Em dois meses foram registados 245 testamentos vitais

Em vigor desde 1 de Julho, a nova plataforma informática permite aos médicos saberem que cuidados é que os doentes incapacitados ou com doença terminal aceitam receber para prolongar a vida

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Ministério da Saúde calculava que entre 20 a 30 mil pessoas pudessem fazer testamento vital no prazo de um ano Fernando Veludo/NFactos

“Mais de 200 testamentos vitais registados em apenas dois meses que foram marcados pelas férias são um sinal claríssimo da importância e da falta que fazia uma ferramenta desta natureza”, congratulou-se ao PÚBLICO o presidente da Associação Portuguesa de Bioética, Rui Nunes. Já o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, não se mostra impressionado com estes números: “Considerada a população nacional adulta, é um número pequeno e confirma as minhas expectativas de que este instrumento seria utilizado por um número reduzido de cidadãos”.

Com 148 registos, a região da área da influência da Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo foi até agora aquela que somou mais adesões no Registo Nacional do Testamento Vital (Rentev), a plataforma informática que arrancou no dia 1 de Julho. A ARS do Norte, por seu turno, somou 52 registos, segundo os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde. Seguem-se a ARS do Centro com 20 registos e as ARS do Alentejo e do Algarve com 14 e 11 registos, respectivamente.

Na altura em que o Rentev entrou em funcionamento, o Ministério da Saúde admitia que entre 20 a 30 mil pessoas aderissem àquela ferramenta no prazo de um ano. Mas, e porque “não é possível que o testamento vital registe adesões maciças se os portugueses não souberem que ele existe”, Rui Nunes considera que aquele patamar dificilmente será atingido se não houver uma “intensa campanha de sensibilização”: nas escolas, mas sobretudo junto dos médicos de família, para que estes expliquem às pessoas para que serve um testamento vital e como se faz.

Através do testamento vital, um cidadão pode manifestar antecipadamente a sua vontade “consciente, livre e esclarecida” no que concerne aos cuidados de saúde que deseja ou não receber no caso de se encontrar numa situação em que fica incapaz de expressar a sua vontade de forma autónoma. Poderá ser o que acontece num quadro de inconsciência por doença neurológica ou psiquiátrica irreversível, “complicada por intercorrência respiratória, renal ou cardíaca”. O diagnóstico de uma doença incurável ou em fase terminal ou a inexistência de expectativas de recuperação na avaliação clínica são outros dos quadros capazes de fazer accionar a também chamada “directiva antecipada de vontade” do doente.

Entre os cuidados que podem ser recusados incluem-se a reanimação cardiorrespiratória, o suporte artificial de funções vitais por meios invasivos, a alimentação e hidratação artificiais que retardem o processo natural da morte e a administração de sangue ou derivados. Este último item assume particular importância no caso, por exemplo, das testemunhas de Jeová, que por motivos religiosos rejeitam transfusões. Aliás, e como adiantou em Junho ao PÚBLICO o assessor jurídico da Associação das Testemunhas de Jeová, Raul Josefino, era prática comum entre os crentes (calcula-se que haja ao todo cerca de 50 mil praticantes ao todo, em Portugal) transportarem consigo um modelo de testamento vital que recusava as transfusões sanguíneas e que já contemplava a possibilidade de não quererem que a sua vida fosse prolongada perante um quadro clínico sem esperança de melhoria.

Desde 2012 que a lei permitia que um cidadão definisse até onde poderiam chegar os clínicos no caso de incapacidade de indecisão. Mas, para ficar tudo claro, era preciso ir a um notário, pagar à volta de 100 euros e andar sempre com o documento no bolso. Sem isso, o doente deixava o seu fim entregue à obra do acaso ou à decisão dos familiares. No passado dia 1 de Julho, tais decisões puderam passar a ficar predefinidas na referida plataforma informática que congrega todos os testamentos vitais validados pelos serviços de saúde e mediante a qual os médicos, do sector público mas também do privado, podem aceder à vontade dos doentes em situação extrema.

Sem quaisquer custos, o testamento vital pode ser efectuado através do preenchimento de um formulário próprio que está disponível nos sites das ARS, no Portal do Utente e no Portal da Saúde. No formulário aqui disponível, o cidadão pode também deixar nomeado um “procurador de cuidados de saúde”, ou seja, pode indicar uma pessoa de confiança (familiar ou não) que será chamada a decidir em seu nome sempre que a situação clínica o exija ou então que assegurará o cumprimento do testamento vital.

Esta declaração antecipada tem a validade de cinco anos. E ainda bem que assim é, segundo Rui Nunes: “As pessoas podem mudar de opinião e, até por inércia, não se disponibilizarem a mudar o teor ou o conteúdo do testamento vital. Se a lei exige que vão revalidar, é para ter a certeza que não mudaram de opinião. Parece-me prudente”.

Apontando os exemplos dos Estados Unidos, dos países anglo-saxónicos e escandinavos, onde as adesões ao testamento vital chegam a aproximar-se dos 90%, Rui Nunes considera que a adopção desta ferramenta marca um salto civilizacional em Portugal. “Entre os 40 países mais desenvolvidos na lista do índice do desenvolvimento humano, os 15 primeiros têm esta ferramenta muito aprofundada”, enfatiza o também director do serviço de Bioética e Ética Médica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, para voltar a sublinhar a importância dos “animadores” 245 registos efectuados até 22 de Agosto. “Estamos a pedir às pessoas que tomem decisões com este nível de responsabilidade num momento em que o país atravessa uma crise económica e social em que as pessoas o que querem é segurança e protecção, ou seja, estes registos mostram que estas pessoas crêem mesmo na importância do testamento vital”.  

Menos entusiasta, o bastonário da Ordem dos Médicos recorda que “todas as questões que se relacionam com o testamento vital estavam já previstas no código deontológico da Ordem”. Considerando que o preenchimento do formulário “é relativamente complexo”, José Manuel Silva recorda que “no caso das doenças crónicas, o doente é normalmente acompanhado por um médico que normalmente está a par da vontade do doente”. E mesmo no caso de ocorrências inesperadas, como a de um doente que fica em estado vegetativo na sequência de um acidente, “os médicos consultam os familiares antes de decidirem manter as suas funções vitais de uma forma artificial e sem qualquer perspectiva de recuperação”.

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