Uma geração na esquina entre o talento e o dinheiro

Ao décimo romance, Meg Wolitzer interroga-se sobre o lugar do talento numa geração a quem foi dito que ele era tudo. Os Interessantes é uma sátira acerca da necessidade de reinvenção – o romance de uma geração, ou mesmo de muitas.

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Meg Wolitzer tem sido colocada na prateleira das escritoras para mulheres, “seja lá o que isso for”; vê-se, isso sim, como uma escritora feminista NINA SUBIN
Agora, Meg Wolitzer (Brooklyn, Nova Iorque, 1959) explica a génese de Os Interessantes, o romance que a colocou ao lado de nomes como Jonathan Franzen ou Jeffrey Eugenides (seus contemporâneos) enquanto agente de revelação de uma certa maneira americana de ser. “Não é um instantâneo da vida. São muitos instantâneos que permitem ver as variações numa sequência que nunca é uma linha recta, e será sempre marcada pelo sofrimento da perda”, refere a escritora no seu regresso a Nova Iorque após uma pausa de Verão.

É domingo e a cidade tem menos gente na rua. Meg Wolitzer fala em tempo para respirar. Passou pouco mais de um ano sobre a publicação do romance que ainda aparece nos destaques de livrarias como a Strand, a mais emblemática de Manhattan, ou nas montras da Barnes & Noble, a maior cadeia livreira. “Acho que é o meu épico”, continua a escritora, fazendo a síntese de quase 30 anos a escrever, marcados por sucessos relativos e livros bem recebidos pela crítica como This Is Your Life, adaptado ao cinema por Nora Ephron em 1992 com o título This Is My Life, ou The Ten-Year Nap (2008) – romances com a marca Wolitzer, ou seja, em que os protagonistas são quase sempre mulheres com idade suficiente para perceber que tudo teria sido diferente nas suas vidas sem os movimentos de libertação femininos que estiveram na origem da revolução sexual que as gerou. Meg Wolitzer nunca deixa que isto se esqueça. Nem em Os Interessantes, o seu livro menos comprometido com a perspectiva feminista.

Podia ter sido apenas um romance de formação. Seis adolescentes conhecem-se num campo de férias de Verão em Julho de 1974, “ainda faltava um mês para que Nixon fosse arrancado do relvado da Casa Branca como um móvel de jardim apodrecido”. Três rapazes e duas raparigas de Manhattan, aos quais se junta Julie Jacobson, 15 anos, vinda de uma cidade dos subúrbios de Nova Iorque, órfã de pai, que morreu de cancro do pâncreas poucos meses antes, e filha de uma mulher cujo objectivo na vida passou a ser o de a educar sem revelar ambições de carreira ou de amor. Vivem numa casa igual a outras da classe média-baixa americana, num estilo de vida que Julie aprendeu a rejeitar enquanto ideia de futuro. Naquele Verão a mãe decide enviá-la para o Spirit in the Woods porque já não podia viver “assim”.

“Em Underhill, ninguém ia para campos de férias daquele género; não era só uma questão de não poderem pagá-lo, nem sequer lhes teria ocorrido ir. Todos ficavam na terra e iam ao despojado centro de ocupação de tempos livres, passavam os dias longos com os corpos oleados na piscina municipal, empregavam-se na geladaria Carvel ou preguiçavam nas casas húmidas”, lê-se logo no início do livro, coerente com o seu objectivo: satirizar a actualidade americana servindo-se de personagens-padrão numa estrutura narrativa convencional. O modo como Wolitzer se sai desta “normalidade” é o seu grande mérito.

