferecer qualquer revelação. A espaços, a marcha maquinal, os murmúrios infernais e os pulsares de batimentos cardíacos puxam fios de vozes desesperadas. Tudo processado, é um guião de angústia e de sobressalto que vinga, sem qualquer desaceleração do tom hipnótico.
Sem certezas
A par dos concertos nas duas salas do Theatro Circo, o Semibreve convida ainda à imersão em instalações que exploram a ligação entre som, imagem, espaço, robótica, etc., nos corredores e salão do Theatro Circo mas também no edifício do GNRation (antigo quartel da Guarda Nacional Republicana, reconvertido em pólo criativo pela Capital Europeia da Juventude). Mark Fell e Anna Zaradny, ambos no programa principal do festival, marcaram também presença neste domínio. Mas, à margem das salas, a melhor intervenção viria de Pierce Warnecke, num cruzamento de vídeo e som apresentado na livraria 100ª Página. Partindo de uma citação de Jorge Luis Borges – “se a realidade é precisa, a memória não o é” –, recorre a estas palavras como desculpa para uma sucessão de fragmentos narrativos, olhares sobre a erosão e texturas rochosas, num belo objecto fílmico em que o som contribui para esse mesmo registo de esgravatação e procura por reconstituições incompletas e transformadas pelo tempo.
Por esta quarta edição do Semibreve – começou na quinta-feira, termina este domingo com Ryoichi Kurokawa e Plaid –, que está em crescente afirmação internacional, passaram ainda os parcimoniosos diálogos com que os @C convocam o ambiental e o exótico, o peso e o escape, assim como Mark Fell na sua pele de Sensate Focus – um DJ para corpos espasmódicos, em que os ameaços de qualquer assomo de linguagens dançáveis são dizimados por ritmos quebrados – e Ivvvo, naquela em que terá sido a única circunstância do Semibreve em que havia uma resposta tipificada sob a forma de dança. No resto, a arriscada e desafiante programação cumpre magnificamente o seu papel de tentar surripiar ao público as suas certezas musicais.