Aquilino, o regresso há 100 anos
Há 100 anos, Aquilino regressava do primeiro exílio político.
Todavia, de 1908 a 1914, Aquilino partilhou a festa da vida e as torrentes da cultura, conheceu as obras dos escritores, poetas e artistas plásticos já consagrados e alguns representantes das vanguardas. Privilegiou, acima de tudo, os primores do convívio e da amizade. Matriculou-se na Sorbonne para cursar estudos clássicos. Ouviu as preleções de Jerôme Carcopinau, de Bergson e outros mestres famosos.
Assistiu ao princípio da aviação e à generalização dos automóveis, embora os fiacres continuassem a circular nas ruas. Paris era um paraíso, que recordou nas Abóboras no Telhado e em Por Obra e Graça, ao traçar os perfis de Anatole, do pintor Manuel Jardim, do escultor Anjos Teixeira e outros intelectuais e artistas portugueses que Diogo de Macedo, também, evocará em 14, Cité Falguière. Ainda perdurava a belle époque, embora já se pressentisse a aproximação da Primeira Grande Guerra que virá flagelar a Europa.
Aquilino andou de livraria em livraria e de atelier em atelier, em Montmartre e Montparnasse. Frequentou um clube de políticos e letrados na Rue du Faubourg de Saint Honoré, o Café Voltaire, no Quartier Latin, no qual também se juntavam, assiduamente, os círculos republicanos. O café La Bohème, Deux Magos e La Cloiserie des Lilas, constituíam outros pontos de encontro obrigatório. Algumas vezes esteve no cais do Sena, próximo de Anatole France, quando ambos, em peregrinação, farejavam os alfarrabistas
A França, pátria de grandes figuras, despertou Aquilino para o sinal dos tempos, para a transformação das estruturas políticas e sociais. Anatole France foi um dos seus mestres raiz e suporte da sua formação cultural, libertária e racionalista, que o ajudou a transpor o formalismo do magistério dos jesuítas, no Colégio da Lapa, e o sarro teológico incutido no Seminário. Jamais esqueceu a exortação de Anatole dirigida aos jovens no Monte Latino: “não tenham medo de passar por utopistas, de arquitetar repúblicas imaginárias”. (…) “Não se preocupem em ser prudentes. A prudência é a mais vil de todas as virtudes.”
Conheceu, entretanto, nas aulas na Sorbonne, Grete Thiedeman que viria a ser a sua primeira mulher. A seu lado iniciou e concluiu, na atmosfera calma e erudita da Biblioteca de Sainte Genevieve, a redação dos contos que vão constituir o seu primeiro livro Jardim das Tormentas onde concilia o apelo forte da Beira Alta, com a sensualidade escaldante da Surflame, “uma dessas loiras do faubourg, frágeis, egípcias, sem ancas, quase sem peitos”, que fazia acreditar nos momentos bons do mundo.
Mais dois exílios, depois do golpe militar e ditadura instaurada em 28 de Maio de 1926, permitiram-lhe aprofundar, em França, uma cultura que decorre entre o hedonismo e o epicurismo, que se cruza com a emanação profunda da Beira agreste e cercada de isolamento.
Há 100 anos Aquilino Ribeiro, pouco depois de regressar, foi admitido, no ano letivo de 1914, como professor contratado do Liceu Camões, onde permanecerá até 1918. Residiu no Campo Grande, frequentou o Chiado, gozava férias na Idanha, próximo de Belas. Entre os que passaram pelas suas aulas no Liceu Camões destacam-se Marcello Caetano, Francisco Leite Pinto, duas figuras de proa do regime de Salazar. Mas, também, outras figuras que se vão evidenciar na oposição democrática como Henrique de Barros, a seguir ao 25 de Abril, primeiro presidente da Assembleia Constituinte
A experiencia pedagógica e o ambiente de Lisboa da época registou Aquilino na novela Domingo de Lázaro, incluída na obra Estrada de Santiago, dedicada a Gualdino Gomes e onde saiu, pela primeira vez em livro, o Malhadinhas. Irá depois, a convite de Jaime Cortesão, para o quadro da Biblioteca Nacional. Constitui um outro período do seu percurso: a participação no grupo fundador da Seara Nova e a colaboração no Guia de Portugal, coordenado por Raul Proença.
Mas na sequência do Jardim das Tormentas, Aquilino vai escrever e publicar, durante meio século, sessenta obras que marcaram a língua e a literatura portuguesas: dezassete romances; dez volumes de novelas e contos; livros de crónicas, ensaios, biografias, traduções, contos para crianças e jovens.
Muito brevemente será lançado pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), e edições Colibri, com prefácio de José Jorge Letria, o livro Aquilino visto por Urbano e para o qual dei um modesto contributo numa introdução e organização dos textos. Trata-se da edição de um conjunto de sete ensaios de Urbano Tavares Rodrigues em redor de um Aquilino numeroso e vário, criador de uma língua própria, voltado para grandes questões da condição humana, para a fugacidade do tempo, o peso da memória e, simultaneamente, para a defesa da República.
Hoje, 13 de Setembro, dia do aniversário natalício, Aquilino será evocado em Viseu, com várias cerimónias públicas e o lançamento de um volume dos cadernos aquilinianos, com inéditos e outros documentos políticos e literários. Novos contributos para lembrar o escritor que, à margem de escolas e cartilhas, defendeu os valores da liberdade e da cidadania, enquanto revelou o universo da Beira Alta, o comportamento das populações, os usos e costumes, a diversidade da fauna e da flora, os montes, os vales, os rios e outros elementos telúricos e humanos que definem a vida própria de uma região.
Jornalista e investigador