Julie quebra os padrões da sua vida porque se não fizesse nada enlouqueceria na ressaca dos dias que antecedem a morte do pai. Junta-se ao talentoso Ethan Figman, um génio da animação, filho de um casal separado, que divide um pequeno apartamento com o pai na Baixa de Manhattan. Feio, atarracado, ele é o verdadeiro talentoso, centro de um grupo ecléctico de que fazem parte a aspirante a bailarina Cathy Kiplinger, que vê o seu corpo crescer em desobediência com a sua capacidade de dançar; Jonah Bay, gay, dotado e belo filho de uma cantora folk de sucesso; e os irmãos Wolf, filhos de um casal privilegiado do Upper West Side: Ash, a rapariga bonita e talentosa que pode fazer o que quiser no mundo do teatro, e o problemático e dispersamente genial Goodman, por quem Julie sente atracção imediata. “Naquele momento, reuniam-se porque o mundo era insuportável.”  

Watergate rebentava, lia-se À Espera de Godot, de Beckett, O Tambor, de Günter Grass, O Deus das Moscas, de William Golding, e Julie aprende o que é a ironia numa inscrição de identidade a que não escapa o nome. Julie será Jules ainda nesse Verão, o traço audível da aceitação por um grupo de pessoas que olha como superiores. Porque a recebem?, é a questão a que vai tentando responder. “Como Julie, sempre se sentira completamente mal; era desengonçada e a sua pele ficava rosada e manchada à mais pequena provocação; caso se envergonhasse, caso comesse sopa quente, caso se deixasse ao sol durante meio minuto. O seu cabelo cor de veado fora recentemente alvo de permanente no salão de beleza La Beauté, em Underhill, dando-lhe à cabeça uma dimensão de caniche que a mortificava.” Um dos truques do sucesso de Julie, tornada Jules, no círculo de especiais que a aceita na sua normalidade é ser sarcástica consigo própria. Com eles, vai interiorizando a ideia de que tem um talento: ser actriz de comédia. Convence-se, e convencem-na, naquelas reuniões em que se nomeiam, com ironia, Os Interessantes. “’…porque somos de longe as pessoas mais interessantes que alguma vez viveram’, decretou Ethan, ‘porque somos mesmo fascinantes, com os cérebros a abarrotar de pensamentos intelectuais, passemos a ser conhecidos como Os Interessantes. E que toda a gente que nos conheça caia redondo à nossa frente, só por sermos interessantes como o caraças’.”

 

Um olhar prolongado

Podia ter sido apenas um romance de formação, dissemos acima, e podia ter ficado um romance “sobre a nostalgia da adolescência”, refere Meg Wolitzer – não fosse a pergunta de Jules Jacobson una anos depois, na meia-idade, mãe de uma filha que despreza o talento, casada com Dennis, o depressivo radiologista sem nada de especial por quem se apaixonara após a universidade. O que foi acontecendo com as expectativas de cada um dos elementos do seu talentoso grupo de amigos? “É um tema muito perturbante”, refere Meg Wolitzer numa voz pausada. “O desejo de fazer arte é diferente do desejo de ser talentoso.” E há os equívocos e as qualidades que o grupo perde naturalmente ou que o tempo se encarrega de aniquilar. Continua Wolitzer: “Quando se é novo prevêem-nos um futuro em função do nosso talento, ou da falta dele, e nós projectamo-nos nisso. É a perspectiva de uma criança sobre o que poderá acontecer. Mas o percurso revela-se sinuoso. Pode haver talento que nunca é concretizado, pode haver talento mal dirigido ou desperdiçado. Tudo depende de uma série de circunstâncias a que não são nada alheios o dinheiro ou a classe. Alguém nos dá o rumo ou dependemos de um emprego a tempo inteiro? O talento e o dinheiro interceptam-se algures.”

Wolitzer faz uma pausa. Explica o processo pelo qual se deixou guiar, o de um livro na sua busca de sentido que haveria de revelar-se também a busca de sentido de uma geração. “Fui-me apercebendo de que era um romance sobre a vida das pessoas ao longo do tempo. Também estive num campo de férias parecido, também tive expectativas. Muito do que escrevi é inventado. Mas também perdi pessoas, amigos meus morreram. Estava interessada num olhar prolongado.”

