O Islamismo-jihadista como ideologia política totalitária
Estamos perante uma ideologia, que é política e não se confunde com o Islão entendido como religião.
As hipóteses que coloquei no meu livro Islamismo e Multiculturalismo. As Ideologias Após o Fim da História (Almedina, 2006), parecem hoje estar a confirmar-se. Permito-me recordá-las aqui. Uma hipótese consistia em supor que a “reconfiguração ideológica não está apenas a ocorrer no plano interno das sociedades europeias e ocidentais”. Uma outra admitia que o Islamismo, “enquanto fenómeno ideológico, continua a ter um significativo potencial de expansão a nível internacional – não só dentro dos países islâmicos como fora destes”. (pp. 10-11). Assim, proponho-me mostrar que, apesar da fraseologia religiosa, estamos perante uma ideologia, que é política e não se confunde com o Islão entendido como religião. Esta ideologia tem é origem num ambiente cultural islâmico. A sua compreensão é determinante para percebermos casos como o do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (“Islamic State in Iraq and the Levant” na transliteração de árabe para inglês). Vou ainda procurar traçar as características do Islamismo, destrinçando-o do Islão como religião e evidenciando o seu carácter totalitário. A evidenciação desta última característica será feita por referência ao trabalho clássico de Hannah Arendt As Origens do Totalitarismo (trad. port. 5ª ed., 2014, D. Quixote), originalmente publicado em 1951. Na altura, o contexto era o dos totalitarismos de origem europeia/ocidental, nazi e estalinista, bem mais familiares.
2. Quais as características que permitem, então, falar do Islamismo como ideologia política? (Abordarei, mais à frente, a especificidade do Islamismo-jihadista). Vou recorrer à distinção que tracei no já referido livro Islamismo e Multiculturalismo. As Ideologias Após o Fim da História (pp. 46-47). Uma primeira característica é a recusa – feita por convicção e/ou estratégia –, “de separação entre o Islão como religião, do Islão como política”. Uma segunda característica é que os atores não são partidos ou grupos políticos, tal como os conhecemos no Ocidente. Para um ocidental, tudo seria mais fácil de compreender, e de rotular, se a ideologia Islamista se corporizasse em “camisas negras” fascistas, “camisas castanhas” nazis, ou outros equivalentes e usasse uma linguagem secular. Não é o caso. Frequentemente, são grupos que afirmam ter apenas missões e objectivos religiosos. Todavia, na prática, prosseguem objectivos eminentemente políticos. Em contexto europeu e ocidental, reclamam “ser tratados ao abrigo da liberdade religiosa e do respeito devido à religião”. A terceira característica está em estreita conexão com a segunda e resulta da sua forma de fazer política, “em rota de colisão com ideia secular de ‘política’ do mundo ocidental”. No seu livro Islam and Islamism, Islão e Islamismo, (Yale University, 2012), Bassam Tibi, académico muçulmano de origem síria, chama a este fenómeno “the religionazed politics of Islamism”, ou seja, uma “sacralização da política”. A quarta caraterística é que “o seu horizonte ideal, em termos de Estado, é o Estado islâmico regido pela sharia, o que, na linguagem política ocidental, se qualifica como um Estado teocrático. Por extensão de ideias, o seu sistema de governo será uma ‘teocracia’. Numa linguagem secular, estamos perante uma concepção próxima das ideologias totalitárias. De tudo isto pode inferir-se uma quinta característica, que é o uso/apropriação, de “forma explícita e deliberada, dos textos religiosos do Islão”, usando-os como ‘manifesto político’ e ‘constituição’.
