Que o mundo se vire para Romance em Nova Iorque
No Festival de Veneza que começa esta quarta-feira há homenagens a Arthur Penn, Robert Altman e a Peter Bogdanovich: um documentário de Bill Teck ressuscita o seu grande filme esquecido e ver-se-á o mais recente She’s Funny That Way.
No tempo da Nova Hollywood ele aproveitou as portas que a contracultura escancarou mas manteve-se sempre mais longe dos jovens rebeldes do que perto da Velha Hollywood. De que foi guardião, sempre com John Ford, Howard Hawks ou Orson Welles na boca e no coração. Foi com Welles, aliás, que foi comparado: o seu A Última Sessão/The Last Picture Show (1971) fora considerado um dos melhores filmes realizados por um jovem realizador desde O Mundo a Seus Pés (1941). Fez parte da beautiful people – ele e a musa Cybill Shepherd –, foi tido como sofisticado e arrogante na forma de amar o cinema do passado, e quando a todos, Coppola, Michael Cimino, William Friedkin e os outros, foi cobrado o preço das ousadias com uma série de insucessos, o canto do cisne de Bogdanovich saiu-lhe especialmente da pele. Chamou-se They All Laughed/Romance em Nova Iorque (1981).
É esse filme o objecto do documentário One Day Since Yesterday: Peter Bogdanovich & The Lost American Film, de Bill Teck, que Veneza vai mostrar (secção Venice Classics), numa edição em que se mostra, fora de competição, o novo esforço do realizador, uma comédia, She’s Funny That Way (fora de competição). Há Bogdanovich no ar? “É a minha opinião, sim, que nos últimos 10 anos se fortaleceu uma onda de apreciação em relação ao seu cinema. O mundo parece virar-se para ele”, diz ao PÚBLICO Bill Teck, homem de Miami que vem da ficção televisiva e que faz deste documentário uma homenagem a um filme que o siderou quando o viu, aos 14 anos.
O sonho descarrila
Começa por ser sobre uma história de amor: Peter Bogdanovich e Dorothy Stratten, uma garota de Vancouver que Peter descobrira, tinha ela 18 anos, na Mansão da Playboy, revista de que Dorothy seria centerfold. O que siginifica que já tinha sido “descoberta” por outros: pelo marido Paul Snider que a convencera a despir-se para Hugh Heffner. Condimentos para uma história de ambição, ciúme e tragédia, daquelas com que o sonho americano descarrila: Dorothy acabaria assassinada por Snider, que se sentiu despossuído, incapaz de aceder ao mundo para o qual enviara a mulher. Tudo isto um mês após a rodagem de They All Laughed, filme para o qual Bogdanovich escrevera um papel para Dorothy. One Day Since Yesterday, título do documentário, é o título de uma das canções do filme, que Peter pediu que fosse escrita para Dorothy. Fora o que ela escrevera num postal que um dia lhe entregara.
Esta tragédia explica algo sobre o facto de They All Laughed se ter tornado o lost American film. Abalou “as mais profundas fundações” de um homem “apaixonado pelo cinema, apaixonado pelas mulheres”. Embora no auge do “seu novo classicismo”, como diz Teck, Bogdanovich tentava sair de uma série de estampanços comerciais e críticos (Daisy Miller, de 1974, At Long Last Love, de 1975), dar a volta às nuvens de impopularidade que persistiam sobre a sua cabeça (Cary Grant dissera-lhe que devia deixar de se mostrar tanto e tão feliz em público, isso desperta inveja). Mas a turbulência emocional que o derrotou, e que segundo Bill Teck o marca, não o ajudaram contra as contrariedades: os estúdios não quiseram pegar numa comédia romântica que surgia manchada de sangue e esburacada pela violência, e Bogdanovich decidiu ser ele a distribuir o filme. Mas como nota Teck, não há histórias felizes na distribuição independente antes do glamour indie que a Miramax erigiu em marca.
“Mesmo John Cassavetes só se saiu bem com Uma Mulher sob Influência”. Apesar das críticas entusiásticas e de carreira comercial interessante em algumas salas, que retiravam o filme de cartaz ainda com números de audiência altos para entrar o novo produto do sistema, They All Laughed desapareceu, levando com ele as provas de afecto – Bill Teck diz, por exemplo, que só recentemente teve a noção de que um pouco “por toda a América” They All Laughed deixou admiradores. Tornou-se um dos filmes, como As Portas do Céu, de Cimino, ou Do Fundo do Coração, de Coppola, que foram nos anos 1980 o último hurrah dos 70s – memória e adeus de uma época que exaltara a “autoria”.
