Testamento vital: um modelo confuso?

É preciso ser um Sherlock Holmes para preencher o formulário?

1. Logo na secção intitulada “Situação clínica em que a DAV produz efeitos” identificamos uma condição de saúde que nos aparece com dois condicionalismos: terei de estar em “inconsciência por doença neurológica ou psiquiátrica irreversível, complicada por intercorrência respiratória, renal ou cardíaca”. Não basta que a inconsciência seja irreversível? Tem também de haver uma “intercorrência”, termo cujo significado a maior parte das pessoas até decerto desconhecerá? Não bastaria falar, como os andaluzes, de “deterioração cerebral grave ou irreversível”?. Se estiver irreversivelmente inconsciente mas sem intercorrências, não me deixam morrer em paz?

Por outro lado, nada é dito da demência de causa degenerativa em fase avançada, como pode ser o Alzheimer. Estas pessoas podem não estar já inconscientes, mas ter sido sua vontade antecipada não querer viver nessa situação, mas que se aproveite uma qualquer “intercorrência” que, se não tratada, conduzirá à morte, como uma pneumonia. Esta vontade será “validada”?

Tão-pouco se fala das opções de uma mulher grávida que entretanto tenha ficado irreversivelmente inconsciente.

2. Na secção “Assim manifesto a minha vontade clara e inequívoca de”, o modelo, dentro das opções, mistura hipóteses na forma afirmativa e na forma negativa. Por outras palavras: numa linha está em causa uma recusa e na outra pode estar logo uma aceitação. Não teria sido melhor seguir uma prática muito comum em inquéritos, em que se coloca a frase na afirmativa e se apresenta três hipóteses de resposta: Sim, Não e Não me pronuncio? Esta prática tornaria o modelo mais intuitivo e conduziria a um registo de leitura e decisão mais claros.

2.1. Detenhamo-nos um pouco nas hipóteses que foram apresentadas. Por ex.: “Não ser submetido a medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural da morte”. Sabemos, pelo estrangeiro, que houve pessoas a serem alimentadas e hidratadas artificialmente durante dezenas de anos, tendo alguns dos casos ido a Tribunal, a pedido dos próprios pais. Porquê? Porque aqui se levanta a questão dos limites da autonomia e de decidir se este tipo de alimentação e hidratação são um tratamento ou um cuidado básico, a dar “até ao fim”. Os profissionais de saúde não se entendem neste âmbito. Meter aqui a frase “que apenas visem retardar o processo natural da morte” só complica. Será que só me vão retirar essas medidas quando contribuírem visivelmente para a minha morte (líquidos que o organismo já não absorve, etc)? Eluana Englaro, depois de um acidente rodoviário, esteve em estado vegetativo persistente durante dezassete anos, contra a sua alegada vontade. O Vaticano disse que o coma era uma forma de vida (bem estranha, convenhamos), Berlusconi afirmou demagogicamente que ela ainda poderia ter um filho, logo devia continuar forçadamente em vida. Se não fosse a luta estóica do pai junto dos tribunais, Eluana talvez ainda estivesse biologicamente viva.

2.2. Para além do referido em 2.1., note-se que não há um único tipo de alimentação e hidratação artificiais. Quanto à alimentação, os andaluzes distinguiram três modalidades. Quanto à hidratação, o nosso formulário fala a princípio apenas numa entidade única – hidratação artificial –, mas depois refere a hidratação oral mínima ou subcutânea. Em que ficamos?

2.3. Quanto a querer receber ou não medidas paliativas e medicamentos que controlem a dor “com efectividade” (haveria lugar ao pedido de um controlo da dor não-efectivo?), pensamos que num país decente nem sequer se devia colocar estas hipóteses. Estas medidas são uma obrigação ética para qualquer profissional de saúde. Os andaluzes nem sequer falam nelas em geral, mas isolam a sedação paliativa, por ser geralmente a medida paliativa mais complexa e excepcional. Deste modo, as outras medidas paliativas são dadas por adquiridas. Mas é de recordar que, por causa da utilização da dita “sedação paliativa terminal”, vários médicos de um hospital de Madrid foram acusados de eutanásia. No final, todos absolvidos. Sentir necessidade de pôr as medidas paliativas no formulário diz muito da prática médica portuguesa quanto ao fim-de-vida.

Quanto à outra medicação, seria mais útil que se acrescentasse que se quer recebê-la, mesmo que conduza à morte. Trata-se da questão do duplo efeito: para tirar a dor, o medicamento pode antecipar a morte.

3. Finalmente: onde se encontra o Guia que ajude a elaborar a DAV, com as explicações mínimas necessárias quanto aos termos usados? E como se nomeia um procurador de saúde? O cidadão tem de ser um Sherlock Holmes para preencher o formulário?

Docente Aposentada da UMinho, autora de Testamento Vital; Prof. Adjunto da ESEnf da UMinho, autor de Educar para a Morte (laura.laura@mail.telepac.pt)

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