O homem que queria ser realizador
Eis o homem a quem se deve o Cinema Novo — e Carlos Paredes n’Os Verdes Anos. Uma conversa, no final da retrospectiva na Cinemateca.
Não obstante a fraca afluência de espectadores nas duas semanas de exibição - no dia seguinte, a sala estava vazia, iniciando uma complicada relação entre o público e o nosso cinema -, Os Verdes Anos de Paulo Rocha arrancava com o Cinema Novo português.
António da Cunha Telles, o produtor do filme, foi recentemente homenageado pela Cinemateca Portuguesa com uma retrospectiva não só das longas-metragens que realizou mas sobretudo dos inúmeros filmes que produziu, co-produziu, distribuiu ou exibiu ao longo dos últimos 50 anos. A sua colaboração com o realizador de Os Verdes Anos - em que investiu o próprio dinheiro - foi próxima. "Nunca houve imposição da minha parte, mas dizia ao Paulo Rocha o que pensava. Muitas vezes ele recusava, outras vezes dizia que sim." Uma das propostas que Rocha recusou foi a inclusão de Carlos Paredes na banda sonora. O realizador não queria associar o seu cinema ao som da guitarra (presença habitual nos filmes que se faziam cá). Só por insistência do produtor - foi ouvir e ficou fascinado - aceitou a ideia que antes rejeitara.
"A produção só é interessante quando tem uma intervenção criativa", diz Cunha Telles. Contudo, o seu grande sonho sempre fora realizar. Até esteve para o fazer antes de Paulo Rocha - este estava a ajudá-lo a escrever o argumento de uma primeira obra que nunca o chegou a ser. Pela força das circunstâncias (era mais fácil angariar fundos para o filme de Rocha), viu-se na pele do produtor do amigo. Depois do sucesso de estima que este alcançou e, mais ainda, depois de produzir quase de seguida Belarmino de Fernando Lopes e Domingo à Tarde de António de Macedo (os outros filmes basilares do Cinema Novo), foi impossível largar esse papel: "Quando produzo Os Verdes Anos, o filme em si corre muito bem e toda a gente diz que tenho de continuar a ser produtor. Um filme leva a outro, a outro, a outro". O sonho da realização ficava adiado.
Godard, Truffaut e os outros
A mania de António da Cunha Telles pelo cinema nasceu com ele na Madeira em 1935. Antes dos dez anos, comprou a sua primeira câmara, de 9,5mm, com a qual filmava a família e acontecimentos da ilha, tendo aprendido a revelar filme para não ter de esperar os três meses que levava a fita a ir e vir do Continente, onde era revelada. Quando vem estudar Medicina para Lisboa, faz esporadicamente reportagens para a então incipiente RTP. É no momento em que lhe oferecem um lugar nos quadros da televisão pública que decide partir para Paris para aprender cinema. Não queria ser o "eterno amador". Durante os cinco anos em que reside na capital francesa, faz três cursos - o do IDHEC (onde conhece Rocha), de Estudo de Filmologia na Sorbonne e de técnicas audiovisuais na Escola Superior Saint-Cloud -, frequenta religiosamente as três sessões diárias da Cinemateca Francesa e conhece, nos meios cineclubísticos, Jean-Luc Godard, François Truffaut e Jean Renoir.
No regresso a Lisboa, em 1961, encontra as portas do cinema português fechadas: nem um estágio consegue. A recusa dos velhos cineastas em integrarem os mais novos, leva-os a cerrarem fileiras. Cria-se uma pequena comunidade à volta do café Vavá na Avenida de Roma. É lá que decorre, por exemplo, a última cena de Os Verdes Anos e foi numa toalha de papel do café que Cunha Telles e Fernando Lopes assinaram o contrato de Belarmino. No entanto, nem as co-produções estrangeiras em que Cunha Telles se viu envolvido - caso da de Angústia que Truffaut, um velho conhecido dos tempos parisienses, veio rodar parcialmente a Portugal - nem os primeiros filmes do Cinema Novo geraram receitas suficientes para cobrir os prejuízos, provocando a falência das Produções Cunha Telles. Posteriormente, dá-se a ruptura entre o produtor e os cineastas que produzira, pois estes consideravam que não havia feito tudo pelo sucesso dos filmes. Por outro lado, a segunda longa-metragem de António de Macedo produzida por Cunha Telles, Sete Balas para Selma, que combinava o mal-amado nacional-cançonetismo com um esdrúxulo enredo policial, foi catalogada como uma traição aos valores do Cinema Novo. Quando os seus pares se juntaram no Centro Português de Cinema da Fundação Gulbenkian, Cunha Telles não foi convidado.
