Uma espécie de arte venenosa

Os poemas de Lâmina são uma força contrária a certo estado de coisas, o reverso do progresso

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Na raiz deste livro de Jaime Rocha existe um movimento de retracção e recuo. Nele se encena um retorno a certa essencialidade animal NUNO FERREIRA SANTOS
Lâmina

obedece a uma lógica interna que impede este livro de ser uma simples reunião de dispersos escritos entre 1990 e 2013. Há nos poemas que o compõem um mecanismo de estrutura que os enquadra e lhes confere força vital. Cada um dos núcleos em que o livro se organiza –

Ciclo das Aves

,

Ciclo do Vento

,

Ciclo da Música

,

Ciclo Erros

– é finalizado por um poema fúnebre, em homenagem a um poeta morto: Fiama, Sophia, Ramos Rosa, Ruy Belo e Cesariny. O que cria uma relação forte em termos não só da composição de

Lâmina

, mas também no que diz respeito a um dos temas mais frequentemente presentes na poesia de Jaime Rocha, a morte. Significativamente, estes poemas fúnebres são seguidos de uma

Elegia

dedicada a Elizabeth Siddal e Sylvia Plath. Tanto a poeta inglesa (e musa de Dante Gabriel Rossetti), como a norte-americana, morreram, com quase exactos 100 anos de diferença entre si, no mesmo 11 de Fevereiro, devidamente notado em subtítulo. Trata-se de um poema em três partes que relê o tópico – especialmente premente em Jaime Rocha – da “conspiração do amor com a morte” (p.102). Nenhuma daquelas composições, porém, se afasta muito do que uma delas conhece por “tempo elegíaco” (p.38). Isto é, uma dimensão em que a morte sobreleva a própria vida.

Pode dizer-se que aqueles poemas servem como separações, lâminas a fazer o corte entre cada momento do livro. Como uma lamela que examinasse algo invisível a olho nu, e que fosse preciso perscrutar. E essa ideia de lâmina já fizera parte das reflexões do poeta. Numa entrevista (recolhida em O Falar dos Poetas, Afrontamento), afirmava Jaime Rocha: “As palavras inscrevem-se no poema como o sangue que corre de uma ferida. Essa ferida começa a sarar, mas por qualquer razão – há aqui um destino, um sinal – volta a abrir e o sangue regressa (…). O sangue corre-nos por dentro por algum motivo, não se vê, mas sabemos que lá está, em movimento. Ao poeta não lhe resta senão cumprir um desígnio: cortar a pele, as veias com uma lâmina e deixar soltar o sangue. É a dor subterrânea, mas não clínica, antes surreal, visionária, inquietante, tal como a vejo em William Blake.” Por outro lado, a noção de ciclo é presença antiga na poesia do autor, que concebeu para ela o que chama Tetralogia da Assombração, constituída pelos livros Os Que Vão Morrer, Zona de Caça, Lacrimatória e Necrophilia (Relógio D’Água). Mas Lâmina explicita mesmo esse conceito – “A cidade continua o seu ciclo de ervas” (p.15); “o vento terminou/ o seu ciclo na terra” (p.56) –, aproximando-o da circularidade, por vezes intoxicante no poema, do mundo natural. Daí que esta poesia conceba, a dado momento, um “espaço circular” (p.13), criando um mito metafórico para significar o terreno da obsessão que rodeia esse princípio de ciclicidade.

Os poemas de Lâmina são uma força contrária a certo estado de coisas, o reverso do progresso. Formam-se como o forçoso contrapeso da marcha imparável desse progresso. Revelam o caos que sucede à frágil aparência de ordem que se impõe, dúbia como um simulacro, paralisante como um narcótico. Na raiz deste livro, existe um movimento de retracção e recuo. Nele se encena um retorno a certa essencialidade animal – “O homem afasta-se então das algas e volta/ à cidade, vasculhando os restos de comida.” (p.29). O homem procura refúgio, alimento, o refrigério da memória. Busca o registo do que já não é. Haverá um papel “onde está gravada a descrição da mortandade” (p.32). Ao mesmo tempo, a natureza (outro ponto axial na poética de Rocha) sofre acção análoga, contrariando a sua evolução natural – “Tudo foi feito ao contrário” (p.81). Dá-se um movimento centrípeto e uma atracção para o interior – “terrivelmente dentro da paisagem” (p.5) –, para as «entranhas» (p.86). É esse outro dos desenvolvimentos mais notórios de Lâmina – “A cidade encosta-se ao mar, mas as/ suas ruínas voltam-se para dentro para/ os túneis, para os animais.” (p.81) De tal forma que há, a certa altura, uma quase «Descida aos Infernos» (e não seria descabido lembrar o poema de Carlos de Oliveira) – “A vida desce por uma escada rolante,/ para uma cave onde encontram já/ os corpos empilhados.” (p.83) Quanto à cidade, ela surge alegorizada como corpo do mal – “acorda como sempre/ debaixo de um suor agitado” (p.23). É a danação significada através das inúmeras espécies animais que têm o seu soturno cortejo nestes versos: formigas, baratas, pombos. E há um sol calcificado, remoto, frio, que lembra aquele que mal alumia os versos de Pessanha, e aqui se mostra um “cinzento” (id.). O lixo é um das imagens obsessivas destes ciclos poéticos. Ele refere a iminência de um apocalipse que estes versos já antevêem e desenham como mensagem aterradora a fixar numa caverna de qualquer futuro possível, onde tudo tenha soçobrado, enfim. É de tal forma portentosa, a imagem fantástica da ruína, que há pedreiros que lidam com o lixo, como se ele se tivesse tornado uma formação geológica que recobrisse a Terra. E as ruas são como “um grande/ vale de narcisos” (p.24). O que, em vez de higienizar a pestilência descrita, apenas faz recrudescer a sua sordidez, como num florescimento minado, amaldiçoado. E nem mesmo a aparição do elemento divino resgata a tempo o que é demasiadamente a parte maldita – “Todo o lixo humano é devorado/ num instante, como se deus ocupasse/ uma parte da terra.” (p.28) Como no poema de Edmond Jabès, o deserto é próximo – “A poesia espalha-se pelos cantos do deserto/ como um pássaro de fogo fugindo das cidades.” (p.65). Do mesmo modo que a violência se acerca do que era zona aparentemente desmilitarizada – “as/ guerras estão mais perto do que se pensa” (p.31)

Ao identificar “sombra” e “espaço feminino” (p.18), esta poesia reclama a mitologia de um feminino conotado com aspectos do maravilhoso, contaminando-o, ainda, com o modo cíclico que caracteriza Lâmina – “A música regressa como um fio de sangue/ arrastado pelo mar. Uma mulher aguarda/ essa água (…) O seu corpo é o eco das marés, da lua que se/ esconde por detrás de um grande morcego.” (p.73) A convocação de uma lexicologia evocadora da força motriz dos mares e do magnetismo lunar, dirige o poema para um universo nocturno, mas também fixa a importância decisiva do elemento feminino. Este volta a surgir nesta poesia como arquétipo e como um dos corpúsculos integrantes desta formação totalmente alienígena no quadro da poesia portuguesa do presente. Jaime Rocha possui um acesso único a um universo imagético onde o próprio mundo natural surge em rude confronto com uma artificialidade malsã, duvidosa – “As poças encontram fios de nylon no/ interior da água” (p.15). A sua poesia é única, na intimação dessa “espécie de arte venenosa” (p.10). 

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