Lusofonia celebra a língua do mar e da gente
O primeiro documento oficial escrito em português data de 27 de Junho de 1214. Trata-se do testamento de D. Afonso II que institui, assim, simbolicamente, o dia de nascimento da língua. Oitocentos anos passados, a Língua Portuguesa (LP) vive um interessante momento de expansão, reconhecimento, e também de mudança em termos de gestão e internacionalização. Hoje, falar português “é um imenso património e um poderoso veículo de união e progresso”, como escrevem os muitos subscritores do Manifesto 2014, em homenagem à LP.
Mas é no Testamento de D. Afonso II que se encontra o “marco que simboliza o momento em que a nossa língua se liberta e autonomiza das suas raízes e ascende ao mais nível do Estado”. Isto porque está escrito em português - e não em galaico-português - e trata-se de um documento oficial do soberano. Estávamos em 1214.
Oitocentos anos passados, muitos momentos de expansão, internacionalização, fracção e crise, e sob a influência directa de diferentes contextos histórico-económicos, trouxeram-nos a esta data de 2014 e a um mundo globalizado. E é sob a conjuntura actual que a “presença da língua portuguesa no contexto do multilinguismo global” tem vindo a ganhar enfase, conforme destaca o director executivo do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), o brasileiro Gilvan Müller de Oliveira.
Um período vibrante que no entender de um outro especialista, o linguista cabo-verdiana Manuel Veiga, “decorre do importante papel que desempenha como ferramenta útil de comunicação, de ciência e de desenvolvimento, no espaço da CPLP, bem como em alguns fóruns internacionais”.
E esta actualidade evidencia¬-se não só na comunicação e ensino, “como também na produção e no suporte cultural e artístico de um espaço linguístico pluricontinental e diasporizado, com mais de 200 milhões de utentes e de beneficiários.”
Milhões de falantes
Como relembra o director executivo IILP, Gilvan Müller de Oliveira, no seu artigo “Política linguística e internacionalização: a língua portuguesa no mundo globalizado do século XXI”, “o português é hoje língua oficial em 10 países”.
Aos oito países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), juntam-se a Guiné Equatorial, que a oficializou em 2011 e a China, mais exactamente a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), “onde é cooficial ao lado do mandarim até ao ano de 2049”.
A LP “está presente na América, África, Europa e Ásia – nesta ordem em termos demolinguísticos – e tem de 221 a 245 milhões de falantes como primeira ou como segunda língua em variados graus de proficiência”.
Gilvan Müller de Oliveira escreve ainda que “entre sete e nove milhões de falantes da língua portuguesa estão nas Diásporas”.
A LP é também língua com estatutos de oficialidade ou estatuto especial “em 26 organizações internacionais, entre elas em 5 dos 17 blocos económicos regionais hoje existentes no mundo: União Europeia, Mercosul, SADC, CEDEAO, CEEAC e brevemente, de acordo com os desdobramentos de negociações, na ASEAN, bloco que Timor-Leste passará a integrar a partir de 2017”.
A linguista cabo-verdiana Ondina Ferreira, por seu lado, atenta que hoje “de acordo com o Observatório da Língua, a China, o Japão e a Índia, entre outros, desenvolvem o ensino da Língua portuguesa em larga escala, como língua de negócios. O seu valor económico disparou. Daí o pedido do Japão para ser membro observador da CPLP.”
Outro facto é que o “fenómeno global que é o Futebol tem aumentado (por parte dos Jornalistas não-falantes do português) a procura desta Língua”.
“A Língua portuguesa é hoje a mais falada no Hemisfério Sul; ocupa o quarto lugar entre as 20 Línguas mais faladas no mundo. Se hoje somos 250 milhões que a falam, estima o Observatório da Língua que num curto horizonte – tal é a expansão da Língua portuguesa – em 2020, seremos 400 milhões de falantes. Em Angola, a Língua portuguesa é já Língua materna para mais de 80% da população de menos de 40 anos de idade. E é Língua que prefigura a fala, a escrita e o entendimento de unidade nacional naquele país da CPLP. Em São Tomé e Príncipe, e à escala do país, o registo linguístico é semelhante ao de Angola”.
