Um país a duas línguas
Português é a única língua oficial de Cabo Verde. Porém, muitos cabo-verdianos não a sentem como sua. Parece um contra-senso, mas a razão prende-se com o uso que lhe é dado. Apesar de todos os cidadãos reconhecerem a importância da língua portuguesa (LP) nas relações profissionais e para comunicação com o mundo, na esfera privada fala-se em cabo-verdiano. Sempre. Ou quase sempre.
“Em Cabo Verde dificilmente ouves alguém a falar português, a não ser na escola ou quando encontras alguém que só fala o português”, observa a estudante Geiza Semedo, de Achada Riba (Assomada).
A observação é corroborada por vários entrevistados. No convívio com o patrícios, ou quem domine minimamente o crioulo, mesmo no contacto profissional, em algumas áreas, a maioria das pessoas fala em cabo-verdiano. Por norma, o português fica remetido para “quando aparecem pessoas que falam” nessa língua, como nos diz a trabalhadora-estudante Jandira Correia, na Praia.
A divisão no uso privado e público poderia não invalidar a assunção da língua portuguesa como também sua. Aliás, em vários outros países da CPLP essa negação da língua não acontece. Talvez isso aconteça porque, havendo vários dialectos e línguas, o português surja como factor de união entre os cidadãos de um mesmo país. Ora, apesar de o cabo-verdiano ter as diferentes variantes, elas não são tão diferentes entre si que não permitam a compreensão entre os seus falantes.
Assim, atestando o que acima foi dito, na realidade, a maior parte dos nossos entrevistados reponde ao interlocutor na língua em que é abordado.
“Normalmente falo em português com os clientes que falam comigo em português. Se falarem em crioulo, respondo em crioulo”, diz-nos o jovem canalizador Odair Mendonça, na Praia.
Também a vendedeira Admilsa Rebelo, da Calheta, diz o mesmo. “No meu local de trabalho, muitas pessoas entram na loja e falam português, mesmo os que não são portugueses, e eu aí também falo em português”.
“Normalmente falo português quando trabalho com turistas portugueses ou angolanos”, acresce, o condutor de Hiace, Anilton Livramento, em Monte Sossego.
Mas há algumas excepções, como em tudo. Leonilde Silva, por exemplo, bancária e natural da Calheta, conta que, além de falar português no trabalho e no convívio com amigos portugueses, também o usa em casa.
Sendo a língua oficial e de ensino, nas escolas a comunicação é essencialmente feita em português, seja nas aulas seja em situações mais formais como reuniões. Também neste meio, os cabo-verdianos, esquecem a LP, quando saem fora de portas do estabelecimento de ensino.
“Eu falo português apenas nas salas de aulas, e em situações formais”, afirma por seu lado a estudante universitária Diana Gomes.
O professor do ensino básico Nivaldo Tavares tem uma vivência semelhante com a língua.
“Só falo português em situações formais, por exemplo quando vou uma instituição ou quando estou na escola”.
Alanan Namana é estudante e veio da Guiné-Bissau e vive com os padrinhos que são cabo-verdianos. A comunicação, em casa é feita em português e só fala crioulo com os colegas de escola. Esta guineense, sente a língua portuguesa como sua, até porque é a língua que melhor domina, mas sente que em Cabo Verde não tem a devida projecção.
“Acho que o português devia ser falado aqui da mesma forma que falam crioulo”, avalia.
Propriedade da Língua
Posto isto, muitos entrevistados consideram que a língua portuguesa é “sua” porque a falam e usam.
“Eu considero a Língua Portuguesa como a minha língua, porque a que uso no meu trabalho e é também é língua mais falada em todas a as instituições portanto considero-a também como a língua de Cabo Verde”, diz a professora Maria de Jesus Varela.
O professor Manuel Lopes, de Assomada, afirma sentir também essa propriedade uma vez que “é a língua usada na comunicação, na escola e em diversos casos”.
