Primeira “arte abstracta” feita por neandertais descoberta em Gibraltar

Parece um jogo do galo ainda por jogar. Mas ao que tudo indica, foi gravado na rocha por um neandertal, há pelo menos 39.000 anos, numa gruta em Gibraltar, na extremidade sul da Península Ibérica.

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A gravura neandertal da gruta de Gorham Cortesia de Stewart Finlayson

Uma equipa internacional de cientistas revela ter encontrado, pela primeira vez, uma gravura rupestre da autoria de um humano que não pertencia à nossa espécie – mais precisamente, de um neandertal. Para os autores, que publicaram os seus resultados esta segunda-feira na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), trata-se da primeira prova concreta de que os neandertais possuíam capacidades de raciocínio e de expressão abstractos que até agora eram considerados o exclusivo dos humanos modernos (nós).

Clive Finlayson, do Museu de Gibraltar, juntamente com colegas de Gibraltar, Espanha, França, Reino Unido e Noruega, descobriram uma gravura que, ao que tudo indica, foi feita de forma intencional, mas não com fins utilitários, na gruta de Gorham, na costa mediterrânica (oriental) de Gibraltar, pequeno promontório rochoso situado na extremidade sul da Península Ibérica.

Desde os anos 1950 que se sabe que esta gruta foi habitada pelos nossos “primos” humanos mais próximos, os neandertais, uma espécie de homem arcaico euroasiático que se extinguiu na Europa há uns 30.000 anos.

Este não é o primeiro indício a sugerir que as capacidades cognitivas dos neandertais têm sido subestimadas. Mas deita por terra um dos argumentos mais evocados para afirmar que os neandertais eram menos “sofisticados” do que os Homo sapiens: o facto de nunca ter sido encontrado qualquer exemplo claro de arte rupestre nos sítios arqueológicos outrora habitados pelos neandertais.

Artista metódico

Também não é o primeiro indício a sugerir que os neandertais podiam ser artistas das cavernas. Mas é a primeira vez, isso sim, salientam os autores, que é possível excluir as explicações alternativas para uma peça de arte rupestre. “A gravura da gruta de Gorham representa a primeira instância directamente demonstrável em que um padrão abstracto gravado, realizado com muito cuidado e sem fins utilitários [por neandertais] e cuja produção requereu acções prolongadas e focadas, é observado na rocha de uma gruta”, escrevem no seu artigo na PNAS.

Até aqui, a arte das cavernas tem sido atribuída exclusivamente à nossa espécie, a dos humanos modernos, que chegou à Europa, vinda de África, há cerca de 40.000 anos.

Mas no caso da gravura de Gorham, uma eventual autoria da nossa espécie parece muito improvável. A gravura encontrava-se coberta por sedimentos onde já tinham sido desenterrados artefactos neandertais (em particular, ferramentas de pedra). E, mais importante ainda, explicam os autores, estes sedimentos permaneceram intocados, sem se misturarem com camadas mais recentes, durante 39.000 anos – isto é, desde antes da chegada dos humanos modernos àquele recanto da Península Ibérica.

A gravura propriamente dita, com uma área de uns 300 centímetros quadrados (15x20), encontra-se na parte mais funda da gruta, no centro de uma plataforma rochosa natural de um metro quadrado, a 40 centímetros do chão. É composta por várias linhas profundas entrecruzadas, à maneira de um jogo do galo, bem como de alguns sulcos transversais mais finos e curtos.

Os cientistas fizeram dois tipos de análises. Por um lado, estudaram a composição geoquímica dos mineiras que cobrem a gravura e concluíram que a representação abstracta tinha sido criada antes da deposição desses sedimentos. Por outro, fizeram microfotografias das marcas de ferramenta presentes na gravura e compararam-nas com marcas que reconstuiram experimentalmente com várias ferramentas utilizadas pelos neandertais aplicadas ao mesmo tipo de rocha.

E constataram, por exemplo, que as marcas não poderiam nunca ter sido produzidas acidentalmente aquando de actividades da vida quotidiana dos neandertais, tais como cortar a pele de porcos com uma ferramenta de pedra. “As incisões foram produzidas passando, de forma cuidadosa e repetida, uma ferramenta pontiaguda ou uma aresta cortante, sempre na mesma direcção”, escrevem ainda.  

Os autores estimaram ainda o número de vezes que o artista pré-histórico terá tido de bater na rocha para gravar a totalidade do seu padrão abstracto: no mínimo, 188 a 317, com uma única ferramenta, numa única sessão, mediante “um esforço e um controlo motor consideráveis”.

“A nossa conclusão é que esta gravura representa um desenho deliberado, concebido para ser visto pelo seu autor Neandertal e, considerando o seu tamanho e localização, também por outros na gruta. Daí depreende-se que a capacidade de abstracção não é um exclusivo dos humanos modernos”, termina o texto.

O que poderá representar este padrão?  “É difícil penetrar na cabeça do gravador para perceber o que significa”, disse Finlayson ao PÚBLICO. Mas o seu aspecto geométrico é surpreendente.”

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