“Enfim, a vitalidade e o crescimento da procura da Língua Portuguesa têm sido visíveis e quantificáveis de forma notável”, analisa a linguista.
Uma língua pluricêntrica
“O Português como grande língua internacional contemporânea é, afinal, uma novidade: bem vistas as coisas, não tem ainda 40 anos. Nasceu assim com a independência das antigas colónias e a escolha inteligente dos novos países; e consolidou-se na CPLP”, observa José Ribeiro e Castro no seu artigo de opinião.
Em 1990, ainda antes da criação da falada CPLP (1996) e depois de largos anos em que os países lusófonos estiveram de costas voltadas e/ou em blocos geopolíticos diferentes, novos passos foram dados no sentido de uma maior articulação entre lusófonos. Nessa data foi assinado um novo acordo ortográfico, que constitui uma pequena revolução na maneira de pensar a língua.
No entanto, este AO não é consensual e tem sido alvo de debates no mundo lusófono. A linguista Ondina Ferreira é uma das vozes que se insurge contra o AO.
“O Acordo retirou da LP – no meu entender, daí o meu desacordo – aquilo a que classifico de “lógica” e do “espírito” da Língua. Por exemplo, quase que ignora a história etimológica, e por vezes introduz perturbadoras confusões na semântica de algumas palavras”, argumenta.
Na realidade, conforme explicou o director executivo do IILP ao Expresso das Ilhas, o AO, que muda a ortografia das palavras, é apenas a ponta do iceberg de todo um processo para repensar a língua. “As coisas mais importantes virão pós-acordo” e mudam o paradigma da LP e a participação dos povos lusófonos na sua gestão.
Nesse sentido, um dos instrumentos que decorre do AO, provavelmente o mais importante, é a criação de um Vocabulário Ortográfico Comum, o VOC.
Quanto vale uma língua
Neste momento, o VOC tem já quatro vocabulários ortográficos comuns prontos e integrados (Brasil, Moçambique, Portugal e Timor-Leste) e ainda o de São Tomé e Príncipe que estará no ar até à Cimeira de Díli, no final de Julho.
Este instrumento terá dois impactos importantes: “primeiro vai acabar com essa dicotomia de bases lexicais separadas entre Brasil e Portugal. Depois, os países que são tributários passaram também a ter o seu Vocabulário Ortográfico Nacional e um espaço próprio no VOC”.
Em relação ao primeiro impacto, há, como é sabido duas normas para a LP. A brasileira e a de Portugal, sendo que os PALOP são tributários desta última. Ou seja, os lucros da língua são só divididos por dois.
“Temos duas representações de português na internet, temos dois vocabulários ortográficos e, mais importante, temos dois contratos com as empresas de internet”.
Por exemplo, o gigante Google tem um contrato com o Brasil e outro com Portugal.
“Quando um angolano [ou outro cidadão dos PALOP] entra e usa um corrector ortográfico ou um tradutor electrónico, cai algum centavo na conta de alguma empresa de Portugal porque Angola é tributária de Portugal”, explicou o director¬-executivo do IILP.
Saliente-se neste ponto que “na Internet, o português alcançou recentemente a cifra de 83 milhões de usuários, passando a ser, em 2010, a quinta língua mais usada na rede.”
O português tem, pois, sido tratado como se duas línguas fosse. E as “duas normas desenvolveram ainda terminologias técnicas e científicas diferentes, dificultando a interoperatividade do exercício profissional”, conforme escreveu o especialista no seu artigo supracitado.
O VOC surge, ainda, num momento em que a indústria da Língua se estabelece como um ramo cada vez mais importante da economia e é a “base sobre a qual se constrói todos os instrumentos,” dessa indústria.