É um livro de crescimento pessoal. A geração ali retratada é a mesma de Wolitzer, a que cresceu nos anos Reagan, com o dinheiro no centro de uma equação a que estavam subjugadas todas as variáveis. “Os artistas eram atraídos para Nova Iorque, que depois os expulsava caso não tivessem meios para sustentar uma vida nessa cidade em mudança. A criminalidade diminuía na proporção inversa ao aumento de preço do metro quadrado. E se o talento falhar? E se o talento não der? As angústias da gestão de expectativas e da permanente necessidade de nos auto-inventarmos foram ganhando forma à medida que o romance ia crescendo e são ideias definitivamente americanas”, diz Meg Wolitzer, evitando precisar se este é intencionalmente ou não o livro de uma geração. “É inevitável, talvez”, admite. “Não me posso impedir de pertencer a um tempo e ao que ele me fez. Mas há muitos leitores de outras gerações que se sentiram identificados, talvez porque a essência persiste. E a essência é essa necessidade permanente de nos reinventarmos, que foi durante muito tempo o grande tema do romance americano e se tornou quase universal.”

E ela nisso? “O escritor expressa o seu modo de estar no mundo através do que escreve e para isso usa personagens que não são ele, para falar dos vários modos de se estar no mundo. Eu, criadora dessas pessoas, tenho uma perspectiva e uma sensibilidade. Nunca quero soar exclusiva.” Simples? Jules, Ethan, Ash, Cathy, Jonah, Goodman têm a idade de Meg Wolitzer. São filhos da revolução sexual marcada pela depressão arrastada da guerra do Vietname à qual uma outra geração de políticos prometeu dinheiro e sucesso; perderam amigos para uma epidemia nova com que foram aprendendo a conviver como maior ou menor normalidade; pertencem a uma geração que esteve obcecada com o terror da destruição civilizacional do 11 de Setembro, que se reergueu e se pergunta pelo tal sentido, olhando para trás num “e agora?” colectivo. Isso está no livro. “Não vivo a minha vida como se fosse uma biografia. Não estou a pensar que vou escrever o grande romance americano. Mas todos temos uma certa idade e vivemos numa certa América. Há muitos mundos neste país enorme. E há coisas impressas em nós, como o modo como o mundo muda tão rapidamente mas sem ultrapassar uma divisão em classes que permanece e se agrava. A clivagem entre ricos e pobres neste país é algo a que assistimos há muito tempo.”

No topo do mundo

O que permanece no que muda. É isso e o que isso vai fazendo de nós, parece dizer Meg Wolitzer, citando o seu romance, o seu “épico”, como lhe chama meio a brincar. O seu livro mais longo, em que manipula poucas personagens numa alternância de perspectivas. Jules é a protagonista, porque é a que lhe permite colocar mais interrogações, o “eu” principal que ganha dimensão pelo facto de a sua voz não ser exclusiva, como se Meg quisesse sublinhar que o grupo auto-intitulado Os Interessantes é o verdadeiro protagonista.

O cinema e a literatura americanos são férteis nessa estratégia: a do grupo enquanto alicerce. Wolitzer é original pelo modo como consegue transmitir a fragilidade e a  força desse agregado e com isso passar a complexidade das relações sem que nunca se note esforço. Falar de amor e sexo, de amizade e família, de criatividade e fracasso, de ser cosmopolita e de ser suburbano, da solidão, do abandono, da normalidade e da excepção, sem que nunca pareça que está a citar. É obra, tendo em conta a herança, o número de autores que já passaram por estes temas de forma brilhante. Não comenta. Nem isso nem o sucesso. “Não vendi milhões”, diz numa gargalhada. Mas escreveu um romance de quase 600 páginas, na edição portuguesa, que está a ser traduzido em muitas línguas (não sabe quantas) e a fazê-la sair do universo dos nomes conotados com a literatura feminina, “seja lá isso o que for”. Procura explicações externas para esse reconhecimento. Como por exemplo, no romance como modo de resistir, refúgio à rapidez, à desordem causada pelo défice de atenção, doença da actualidade. “Acho que as pessoas esperam por narrativas que as façam sentir-se envolvidas e que isso dure fora do mundo de dispersão da Internet. O romance longo dá a sensação de permanência.”

