O ser e o nada

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Herzog valeu a Saul Bellow a eterna admiração de Philip Roth e a inclusão nas listas de melhores romances de todos os tempos

Passaram-se 50 anos sobre a aparição do notável e irascível Herzog, o qual surgiu como um cometa no romance do mesmo nome, pela mão do seu criador (e némesis), Saul Bellow. Esta obra valeu ao autor o segundo dos três National Book Awards for Fiction que ganhou ao longo da vida, a eterna admiração de Philip Roth e o posicionamento nas listas dos melhores romances de todos os tempos, depois de ter arrebatado um público que continua a rever-se nas angústias deste judeu em crise de meia idade, feroz crente na razão, mas impotente na sua demanda de um sentido para a desordem do mundo.

O leitor tem o primeiro vislumbre de Moses Herzog no pico do Verão, num lugar remoto dos Berkeshires, no decadente casarão que adquiriu para satisfazer a sua voraz segunda mulher, que o obrigou a viver no campo, com a desculpa de que era um lugar melhor para criar a filha. Apanhado de surpresa por um pedido de divórcio, está à beira de um ataque de nervos e revê, maniacamente, todo o seu passado, desde o apartamento penumbroso e mal cheiroso da sua infância na Napoleon Street, em Montréal, até aos recentes e obscuros acontecimentos. Herzog já foi casado anteriormente mas é ciclicamente apanhado pela urgência erótica que o leva a desejar mulheres, as quais, invariavelmente, o decepcionam, assustam ou deixam de preencher os seus exigentes requisitos. A placidez que aparenta é desmentida por uma agitação que o consome e o impele a escreve cartas sobre cartas a familiares e amigos, a inimigos e figuras públicas, a vivos e a mortos, num monólogo tonitruante que lhe ocupa a mente e guia os seus passos. (Imagine-se o que Moses não faria se, há meio século, houvesse redes sociais!)

Perante o facto consumado do colapso do seu casamento com a fria, calculista, mas sexy Madeleine — que o despede sumariamente —, Herzog, o professor de Língua Inglesa que carrega consigo um livro de poemas de William Blake, que investiga e escreve sobre o Romantismo, contempla a avassaladoramente e bem “romântica” ideia do suicídio, é tentado por um impulso homicida e esgrime ideias, memórias, referências e a própria História com uma verve que o aproxima perigosamente da loucura.

Quando escreveu Herzog, Bellow já tinha deixado para trás os seus romances mais sombrios e vivia em Chicago, essa cidade “vulgar mas vital” que lhe agradava mais do que Nova Iorque, a qual, para o canadiano que ele era, não representava bem a América. Contava já com o sucesso de As Aventuras de Augie March (1953), uma história em jeito picaresco sobre um homem cuja vocação, desde criança, é a do exercício da mais descarada e arriscada liberdade, um aventureiro, curioso e sedutor. Herzog é o seu contraponto, um ser ruminativo e desejoso de regressar à prisão do casamento, ao quente consolo familiar, com a cama conjugal, os banho da filha, o trabalho intelectual e as aulas dedicadas a Rousseau ou às teorias de T.E. Hulme.

Herzog

é um longo romance cómico — situado algures entre a ironia sonolenta da poesia de Leonard Cohen e o

chutzpah

neurótico de Woody Allen — em que o protagonista transmite a imagem perturbadora da instabilidade mental, com estados de euforia que se intercalam com o desespero da solidão e a depressão que a lembrança das traições — da ex-mulher, dos amigos, da família — lhe provoca. Na realidade, Moses Herzog é apenas um homem banal, o

everyman

moderno, enredado no caos de uma nova idade das trevas, a braços com o embaraço e o ridículo dos problemas familiares, profissionais e logísticos que não lhe permitem o espaço necessário para a busca da transcendência, para a tentativa de cura das dores da alma.

Não existem goyin (gentios) neste romance em que o humor e a sofisticação intelectual judaicas se espraiam ao longo da narrativa que oscila, desenfreadamente, entre a primeira e a terceira pessoa — um “ele” objectivo e um “eu” muito subjectivo. As longas e sinuosas divagações gravadas maniacamente nessas missivas que Herzog escreve — e nunca envia — alternam com memórias, suspeições, alucinações, encontros e obsessões. Para Moses Herzog — tal como para o autor —, as mulheres, misteriosas nos seus propósitos e nunca confiáveis, provocam terramotos emocionais e fazem vacilar a sua frágil estrutura mental. Seja Madeleine, a traidora que o deixa pelo melhor amigo, o flamejante e possante Valentine com o seu ar de flibusteiro — cabelo vermelho e uma perna de pau, um daqueles detalhes (exagerados) que Bellow adora introduzir — que compete com ele no seu próprio terreno académico, reduzindo-o à sua insignificância sexual e intelectual; seja Daisy, a primeira mulher, judia convencional, mais fria e mais constante; seja Tennie, a sogra condescendente e manipuladora; seja a filha, Julie, que o preocupa para lá do razoável; seja Romola, a “sacerdotisa do sexo” com quem Moses pensa casar, embora fuja da ideia com um misto de repugnância e vertiginosa atracção; seja Wanda, a polaca, leitosa e opulenta de carnes, eroticamente maternal e que provavelmente lhe pegou uma doença; sejam as figuras femininas imaginárias ou não — todas elas o perseguem física ou mentalmente, deixando-o exausto e insatisfeito. Herzog é o joker, o bufão que sofre — herdeiro apocalíptico do tradicional schlemiel judaico, trapalhão e desastrado —, aquele que se convence que falhou como marido, amante, pai, professor, amigo, escritor e não entrevê qualquer caminho que lhe possa devolver o raciocínio claro e a emoção pura.

De notar que a literatura americana tem contribuído para definir um espaço peculiar para as angústias do “judeu errante”, aquele que escapou ao extermínio na Europa mas que continua a carregar uma culpa histórica e moral. Autores como Bernard Malamud, Salinger, Norman Mailer e Roth, entre outros, colocam no centro dos seus escritos a figura do torturado (e cómico) personagem, permanentemente aguilhoado pela sua consciência, a braços com a incerteza sobre o seu lugar no mundo e perturbado pelo absurdo da sua condição (demasiado) humana.

Herzog, o homem que numa Primavera tardia descobre a necessidade de “explicar, confessar, justificar, perspectivar, clarificar e emendar”, é o mesmo que, deitado à noite ao ar livre e enrolado num velho casaco, se deixa subjugar pela visão das estrelas enquanto luta interiormente contra a evidência de que esses “corpos espirituais” não passam de “gases e fogo, minerais, calor e átomos”.

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