Os crimes de Gaza
No conflito israelo-palestiniano a classificação de um indivíduo como “combatente” nem sempre é tarefa fácil.
Incumbirá a esta comissão de inquérito estabelecer os factos e circunstâncias em que aquelas violações ocorreram, identificar os crimes que foram praticados e os seus responsáveis, bem como fazer recomendações sobre medidas de responsabilização – tendo em vista “evitar e acabar com a impunidade” e assegurar que os seus autores sejam responsabilizados – e sobre caminhos e meios para proteger os civis contra futuros ataques.
Para presidir a esta comissão de inquérito foi nomeado William Schabas, um canadiano que é professor de Direito Internacional na Universidade de Middlesex, em Londres.
Detentor de um impressionante currículo, William Schabas foi membro da “Comissão Verdade e Reconciliação da Serra Leoa” (2002-2004) e é o melhor jurista da actualidade em matéria de genocídio, tendo presidido à International Association of Genocide Scholars entre 2009 e 2011.
A personalidade moderada de William Schabas, aliada à sua elevada qualidade técnica e enorme capacidade de trabalho, fazem dele uma escolha acertada para presidir a esta comissão, que integra também a advogada britânico-libanesa Amal Alamuddin e o senegalês Doudou Diène.
De facto, o apuramento de violações de direito internacional humanitário e de normas internacionais de direitos humanos no âmbito do recente conflito em Gaza é uma matéria extremamente delicada e que exige uma grande ponderação na análise e uma grande capacidade de resistência à pressão da opinião pública.
As notícias recentes deram conta que o exército israelita atacou escolas, hospitais e outros edifícios civis, incluindo edifícios onde as Nações Unidas desenvolviam a sua actividade. Na sequência desses ataques, um elevado número de pessoas morreram, entre as quais se contam várias crianças.
Israel alegou que o Hamas estava a utilizar escudos humanos, e que aquelas baixas foram consequência indesejada daquela actuação. A verdade é que também o Hamas vem lançando rockets sobre Israel, atingindo alvos civis sem qualquer interesse militar.
Os ataques a bens civis (bens que não sejam objectivos militares), bem como a civis que não participem directamente nas hostilidades, assim como o ataque a pessoal, instalações, material e viaturas do Crescente Vermelho ou das Nações Unidas ou a locais de culto, quando não sejam objectivos militares, constituem violações graves das leis e costumes aplicáveis aos conflitos armados, sendo crimes internacionais.
Mas constituem também crimes internacionais a utilização de menores de 15 anos para participar directamente nas hostilidades, ou a utilização de civis ou pessoas protegidas para evitar que determinadas pontos, zonas ou forças militares sejam alvo de operações militares – utilização usualmente conhecida como “escudos humanos”.
No conflito israelo-palestiniano a classificação de um indivíduo como “combatente” – essencial para a aplicação do direito internacional humanitário – nem sempre é tarefa fácil. Esse conflito não decorre entre dois exércitos perfeitamente identificados e identificáveis, mas sim entre o exército israelita e cidadãos palestinianos afectos ao Hamas.
Identificar no terreno se um determinado cidadão palestiniano é “combatente” ou se é meramente civil revela-se, muitas vezes, tarefa complicada, sobretudo para o militar que está no local de confronto e o tem que decidir em tempo real.
A verdade é que o princípio da distinção é a pedra angular do direito internacional humanitário e da sua observância ou não dependerão as consequências jurídicas que deste se possam extrair. Por outro lado, saber até que ponto é legítimo atacar um edifício civil quando o mesmo está a ser utilizado como escudo para abrigo de combatentes ou para o lançamento de actividades militares é questão extremamente controversa. E não menos importante, tendo em conta todos esses factos, será avaliar do uso da força com proporcionalidade.
A comissão de inquérito agora nomeada tem, por isso, uma árdua tarefa pela frente. Importante é que o faça com a ponderação e o sentido de justiça que a situação exige.
Crimes de guerra nunca devem ficar impunes. Mas essa regra vale para ambos os protagonistas do conflito. Se assim não for, perder-se-á toda a legitimidade.
Advogado