Há claustrofobia, há devastação na música dos Roll the Dice

Depois de encarnarem dois tipos à procura de ouro e dois trabalhadores fabris na Revolução Industrial, os Roll the Dice apresentam-se em Until Silence a empurrar um piano sobre os escombros da I Guerra. É a isso que soará, hoje, um dos concertos mais esperados do Festival Semibreve, em Braga.

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Não se trata apenas de uma imagem sugerida pelo último álbum, Until Silence (2014), construído a partir de uma soterração no universo da I Guerra Mundial. É uma imagem que se impõe, antes de mais, pela forma como o piano parece arrastar-se, abrindo caminho pelo meio de um amontoado de electrónica e sobre ela vai avançado, pisando-a, mais ou menos seguro, como que esticando-se com os músculos retesados para se manter à tona de um cenário de devastação. Funciona, ao mesmo tempo, como um reduto de sanidade, um apego último à ordem que escapa a tudo o resto.

“O piano tem o papel de encontrar espaço”, defende Malcolm Pardon, o elemento inglês do duo que se formou em Estocolmo em 2007. “A electrónica e os restantes elementos funcionam como espinha dorsal e fundações, enquanto o piano tem de encontrar o seu raio de acção tanto ritmicamente como tonalmente para operar em conjunto com esses componentes.” O facto de contribuir com coordenadas rítmicas e tonais, de facto, resolve por inteiro a deriva abstracta em que a música dos Roll the Dice poderia ver-se largada, dispensando batidas impositivas que deslocariam erradamente o eixo da sua música para uma electrónica com o ritmo por força motriz. Não é esse o caso. Sempre que há loops a entrar em cena, mais depressa somos levados a pensar em batimentos cardíacos tomados pelo pânico, passos pesados e assustados, canhões disparados lá longe. Dificilmente alguém poderá ouvir aqui um convite à dança.

Talvez porque a música dos Roll the Dice se constrói em torno de fortes conceitos narrativos, procurando mais do que uma resposta física aos estímulos sonoros que vai debitando. Se no disco de estreia homónimo os músicos vestiam duas personagens, dois homens com mãos pendentes sujas de esgravatar a terra em busca de ouro, no segundo In Dust apareciam-nos como dois trabalhadores protagonistas da Revolução Industrial, imersos sempre num ambiente tenso e saturado. “É quase como um storyboard, uma vez que não escrevemos letras e não há nenhuma história a ser contada com palavras”, diz Pardon sobre as premissas ficcionais. “Portanto, temos de contar uma história musical e quando estamos na fase inicial de construção dos temas é mais fácil se trabalharmos a partir de uma imagem mental. Depois, no fim de contas, a história acaba por não ter relação directa com a música, mas ajuda-nos a criar.” Findo esse trabalho de composição, os Roll the Dice escondem a moldura, deixando a música expandir-se para lá das barreiras iniciais, tentando impedir que a imaginação do público se veja barricada dentro do mundo inventado pelos dois.

Para Until Silence foram então buscar o motivo da I Guerra Mundial. “Para isso críamos um mapa mental de várias emoções e palavras, um caminho para percorrer, e íamos posicionando os esboços em que trabalhávamos nesse mapa”, descreve Peder Mannerfelt, principal responsável pelas camadas electrónicas. “Isso permitiu-nos saber aquilo que precisávamos de trazer e acrescentar à canção para a encaixar neste quadro mais vasto.”

Uma das consequências práticas desse mapa, antes de apagadas as suas linhas e deixados apenas os pontos desenhados, foi a resposta à pergunta “Como é que esta música poderia soar no período em causa?”. Pareceu-lhes óbvio que esse cunho cronológico deveria ser dado pelo uso de uma secção de cordas. Acontece que em nenhum momento de Until Silence as cordas funcionam como escapatória, como atalho para algum alívio que a música por vezes implora. Pelo contrário, o seu papel é o de não destabilizar o equilíbrio forjado entre piano e electrónica, permitindo-se nalguns casos adensar um tom crescente de insuportável claustrofobia. Exploração sublime em “Assembly”, mas ainda mais em “Perpetual Motion”, quando o próprio fantasma de Bernard Hermmann se diria assombrado por um reflexo quase grotesco do seu Psycho.

Loops distintos

A natureza cíclica da História, para quem tem o raciocínio treinado na arte de encadear loops, é motivo de reduzido espanto. Por isso, os Roll the Dice elegem o mote da I Guerra Mundial, “recolhendo novas pistas nas situações actuais”. “É muito curioso como tudo aquilo que se está a passar hoje no mundo encaixa de forma tão perfeita nesse ambiente”, alega Peder. O truque cumpre o objectivo simples de procurar um eco no tempo em que vivemos, não enviando as personagens desamparadas para o passado sem meios para voltar ao presente. A secção de cordas, precisamente, é uma corda lançada para esse tempo histórico, mas sem que os dois tenham intenção de querer verdadeiramente pertencer-lhe.

Ainda assim, nem sempre os loops na música dos Roll the Dice vivem da mesma duração. Segundo nos dizem os dois numa chamada skype com o ÍPSILON, descobriram recentemente que a riqueza da sua música reside, em parte, numa falta de sincronismo na forma como cada um ouve os trechos de cada tema. “O Malcolm ouve padrões num sentido rítmico diferente”, diz Peder Mannerfest, “quer seja o andamento, o tempo forte, o compasso. Isso leva a combinações muito interessantes. Eu posso estar a sentir a música num compasso de valsa em 3/4 e o Malcolm ouve um 4/4 convencional. E cada um toca de acordo com isso.” A situação fica particularmente exposta ao vivo, confessa Pardon. “Quem nos vir em palco, vai perceber que abanamos as cabeças de formas diferentes. Parecemos dois papagaios às cabeçadas em direcções e com tempos distintos.” Será fácil dar com eles, hoje à noite, no palco principal do Theatro Circo, em Braga, como figuras de destaque da quarta edição do festival Semibreve, partilhando o cartaz com gente como Karen Gwyer + Maria Mónica,  patten, Demdike Stare, Miles, Ryoichi Kurokawa ou Plaid.

O sincronismo nos Roll the Dice mora, afinal, na atracção extrema por ambientes afogados na penumbra. “É mais sedutor explorar lados sombrios”, ri-se Malcolm Pardon. “É uma paleta mais ampla, da qual podemos extrair mais ideias. Especialmente se levamos uma vida normal, temos miúdos e estas narrativas nos dão uma oportunidade de explorarmos lados que não existem nas nossas vidas quotidianas.” Até porque, reforça, não dá muito jeito ser sombrio quando os miúdos o chamam para lhe pedir que sirva o jantar.

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