A Justiça agora mora a quatro horas de viagem e é preciso partir de véspera

Os processos dos tribunais encerrados em Vila Real passaram para a capital do distrito, mas arguidos, vítimas e testemunhas não conseguem lá chegar. Para os julgamentos marcados de manhã, ou alugam um quarto num hotel para passar a noite anterior ou só chegam quando a sessão acabou.

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Desmantelamento da sala de audiencias do Tribunal de Boticas Rui Farinha/Nfactos

Mas, se tomar este autocarro, terá pela frente quatro horas de uma viagem cheia de curvas e contracurvas, frequentemente interrompida pelas vacas e cabras que, volta e meia, tomam conta da estrada. Serão quase 180 quilómetros a passo de caracol.

Vai testemunhar num julgamento que o novo mapa judiciário passou de Montalegre para o tribunal de Vila Real, onde a justiça foi metida em contentores para receber temporariamente alguns dos julgamentos dos tribunais do distrito que fecharam, pelo menos para os casos mais graves, decididos por colectivos de três juízes. O Tribunal de Montalegre estava a apenas meia hora de caminho.

Helena vai ao tribunal contar como, há três anos, de madrugada, um grupo de assaltantes levou tudo da Tasquinha da Serração. Foi notificada para comparecer no Tribunal de Vila Real no dia 1 de Outubro, mas ainda não sabe como lá chegará a tempo e horas e o plano que encerrou 20 tribunais, onde concluiu haver transportes suficientes, não lhe dá respostas Há concelhos que ficaram sem tribunais onde a população não consegue chegar agora às sedes da Justiça para onde foram reencaminhados.

Os juízes querem ouvir Helena às 9h30, mas o primeiro autocarro do dia chega só chega a Vila Real às 13h. Ou vai de véspera, e paga uma dormida fora de casa, ou falta. E o táxi está fora de questão. Leva-lhe quase os 100 euros da pensão de viuvez com que, desempregada e sem outros meios, sobrevive no interior do país.

O autocarro, se chegasse a horas úteis, sempre sairia mais em conta: 14,70 euros. A primeira camioneta da Transdev sai da aldeia às 8h05 e chega às 8h50 a Montalegre. Aí Helena teria de apanhar a carreira da Autoviação do Tâmega, que chega a Chaves às 10h. E depois esperar uma hora e um quarto pela camioneta que liga Chaves a Vila Real, aonde chega já à hora de almoço.

“Chamem a policia. A GNR que me venha buscar. Vou avisá-los. Não tenho carro e não tenho dinheiro. Havia lá de ter dinheiro para 90 euros de táxi ou para dormir num hotel em Vila Real? Tenho de pagar para ser testemunha?”, protesta.

Ao lado, Artur Gonçalves, de 23 anos e o dono do café donde os assaltantes levaram 500 euros e a máquina do tabaco, também não sabe como vai chegar ao tribunal. As despesas serão reembolsadas, segundo o Ministério da Justiça, mas é preciso adiantar o dinheiro. “Que fechem tudo. Fechem também Vila Real. Não vamos lá. Querem que durma lá no dia anterior? Devem pensar que vou fazer compras ou passear”, exalta-se no alpendre da taberna. Este julgamento até esteve marcado para Montalegre, mas foi adiado várias vezes e agora o tribunal passou a ser o de Vila Real. “A polícia que me venha buscar. Eu não vou. Não tenho dinheiro”, repete.

Os outros clientes da taberna entram na discussão, que cedo descamba. “Transformem o tribunal numa casa de meninas”. “Assim é que nos faziam justiça”, diz outro.

No caminho da Cruz da Estrada pouco mais existe além desta tasca e do arvoredo denso. De um lado a taberna, recuada em relação à estrada, do outro a paragem de autocarro, suja e tomada pelas ervas. Parece que ninguém a usa desde há muito.

Em Alturas do Barroso, concelho de Boticas, em plena Serra do Barroso e a 1100 metros do nível do mar, vive Manuel Fernandes. Este pastor de 63 anos tem também de ir a tribunal. Está a contas com a justiça, mas nem quer ouvir falar em ir de camioneta para o Tribunal de Chaves, para onde o processo foi transferido. Ex-escrivão do serviço de Justiça no Exército durante a guerra do Ultramar, está acusado de posse de arma ilegal. Há um ano teve uma desavença com um vizinho que, alega, o denunciou à GNR por posse ilegal de armas.

Manuel Fernandes assume que tinha duas armas sem licença. Uma era do pai e nunca esteve registada. Levava-as para o monte, para se sentir mais seguro quando pernoitava com as cabras e as ovelhas, sobre a Barragem do Alto do Rabagão.

Descansa encostado a uma oliveira num pequeno terreno onde tem cinco vacas e uma égua com nome de pássaro. A Rola parece escutá-lo atentamente como os cinco cães que brincam à volta dele. “Vivo disto. De vez em quando, vendo uma vaca ou um vitelo. Às vezes dá 500 euros. Mas é raro. Tenho também um subsídio de cinco mil euros por ano para a criação de gado. Mas isso, dividido por mês, dá pouco. Tirarem-nos agora o tribunal torna tudo pior”, sublinha. E tem transportes públicos por aqui? “Nadinha, veja bem. Aqui não temos nada”, responde. Então e as camionetas que vemos passar por aí? “Ah, isso. Isso temos.”