Com os anos, o culto vem-se assumindo: críticos, bloggers e o who’s who do novo establishment: Quentin Tarantino, que o colocou numa lista dos seus top 10; Wes Anderson ou Noah Baumbach, que vêm amparando Bogdanovich tal como outrora ele cuidou da fragilidade das glórias do passado (os críticos Todd MacCarthy e Jonathan Rosembaum, mas também Cybill Shepherd, são outros dos notáveis que aparecem no documentário).
“Fui até ao Kentucky, ao Ohio ou a S. Francisco”, conta Teck, para encontrar ecos dessa paixão pelo filme, que ele descobrira aos 14 anos num cinema de Miami, um ano depois da estreia americana. Para o adolescente que duas ou três vezes por semana tinha a sua dieta na Miami Beach Cinematheque (Fellini, Truffaut ou Renoir), o encontro com They All Laughed foi um “nunca visto.” E durante duas semanas, lá o foi ver todos os dias.
Ah, é um filme mudo
O que é que nunca vira? A bravura filmmaking: toda a longa abertura sem diálogos, mesmo que haja palavras como ruído de fundo, que coloca o espectador na intersecção dos olhares e gestos das personagens, sem saber quem elas são, o que fazem. É preciso chegar aos 40 minutos de They All Laughed e perceber, enfim, que há uma equipa de detectives que se atropela intimamente em Manhattan na sua actividade profissional quando corre atrás de um grupo de mulheres. Se isso parecia “vanguardista” no final dos 1970s, tempo corajoso, o que parecerá agora, tempo de conformismo? Bogdanovich contou que chegou a ser abordado por espectadores, espantados com a suposta novidade do filme, e ele respondia que não era nada disso, era tudo antigo, era cinema mudo. Também num dos primeiros visionamentos do filme, para o qual convidou Frank Sinatra, forma de lhe agradecer as quatro canções que dera para o filme, o “ah, é uma comédia romântica” de Frankie, algures já pelo filme dentro, pôs a sua entourage descansada; e ele próprio sossegou.
Dizer quem é quem no cast formado por Audrey Hepburn, Ben Gazzara, Patti Hansen, John Ritter, Dorothy Stratten ou Colleen Camp não é relevante porque o desejo provoca atropelos e cambalhotas na estabilidade dos papéis. A fabulosa sequência em que John Ritter patina aos trambulhões atrás de Stratten no ringue é a essência de They All Laughed, filme em que há perseguidores e perseguidos mas em que isso é apenas um disfarce – o género caper movie em nada interessou a Bogdanovich – para falar do desejo que saltita por Manhattan. De uma energia que talvez peça para ser aplacada: é gente muito acordada (o lema da agência de detectives: eles “nunca dormem”) secretamente desejando tropeçar no corpo que os faça, enfim, parar. É esse o permanente véu de melancolia deste filme, aliás.
Comédia screwball amorosa da aventura humana, o que faz coabitar aqui Leo McCarey, Preston Sturges ou Jean Renoir, fortalece o espectador com mesma energia (faz sentido ouvir de Bill Teck que os fãs do filme serão “pessoas fundamentalmente interessadas, interessadas pelo cinema, interessadas pela vida”, gente apaixonada e apaixonada pela paixão). Essa “tusa” incessante transporta o espectador às alturas – e faz com que nunca se perca no filme. Somos destinatários dos olhares de cumplicidade das personagens, sentimos tudo o que se passa, mesmo quando não sabemos o que se passa, em They All Laughed. Bogdanovich no cume: é cinema puro, coisa olímpica e simultaneamente frágil.