“A sociedade da informação ou a sociedade do conhecimento é um tipo de sociedade que funciona cada vez mais com bens intangíveis, com bens comunicacionais” e “toda essa informação é dependente da base linguística, é vendida por língua”. Ou seja, cada vez que se vende um produto desses, vende-se também a língua”, referiu ao Expresso o director executivo.
No caso de Portugal, de acordo com um estudo do Instituto Camões, a língua representa 17% do PIB.
Ainda dentro das novas perspectivas que este AO traz, também o linguista Manuel Veiga considera que irá facilitar o ensino da LP, uma vez que o facto de termos uma língua com normas diferentes de escrita, dificulta a “aprendizagem e o uso, particularmente nas Universidades estrangeiras e nas tribunas internacionais.”
E além de facilitar “uma maior aprendizagem o mercado comunicativo, cultural, artístico e económico da língua portuguesa vai aumentar, exponencialmente”.
“Com o Acordo, um livro publicado em Cabo Verde, para um público de meio milhão de habitantes, pode ser comercializado em todos os espaços da CPLP, para um público de mais de duzentos milhões de utentes. Tudo isto para dizer que o Acordo Ortográfico facilita a aprendizagem, aumenta a divulgação e o mercado cultural de todos os produtos que tenham por suporte um português que respeita as balizas do Acordo Ortográfico. E quem sai mais beneficiado são sobretudo os pequenos países, como Cabo Verde, por exemplo,” analisa.
“O que estimula muito neste trabalho e que é pouco dito, que os críticos vêem pouco, é que nós construímos, na lusofonia, um modelo democrático de gestão da língua que eu tenho chamado de português do século XXI”, frisa por seu lado Gilvan de Oliveira.
Pelo passado, pelo futuro e principalmente pela língua que é partilha, união e progresso, parece haver uma série razões para “festejar esses oito séculos da nossa língua, a língua do mar, a língua da gente, uma grande língua da globalização”, conforme escreve o manifesto 2014, assinado por várias personalidades lusófonas, nomeadamente o Presidente da República de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca.
“Celebramos o futuro.
Em qualquer lugar onde se fala Português, 27 de Junho de 2014”, termina o documento.
LP em Cabo Verde
Em Cabo Verde, o aniversário da Língua Portuguesa, “este elemento de coesão”, matriz da crioulidade, e língua oficial do país, tem passado quase despercebido. Tal indiferença talvez se justifique com a concentração das atenções em torno da oficialização da língua cabo-verdiana, a estimada língua materna.
A LP está em expansão e é precisamente em África que se verifica o maior crescimento. A estimativa é que em 2060 se chegue a 90 milhões de falantes de português, entre Angola e Moçambique. Neste geocontexto surge Cabo Verde, onde – em parte devido aos progressos feitos em termos de escolarização, que é feita em Língua Portuguesa – a esmagadora maioria dos seus habitantes fala esta língua, pelo menos a um nível básico.
No Universo global de falantes de LP, os cabo-verdianos são apenas uma pequeníssima parcela que, com a diáspora rondará um milhão de pessoas, mas que, graças a esse veículo que é a LP, pode comunicar com mais de 200 milhões de outros falantes. É um salto de escala.
Há motivos para se juntar aos festejos. Assim, no âmbito deste Aniversário, também “Cabo Verde e a crioulidade congratulam-se com as celebrações oitocentistas, na busca permanente da superior unidade da língua que partilhamos na CPLP”, destaca Manuel Veiga, Professor de Língua Caboverdiana e Director da Cátedra Amílcar Cabral, na Uni-CV.
Mas isto, “sem hipotecar a legítima diversidade de cada rincão nosso.”
Na realidade, “internamente aos países da CPLP o português convive com aproximadamente 339 diferentes línguas, com variado número de falantes e diferentes graus de vitalidade”, destaca o Gilvan Müller de Oliveira, no seu artigo.