No final dos anos 60, sente-se abandonado. "Perguntei-me a mim mesmo se a minha vida no cinema não tinha acabado. Cheguei a pôr a hipótese de ir trabalhar para o Canadá ou para o Brasil. Parecia que não havia saída possível", confessa. A saída que encontrou foi realizar a sua primeira obra: O Cerco foi feito com pouquíssimos meios, usando película fora da validade e financiado com o que se chamaria hoje product placement - numa cena no Jardim Zoológico, um vendedor da Olá faz por exibir muito bem a sua caixa de gelados. Inesperadamente - no Vavá, vaticinava-se que seria o funeral do cinema português -, e muito por culpa da extrema fotogenia da actriz principal Maria Cabral e da atenção que o filme recebeu em França (foi seleccionado para a Semana da Crítica em Cannes), O Cerco seria o primeiro grande sucesso do Cinema Novo, esgotando todas as sessões no Império durante os primeiros três meses de exibição. "Fez mais receitas do que os anteriores doze filmes que tinha produzido", diz Cunha Telles.
A maneira como Cunha Telles vai parar à distribuição é mais uma vez obra do acaso. Ao querer vender O Cerco para a União Soviética, responderam-lhe que não podiam dar dinheiro ao país que andava a fazer guerra contra a independência dos povos africanos, propondo antes uma troca. Cunha Telles escolheu Ivan, o Terrível de Sergei Eisenstein. Não esperava, contudo, as reticências dos distribuidores portugueses. "Ninguém queria distribui-lo, achavam que era teatral, muito longo, que já ninguém queria ver filmes a preto-e-branco", diz. Distribuiu-o ele mesmo e o êxito foi tal que decidiu continuar. Fez um compromisso consigo mesmo, que o Animatógrafo, o nome da sua distribuidora, apenas lançaria obras de que gostasse muito: trouxe clássicos inéditos em Portugal - como A Regra do Jogo de Renoir - e filmes mais recentes, a exemplo dos do brasileiro Glauber Rocha (de que distribuiu toda a obra no nosso país). A bem sucedida experiência - as sessões do fim-de-semana estavam permanentemente esgotadas - duraria até ao 25 de Abril, altura em “o espectáculo passou a estar na rua”. De seguida, lançar-se-ia na exibição com o Universal, uma sala na zona de Entrecampos, cuja programação se restringia a filmes mais revolucionários e panfletários e acabou mais ou menos na mesma altura que o PREC.
Após a Revolução, e de terminar com a Censura - ao dar-se conta de que ainda se mantinha, Cunha Telles "raptou" (como o próprio diz) Zeca Afonso e ocupou o edifício que servia de sede à Censura, garantindo que esta deixaria de existir para adultos, o que lhe permitiu estrear O Couraçado Potemkin no primeiro 1 de Maio em liberdade -, organizou o documentário colectivo As Armas e o Povo e assinou ele mesmo um filme documental, Continuar a Viver ou Os Índios da Meia-Praia (que deu nome à retrospectiva da Cinemateca e ao catálogo correspondente lançado o mês passado). Ainda arranjou tempo para fazer um perninha na Tóbis, conseguindo fazer de um laboratório que perdia dinheiro a cada trabalho num "muito apreciável" negócio, e no Instituto Português do Cinema, no qual, com a ajuda do Secretário de Estado da Cultura David Mourão-Ferreira, desbloqueou 37 das 40 produções que encontrara paradas, reforçando o papel do produtor (que passou a ser responsabilizável pela conclusão de cada filme subsidiado).
Nos mais calmos anos 80, volta em força às co-produções, trazendo para Portugal cerca de 300 filmes franceses, muitos deles rodados com equipas parcial ou totalmente portuguesas, garantido trabalho regular para os profissionais nacionais. A facilidade com que se move nos meios cinematográficos mundiais fá-lo sonhar com a internacionalização do cinema português. "Há dois ou três filmes que são feitos na perspectiva de circularem mundialmente: a Balada da Praia dos Cães do José Fonseca e Costa, O Fio do Horizonte do Fernando Lopes e Os Imortais do António-Pedro Vasconcelos." São filmes com co-produtores estrangeiros e orçamentos elevados que, no entanto, não atingem o público desejado, pois, defende Cunha Telles, o esforço não foi consequente: "não é com três filmes que se consegue. Tinham de ser dez ou vinte ou trinta como fizeram os brasileiros".
"O Cinema Novo português existe graças a [Cunha Telles]", diz Fernando Lopes no documentário Chamo-me António da Cunha Telles. O próprio tem algum pejo em assumir essa responsabilidade mas lá acaba por afirmar que poderá ter servido de aglutinador de esforços. Embora se lhe note alguma mágoa por saber que provavelmente não voltará a filmar - a sua sexta e última longa-metragem, Kiss Me, data de 2004 -, fala com prazer de todo o trabalho que fez. "Qualquer das minhas intervenções foi sempre relacionada com viver o cinema, com amar o cinema".