3. Impõe-se clarificar melhor o carácter totalitário desta ideologia política não ocidental. O trabalho de Hannah Arendt é útil para o efeito, apesar de existirem diferenças históricas e culturais relevantes. Todavia, há importantes paralelismos a notar. Quanto à subversão das regras democráticas, Hannah Arendt escreveu que “os movimentos totalitários usam e abusam das liberdades democráticas com o objectivo de as suprimir” (p. 414). Vimos como os islamistas aproveitaram a Primavera Árabe de 2011 – e a liberdade das eleições –, para tentar subvertê-la a seu favor. Quanto ao fanatismo ideológico, soa também a familiar: “Os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parece ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou medo da morte” (p. 409). Não é difícil extrapolar tais características para o Islamismo-jihadista e o seu recrutamento e uso de jovens fanatizados ideologicamente, para a jihad na Síria, Iraque, etc. Tal está a ser feito também nos países ocidentais. Sinais dos tempos, há uma ou duas gerações atrás, provavelmente a atração seria por grupos de extrema-esquerda, como o Baader-Meinhof na Alemanha e as Brigadas Vermelhas em Itália, ou outros equivalentes, da extrema-direita do espectro político. Outra similitude com o Islamismo, especialmente nas suas versões mais extremas, é a “exigência de lealdade total, irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual” (p. 428). Esta última frase traz à mente os jovens desenraizados na Europa, frequentemente de segunda e terceira geração de emigrantes, muçulmanos ou convertidos, recrutados para uma “causa”. É-lhes incutida a ideia de participarem numa “missão” global que promete dar “sentido” à sua vida. Tal como no contexto em que Hannah Arendt escreveu, a propaganda – hoje feita em grande parte pela Internet e redes socais –, é fundamental na radicalização ideológica. “Por existirem num mundo que não é totalitário, os movimentos totalitários são forçados a recorrer ao que comummente chamamos propaganda.” (p. 453). No caso atual dos islamistas-jihadistas da Al-Qaeda, EIIL e outros, o terror parece ser uma peça importante da sua difusão propagandística.
4. Falta agora analisar o que distingue o Islamismo do Islamismo-jihadista (ou só jihadismo). Apesar de existirem diferenças de maior ou menor relevo, não parece haver divergências ideológicas de fundo, pelo menos quanto à ideia última de instalar o “Estado-sharia”. Quanto a esse objetivo, a principal diferença está nos meios utilizados. É mais uma divergência de estratégia do que de ideologia. Bassam Tibi fala, no seu já citado livro, em “islamistas-institucionalistas” (estes usam e abusam das liberdades democráticas para atingir os seus objetivos, tencionando alterar as regras quando atingirem o poder); e “islamistas-jihadistas” (recorrem directamente à violência para objetivos em grande parte similares). Enquanto grupos islamistas como a Irmandade Muçulmana e outros, tendem a não recorrer a meios violentos e não usam o terror, os grupos mais radicais – é o caso da Al-Qaeda ou do EIIL –, usam a violência e o terror para atingir os seus fins. Isso é feito a coberto de uma pretensa “obrigação de jihad”, um conceito complexo com vários significados. O conceito teorizado pelos teólogos-juristas do Islão clássico, de uma guerra com regras que pode ser desencadeada em certas circunstâncias, foi transformado numa forma de violência quase indiscriminada, contra não muçulmanos e muçulmanos desviantes do “verdadeiro” Islão. Daí o neologismo “jihadista” hoje vulgarizado. É fácil ver que o EIIL cabe nesta categoria. Nos últimos meses, surgiu como protagonista maior da guerra sectária na Síria, fazendo alastrar o conflito ao Iraque. Impôs-se entre a miríade de grupos que tentam derrubar o governo de Bashar al-Assad. A sua acção, caraterizada pela violência e terror contra as minorias não muçulmanas, cristãos e yazidis, e contra os “heréticos” muçulmanos xiitas, é extrema. Ultrapassa, até, o que já conhecíamos da Al-Qaeda. O bárbaro assassinato dos jornalistas James Foley e Steven Sotloff e de David Haines de uma ONG humanitária dissipou quaisquer dúvidas que pudessem existir quanto às suas estratégias para impor o “Estado-sharia”.