Falava da nostalgia. Esteve sempre nesta conversa. “O mundo muda e os nossos corpos mudam, os nossos filhos mudam, não há como evitar a emoção de tudo isso. Fui muito afectada pelos documentários do Michael Apted [realizador, produtor e escritor inglês, autor da Up Series, que acompanhava a vida de 14 estudantes ingleses desde os sete anos e por períodos de sete anos]. Parar e olhar o que acontece, o que se perde, aquilo de que abdicámos, como nos transformamos sem que isso seja uma tragédia mas tentando perceber o que sentimos se temos a sorte de continuar. Há saudade, frustração? Ainda há sonho? A perspectiva sobre o ‘eu’ vai-se alterando." 

Os Interessantes

é sobre isso. Arriscado na ambição. Mais arriscado ainda quando a autora se diz feminista e tem escrito e falado sobre o que é isso quando se faz literatura. “É defender que quando se escreve, por exemplo, sobre relações afectivas ou sobre sexo, ou sobre universos interiores, isso não diz respeito apenas às mulheres”, justifica. Tem estado – ou têm-na colocado – na prateleira das escritoras para mulheres sem atenção ao que muitos homens, como os já referidos Franzen ou Eugenides, por exemplo, têm escrito sobre os mesmos temas. “Talvez seja geracional”, comenta. Mas insiste no termo feminista e, para explicar essa identidade, fala da mãe, a escritora Hilma Wolitzer, que desafiou padrões da sua época para ter uma educação universitária num tempo em que se achava que isso não era essencial à formação feminina e que está grata por poder continuar. “Quando me perguntam porque é que sou feminista, talvez seja por isso. Sei que a palavra está cheia de conotações negativas, mas para mim é preciosa.” E o que é isso em literatura? “É contar a verdade sobre o modo como as mulheres vivem e não ficar apenas por uma única verdade, mas muitas, muitas… É dar voz a uma personagem que não seja genérica. Mas isso também é verdade para as personagens masculinas. Torná-las reais, autênticas, e não seguir a via pela qual nos sentimos mais confortáveis." Aqui entra Jules. “Ela por vezes é invejosa e muitos leitores não gostam dela por isso. Como se atreve? Como me atrevo a criar uma personagem que sinta dessa maneira? A minha resposta é que não posso impedir. Tenho de ter a capacidade de aceitar as minhas personagens tal como se apresentam, desde que me fascinem e funcionem. Essa é a limitação: funcionar."

E como se sabe isso? Pergunta-se à professora de escrita criativa se o talento se ensina ou se é impossível ir além de técnicas. Técnicas como escrever 80 páginas sem grandes preocupações com o rumo, testando ideias, personagens, para depois imprimir e ler e perceber se vale a pena começar a editar, ou seja, começar a escrever. “Acho que 80 páginas são o suficiente para perceber se podemos estar orgulhosos e não são assim tantas se se concluir que é preciso rasgar tudo." É esse o método. Mas e o talento? Aquele que se tem ou não se tem, que pode ser perseguido ou frustrado? É a questão inicial. A de Jules na meia-idade, a de Meg quando partiu para o seu épico ainda sem saber que o seria. “Há muitas razões para um workshop de escrita ser fantástico. A hipótese de se poder falar do próprio trabalho com quem faz o mesmo, ou seja, num mesmo idioma. Isso pode ser muito estimulante para continuar. O mundo não está centrado na arte e as pessoas que lêem romances são uma minoria muito pequena. Por vezes esquecemos isso. É uma espécie de subcultura. No mundo há muito de não-ficção.”

É o que parece repetir o romance. Até ao fim. Depois disso, ficam as personagens, acredita. Mas onde, que é feito delas, no mundo real? “Conhece
A Vida em Directo [TheTruman Show, filme de 1998, de Peter Weir]? Para mim elas ficam sempre nesse topo do mundo. Que pode ser mais ou menos trágico, mas não lhes invento outros capítulos. As minhas personagens não vão viver novas aventuras e essa é a aventura. Gosto de as pensar suspensas.”

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