Esse outro que me define

Vasco Araújo prossegue a sua reflexão sobre a construção da identidade portuguesa

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Vasco Araújo apropria-se da obra de Eduardo Malta em fotografias que reproduzem os muitos retratos que aquele fez da alta sociedade portuguesa durante o Estado Novo Susana Pomba

À partida, estamos perante uma série que convoca os melhores momentos da obra de Vasco Araújo. Re Cordum, como Debret já o fizera em 2009, parte de uma obra plástica institucionalizada e de um dado texto para reflectir sobre a questão da identidade. Também como em Debret, há um sentido de humor apurado que atravessa toda a montagem. Então, tratava-se de citações da ourivesaria de luxo associada a cenas moldadas em massa fimo; aqui, de plantas tropicais de plástico que falam (literalmente) para o espectador. Do mesmo modo, como o título indicava, Debret partia da obra gravada do artista do mesmo nome, um dos primeiros a olharem para a sociedade esclavagista brasileira do ponto de vista do europeu liberal. Agora, Vasco Araújo partiu da obra de Eduardo Malta e, de um modo que favorece a figura literária da elipse, reflecte sobre a construção identitária que opôs portugueses a africanos durante todo o Estado Novo.

Fixemo-nos então em Re Cordum, expressão latina que possui o duplo sentido de “voltar ao coração” e “recordar”. Eduardo Malta, que foi director do Museu Nacional de Arte Contemporânea (o ex-MNAC, hoje, Museu do Chiado) e o nosso melhor exemplo do chamado “regresso à ordem” das artes visuais depois do fim das vanguardas, é apropriado pelo artista em fotografias que reproduzem os muitos retratos que fez de membros da alta sociedade portuguesa da época. Como dítpticos ou trípticos, sem olhar a escalas, os retratados de Malta olham-nos com a arrogância de classe que os caracteriza, do alto de brilhantinas, vestidos de alta costura, peles, luvas e chapéus. Aqui e ali, outros retratos destoam: um chefe ou uma adolescente africana nua, sinais de um exotismo que fascinava e se oferecia única e obviamente como objecto de deleite estético.

Todas estas peças de parede estão acopladas a auscultadores que debitam excertos da ópera A Africana, de Meyerbeer, obra romântica que encena o encontro de Vasco da Gama com uma rainha da Índia, e que Vasco Araújo já tratou em anteriores trabalhos. O libreto, assinado por José Maria Vieira Mendes, acentua sempre a diferença que o ocidental pretende estabelecer em relação ao indígena. Uma diferença que passa aqui pela linguagem — é notório o tom diferenciador que os actores adoptam —, também uma constante na obra de Vasco Araújo. Por fim, sobre pequenas mesas de madeira, palmeiras de plástico debitam, através dos mesmos dispositivos, outros excertos da ópera, sem que nunca a relação com a peça construída seja explícita.

É neste espaço, que Vasco Araújo cria entre o que é dito e o que é visto, que a sua obra se abre a uma multiplicidade fecunda de sentidos e leituras. Dito de outra forma, é quando o trabalho deste artista menos se fecha numa intenção programática que ele nos interpela melhor e mais profundamente. Há uma ambiguidade em tudo o que vemos que reflecte de forma exemplar a própria natureza humana. Eduardo Malta, por exemplo, não foi apenas o artista do “regesso à ordem”, cultor de uma figuração irrepreensível segundo os cânones classicistas. Para além do seu trabalho no MNAC, importante e hoje reconhecido, deixa perpassar na sua pintura, talvez de forma involuntária, o estigma da decadência moderna e da ruína moral que outros, do teatro à literatura, também sentiram na época. Ou seja, a construção da identidade própria do colonizador, do proprietário em África, do explorador em todos os sentidos da palavra faz-se, aqui não apenas através da montagem, que contrapõe o europeu tal como ele se vê e o africano tal como ele o vê, mas também pela subtileza da obra plástica modernista que deixa transparecer muito mais do que aquilo que pretende.

Há meses, Vasco Araújo tinha mostrado no Museu do Chiado a visão que os soldados da guerra colonial tinham construído da mulher africana. Esta exposição leva este propósito mais longe, e de um modo mais eficaz.

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