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Manuel Fernandes, 62 anos, agricultor Rui Farinha/nFactos

Por qualquer motivo, porventura falta de divulgação, aqui poucos conhecem os horários dos autocarros e nem sequer os concebem como transporte público a considerar. E, no entanto, vêem-se camionetas a passar na estrada, a espaços, ainda que praticamente vazias. Os pouco mais de 300 habitantes de Alturas do Barroso sobrevivem sobretudo com o pouco do que retiram da terra. E nota-se que algumas pessoas têm dificuldades em gerir os seus parcos rendimentos.  Há meses em que Manuel Fernandes, diz, não tem sequer  "100 euros para viver", mas está disposto a gastar quase isso numa viagem de ida e volta de táxi para o Tribunal de Chaves, onde tem de se apresentar às 9h30 de 21 de Outubro.

Na central de camionetas de Boticas, os horários patentes na velha vitrine ainda são os aprovados pelo Ministério do Equipamento Social, que deixou de existir com este nome em 2001. O funcionário da bilheteira não está. “Tem bigode como o Quim Barreiros e deve ter ido ai café”, diz um morador solícito. Não parece haver ninguém para atender no velho escritório, decorado com um calendário a quem só um  rádio incansável faz companhia.

A primeira camioneta parte de Alturas do Barroso às 7h30. Chega a Chaves às 8h10, onde Manuel Fernandes teria de esperar quase uma hora e meia pelo julgamento. “Nessa altura o Inverno já será muito rigoroso e já há neve. É muito cedo. É quase de noite e as testemunhas não querem ir de camioneta. Temos de tratar do gado ainda de manhã. E se formos de camioneta não temos tempo para isso”, explica Manuel Fernandes. Herculano Rua, umas das testemunhas, de 73 anos, concorda com o pastor arguido. Também se queixa da falta de transportes públicos. “Aqui não temos nada.” Mas e os autocarros? “Isso temos, mas temos muito trabalho por aqui e não podemos desperdiçar o tempo”.

Está visto: Manuel Fernandes há-de ir com as duas testemunhas ao Tribunal de Chaves de táxi.

A sua advogada, Guida Vaz Nunes, acredita que o cliente acabará por abandonar esta resistência ao autocarro, quando vir como o táxi lhe esvaziará os bolsos.

Com 62 anos, Guida Vaz Nunes trocou, há três décadas, a carreira de jornalista no Brasil, onde nasceu, pela advocacia em Boticas. Acabou por casar por cá. “Estou muito desiludida. Já estava, mas nunca imaginei que achassem normal, num país democrático e europeu, fechar tribunais”, lamenta.

Os processos dos tribunais de Boticas, Murça, Sabrosa e Mesão Frio que perderam valências ou encerram mesmo já viajaram há duas semanas para Chaves e Vila Real, levados por dezenas de militares do Exército em camiões Unimog e jipes. O cenário repetiu-se por todo o país, numa vasta operação castrense, com direito a batedores da PSP e GNR a abrir caminho e a fazer segurança.

No início da semana passada, a própria cidade do Porto foi cruzada por estas colunas que tinham por destino o Palácio da Justiça, na Cordoaria. Cerca de 50 militares carregaram milhares de processos para a cave do edifício onde se concentrarão serviços.

Em Trás-os-Montes, na quinta-feira, penúltimo dia da história do Tribunal de Boticas, cerca de 40 militares do exército fizeram as vezes de uma empresa de mudanças e carregaram, qual formigas, o mobiliário dali para Vila Real, onde não havia espaço suficiente. Parte dos serviços judiciais em Vila Real funcionará temporariamente em contentores, aos quais o Ministério da Justiça prefere chamar “módulos”, cujo aluguer custa 135 mil euros mensais.

Em Agosto de 2015, já deverá estar concluída a recuperação de um edifício da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, que ficará ao serviço do Tribunal de Vila Real. Mas esta obra, de quase 93 mil euros, ainda não começou. 

Ainda na quinta-feira de manhã, em Boticas, cinco funcionárias judiciais e do Ministério Público choravam de manhã enquanto a tropa esventrava o enorme edifício onde elas trabalharam ali durante 30 anos. Sobraram apenas as paredes do prédio inaugurado em 1973 e bandeira de Portugal numa sala de audiências esventrada (ver foto pág. 3). “Vê como ficou a sala?”, pergunta uma funcionária emocionada. Parte do mobiliário da sala foi arrancado à força. Não houve tempo ou paciência para o desaparafusar do chão. Restou uma mesa na secretaria do tribunal na qual as funcionárias preparam à tarde um lanche de despedida. O lanche, com produtos da terra, não chegou ao porém ao fim, soçobrando perante nova incursão militar que levou a mesa, os bancos e o que restava de mobiliário.

O novo mapa judiciário arrisca-se a arrancar algo mais do que os tribunais a estas zonas do interior, avisam alguns advogados. O reduto de massa crítica ainda assegurado por qui pelos juristas de província pode estar também perto do fim, avisa Guida Vaz Nunes, que é delegada da Ordem dos Advogados em Boticas. “Muitos sairão para perto dos tribunais. E aqui em Boticas, por exemplo, já somos só quatro em actividade”, diz a advogada . Um deles é a colega Rita Campos. “Tenho casa em Boticas, mas não sei se vou continuar por cá. Não queria sair, mas assim fica tudo mais difícil”, comenta.

Alguns advogados das terras dos concelhos de Vila Real onde os tribunais fecharam estão a ser convidados por sociedades de advogados. Seguindo a lógica da reorganização dos tribunais, a ideia é que se concentrem nas grandes cidades, perto dos tribunais em funcionamento. Abandonando assim as terras do interior onde tinham um papel que ultrapassava a defesa de casos em tribunal. Guida Vaz Nunes foi durante vários anos deputada municipal pelo PS. O vice-presidente da Câmara de Boticas, Guilherme Pires (PSD), é também advogado. “Dedicamo-nos à terra, além de à Justiça. Mas eu só trabalho mais dois anos com esta reforma judiciária, depois quem se reforma sou eu”, graceja Guida Vaz Nunes.

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