“Considero o Português como minha língua porque também falo essa língua”, diz também Odair Mendonça.
Também Jandira Correia considera esta como sua língua e diz mais: “que devemos usar mais o português no nosso dia-a-dia. Sendo que é a nossa língua oficial e, quanto mais usamo-la é melhor para nós”.
“É uma língua que aprendi desde pequenina, na escola. É língua de Cabo Verde porque os cabo-verdianos utilizam esta língua em todo lugar, em todas as circunstâncias, mesmo estando num país que não se fala português”, defende Leonilde Silva.
“Em princípio, o português, sendo a língua oficial tem que ser nossa. Mas neste momento está num patamar secundário porque em todos os lugares, todas as pessoas falam em crioulo”, analisa por seu lado, Anilton Livramento.
A história também é chamada a justificar a propriedade língua. “Considero a LP como a minha língua porque nós fomos colonizados pelos portugueses. Ela faz parte da nossa colonização e desde de sempre fomos alfabetizados pela LP. A LP é uma identidade e é uma língua de Cabo Verde”, analisa, por exemplo, o professor Nivaldo Tavares.
Mas há também, como já referimos, muitos entrevistados que não consideram a LP como sua.
Para Geiza Semedo, esta não é a sua língua porque fala “mais crioulo do que português”. Admilsa Rebelo, também não considera a língua portuguesa como sua. “Sou cabo-verdiana e a minha língua é o crioulo”, reivindica.
“Sendo cabo-verdiana, claro que prefiro o crioulo por ser a minha língua materna. Utilizamos a Língua portuguesa como Língua oficial, mas acho que o crioulo devia ser implementado com tal”, diz-nos, no Mindelo, Raquel Gomes. A jovem estudante considera ainda que esta nem sequer é língua do seu país.
“O facto de Cabo Verde ter sido colónia portuguesa não implica que a LP seja uma Língua de Cabo Verde. Não estamos na Europa, estamos em África daí é necessário que Cabo Verde tenha a sua própria
Língua e descartar o português”, defende.
“O português é só a língua oficial, a língua cabo-verdiana mesmo é o crioulo. É a língua nativa”, argumenta, Odair Mendonça.
“Considero a LP como a minha língua sim porque falo português nas aulas e situações formais, mas não a considero língua de cabo verde porque nem todos falam português”, diz a estudante do secundário Ilda Martins.
Importância da LP
Apesar de haver alguma discrepância quanto ao sentido de propriedade, e mesmo ao afecto nutrido pela LP, entre os cabo-verdianos, numa coisa parece haver consenso: o bom domínio do português deve ser promovido e constitui uma mais-valia na esfera pública.
A jovem mãe Admilsa Rebelo insiste para que o seu filho fale e escreva correctamente na língua de Camões para que quando lhe for exigido, falar ou escrever, ou “mais tarde quando estiver à procura de trabalho, ele consiga expressar-se correctamente”.
Também o professor Manuel Lopes afirma que tem estado a insistir com a filha na aprendizagem da língua portuguesa.
“É o português que usamos para comunicar com as demais pessoas. Apesar de muitas pessoas ainda insistirem em falar em crioulo, ignorando a língua oficial, exijo que ela aprenda o português para que mais tarde ela o possa usar”, conta.
Também Maria de Jesus Varela, quer que os filhos escrevam e falem bem a língua oficial do país pois a qualquer momento e circunstância terão necessidade de a usar.
“Em relação aos meus filhos sempre os apoiei para falarem bem o português para os poder encaminhar bem nos estudos para que tenham um sucesso”, defende também Leonilde Silva, bancária.
Esta visão é partilhada por todos os entrevistados.
E muitas vezes até já são as próprias crianças a corrigir os pontapés na LP dos pais.
“A minha filha vê muitos desenhos animados e por vezes utilizo mal algumas expressões e ela corrige-me”, conta Anilton Livramento.
Texto originalmente publicado no jornal Expresso das Ilhas (Cabo Verde) a 25 Junho 2014