E que pedaço de bravura foi a rodagem. Sem dinheiro para mobilizar figurantes e fazer parar Nova Iorque, Bogdanovich raptou a espontaneidade dos transeuntes. Criou a partir da realidade um estúdio a céu aberto. A máquina de cinema não podia estar visível – para que ninguém na rua ficasse a olhar para a câmara. E desse modo os actores não podiam, sequer, ter roulottes a servir de camarim. Boutiques ou cabeleireiros em pontos estratégicos de Manhattan fizeram o serviço, gestos e olhares à distância da equipa indicavam a entrada em cena, que invariavelmente era a saída para a rua, para o meio dos nova-iorquinos, em Times Square ou à porta do lendário Algonquin, e prosseguir a perseguição e a conquista e as conversas sobre o amor e o bater de coração. O olhar de Bogdanovich imortaliza uma Nova Iorque que já estava a desaparecer. Esta é uma cidade que se despedia dos 70s e que já caminhava para a lenda.
“É uma questão sinuosa, essa da cidade. Há pessoas que falam no meu documentário sobre isso”, conta Teck, “porque coleccionam todo o tipo de material iconográfico sobre Nova Iorque. Confirmam que há ainda neste filme uma magia, há ainda uma rudeza, que estava já a desaparecer na realidade, como aconteceu com a Disneyficação de Nova Iorque. Quentin Tarantino recorda, no documentário, que os filmes contemporâneos de They All Laughed veiculavam imagens duras da cidade, como Escape from New York, de Carpenter. E de repente aparece esta homenagem, eivada de romantismo. Aquela Nova Iorque é Bogdanovich: romântico, apaixonado pela música, uma pessoa muito doce apesar da tragédia que lhe aconteceu.”
É como um home movie escondido. Bogdanovich “deu” os seus óculos e o seu blazer à personagem de John Ritter; o seu blusão foi parar a Gazarra; “deu-lhes” também os diálogos que entre eles, Peter, John e Ben, amigos, trocavam sobre as suas vidas.
Gazarra e Audrey Hepburn tiveram um affair durante uma rodagem anterior, Bogdanovich escreveu para eles as personagens de duas pessoas que abdicaram do amor em favor das vidas conjugais – a saudade de Ben e Audrey tem algo de estóico.
John Ritter, com os óculos de Bogdanovich, vai atrás de Dorothy Stratten, até à cena em que a personagem de Dorothy é interrogada, dentro de casa, pelo marido; um diálogo mudo para o espectador que, evidentemente, percebe que ele desconfia que ela tem um affair – a bonomia do home movie congela-se de horror, Bogdanovich fez, sem o saber, uma versão benigna do que se passava nesse momento: os ciúmes de Paul Snider, marido de Dorothy, perante a mulher que se escapava em direcção ao realizador, tragédia que explodiria em tiros, assassinato, violação do cadáver, dedos estoirados contra a parede e suicídio. (Quando soube da morte de Stratten, Bogdanovich atirou-se para o chão, como se quisesse escavar para se esconder debaixo da terra, como num bombardeamento.)
“Todos os filmes que Peter fez depois, mesmo aqueles que são considerados encomendas, acabam por ser sempre pessoais, porque estão carregados do seu luto, formas de processar a dor e o sofrimento”, revela Teck. “Mask, por exemplo, é uma homenagem a Dorothy e eu nunca tinha percebido isso.”
Bill Teck esteve na rodagem de She’s Funny That Way, o novo de Bogdanovich. Ainda não viu o filme, mas teve acesso ao argumento, a história de um encenador da Broadway (Owen Wilson) que se apaixona por uma prostituta que se tornou actriz e tenta fazer pela sua carreira. “É um argumento muito divertido, uma screwball comedy que me lembrou What’s up Doc (1972). Ele começou a filmá-lo durante a rodagem do documentário, estive no set dois ou três dias. Foi estranho, apanhei um taxi para o plateau e ele deixou-me perto do Algonquin Hotel”, cenário de deambulações em They All Laughed. “E quem encontro no plateau? Louise Stratten, a irmã de Dorothy, que tinha apenas 13 anos quando They All Laughed foi rodado” – Louise é actriz, produtora, é co-argumentista de She’s Funny That Way, e foi mulher de Bogdanovich, com quem se casou em 1988, tinha ela 20 anos e ele 49. “E ainda a mãe de Dorothy, que ao longo destes anos nunca tinha falado da filha. Ao longo do nosso documentário, finalmente abriu-se. E também quis ver They All Laughed. E também lá estava Colleen Camp”, intérprete de They All Laughed. “Foi estranho: parecia They All Laughed, 30 anos depois.”
Já ninguém está cá, Dorothy, Audrey, Ben e John...