Tanta saudade da querida Ana Hatherly.
Dizia que havia de ser uma poetisa barroca e ria-se. O Alberto Pimenta preparava a sua importante performance, a Ana tinha uma criança muito viva no lugar do coração e punha-se traquinas. Eu temia que nos mandassem para a rua. O Teatro do Campo Alegre estava muito solene e alguns funcionários desconfiavam mesmo da nossa educação. Ana, tenho vergonha. Eu dizia. Ser uma poetisa barroca dava direito a muitos maneirismos e romances. Namorar era como encadear versos. Quantos mais versos mais namorados, infinitos beijos, livros esquecidos. Os melhores livros são os que esperam. Andar pela vida sabendo que mais tarde está sempre a tempo é a utopia das artes. Namorar, depois pensar em versos. Fazer versos a partir do prazer, só para contrariar a funesta sina dos poetas.
O Alberto Pimenta seguia com o ensaio, a Ana não parava de rir, eu achava melhor que fôssemos esperar ao sol, a contar piadas em voz alta. Ela queria ficar sentada e a sala estava bem, era muito confortável. Depois, lembrávamos de nos rirmos na Universidade de Aveiro, com os académicos à procura de verdades e nós a problematizar a seriedade. Era sempre culpa dela. Juro. Eu, ainda moço, nunca teria lata para uma rebeldia daquelas. Ela instigava o meu lado livre. Queria que eu fosse surrealista. Sem pés e sem cabeça.
Põe-te sem pés e sem cabeça. Dizia. Não penses. Sê feliz. Um verso, uma felicidade. Um poema, uma vida justificada. Eu avisava que os professores nos iam furar os olhos. E avisava que o Alberto Pimenta nos ia furar os olhos. Ela respondia que era importante multiplicarmos os rostos para que não soubessem quais os verdadeiros. Vão furar cadeiras, paredes e as próprias mãos. Mas nunca haverão de nos apanhar porque seremos muitos, seremos múltiplos, toda a gente. Eu comentava que era mais fácil não ter pés nem cabeça. Ela achava que as poetisas barrocas precisavam sempre de muitas cabeças porque estavam impedidas de se simplificar. Era verdade. A simplicidade estava como um crime para o barroco.
Não queria ser toda a gente. Algumas pessoas são trombudas e a maioria não tem felicidade. A Ana Hatherly achava que nos desdobraríamos inteligentemente. Escolheríamos ser apenas os melhores. Ao menos, os mais apaziguados. Valia a pena investir tudo na paz. Concordei absolutamente. Queria sossego. Estar sossegado é regozijar, não é ficar parado na contemplação, a dormir ou passar o tempo. Sossegar é intensificar a alegria. Uma cura para todos os males, para tudo quanto falhou, para o sermos feios, rejeitados, pobres, aleijados, adoentados, tímidos, assustados, adiados de todas as maneiras.
Havíamos de escrever um livro de cartas pensantes, a dizermos um ao outro aquilo que fosse necessário para um compromisso com a oportunidade do riso. Estávamos muito interessados em cartas que só pensassem na possibilidade de reclamar a felicidade, como modus operandi para aflitos contemporâneos. Eu andava sempre aflito. Tenho vergonha, confessava eu. Sou meio quieto porque me dá vergonha de muita coisa. Ela ia curar-me a vergonha. Era fundamental para qualquer sucesso na vida.
Nunca chegámos a escrever cartas sobre a felicidade. Trocámos uns postais e uns livros. Conversámos sempre sobre poemas. Inevitavelmente, entregávamos à poesia a esperança toda. A poesia precisava mesmo de nos salvar.
Nós, afastados um do outro, deixávamos de ser quem éramos.
Fiquei para sempre a contar com o tempo, ainda que saiba bem que o tempo parte de urgência. Fica uma saudade grande da Ana Hatherly. O riso com que dotava os encontros de escritores faz uma falta terrível. Algures, para uma casa discreta de Lisboa, ela estará, talvez ainda rindo, lembrando como era lindo gostar do Alberto Pimenta, inclusive quando ele nos furaria os olhos. Era uma maravilha correr tanto perigo com ela. Hoje, sem pés nem cabeça, é que sei como tudo quanto me dizia faz sentido.