Entre elas está o Cabo-verdiano. E falar da LP em Cabo Verde, o “elemento de coesão mais forte que existe nos oito países da CPLP, espalhados por quatro continentes”, conforme lhe chama Veiga, acaba por ir desembocar numa outra questão, que, sem muitas vezes querer retirar valor à LP, a remete para um recanto menos apaixonado.
O Crioulo parece falar sempre mais alto no arquipélago. Veiga, que é também considerado o pai do ALUPEC (alfabeto da língua cabo-verdiana), salienta no entanto o papel histórico da LP, na construção do Cabo-verdiano.
“O português, em cumplicidade com algumas línguas da Costa ocidental africana, esteve na base do surgimento do crioulo caboverdiano. Desde a segunda metade do século XVI (altura em que, segundo o historiador António Carreira existia já um proto-crioulo em Cabo Verde), o português conviveu e convive com o crioulo caboverdiano. Mais do que uma língua irmã, ele é uma das matrizes da nossa língua materna”, diz.
Aliás, para Veiga, a quem não seria errado chamar um dos maiores defensores do crioulo cabo-verdiano, a actualidade da LP “advém da importância comunicativa, cultural, científica e económica, mas também da sua capacidade de dialogar com as diversidades linguísticas e culturais dos espaços onde compartilha o humanismo de quantos a adoptaram ou a acolheram.” Cabo Verde não será excepção.
E enquanto o arquipélago aguarda uma incontornável oficialização do cabo-verdiano, reivindica que este contribuiria para uma melhor aprendizagem da LP. “Dominando a língua materna, que nos serve de referência, facilmente aprendemos qualquer outra língua”, diz.
LP mal-amada
A LP “é um autêntico património cultural e constitui a parte substantiva de toda a nossa escrita, de todo o nosso arcaboiço documental, histórico, legislativo, cultural e literário mesmo, porque ainda a maior parte da literatura cabo-verdiana é escrita em língua portuguesa. Porque não assumi-la plenamente, porque não assumi-la com afecto, porque não assumi-la com frontalidade? Porque não cuidar da sua prática, da sua oralidade entre nós? Porquê retirá-la da administração pública, porquê retirá-la das escolas? Porquê retirá-la da comunicação social, se ela é tão nossa como a língua cabo-verdiana?”, reivindicava Ondina Ferreira em entrevista ao Expresso das ilhas há já alguns anos.
Mas a verdade é que em Cabo Verde muitos não a consideram verdadeiramente sua (Ver VOX POP). Paulina Santos, Professora de LP, no Mindelo, reconhece que essa falta de sentido de pertença cria nos alunos alguma resistência à língua.
“É uma língua nossa e digo isso sempre aos meus alunos. Ela chegou em Cabo Verde antes do crioulo e no dia em que os alunos tomarem consciência de que a Língua portuguesa é nossa, é um dado nosso (cultural) vão ter mais prazer em utilizá-la”, conta.
No sentido de promoção da LP recentemente tem sido levadas a cabo algumas iniciativas para valorizar a LP. No ano passado, por exemplo, foi criada a Liga Cabo-verdiana de Amigos da Língua Portuguesa, de que a linguista Ondina Ferreira é membro-fundadora e que tem como “objectivo primordial a preservação, a difusão e a expansão oral e escrita da Língua portuguesa entre os falantes cabo-verdianos.”
Aliás, maior parte dos linguistas, mesmo os mais apaixonados defensores do crioulo, acreditam que Cabo Verde tem de assumir a LP, que também é Língua do arquipélago, e defendem que a oficialização não será feita em detrimento do estatuto e do papel da LP . Mantêm, antes, a par com o objectivo dessa oficialização da Língua Materna, o de bem posicionar e preservar a LP no arquipélago.
Mas há também quem considere que a LP é apenas mais uma língua estrangeira.
“N ka ta konsidera purtuges nos lingua trokadu 2 razon: un povu normalmenti ten so UN lingua pabia ses menbru meste so un lingua pa es komunika entri es; bazikamenti so nhas konpatriota ki ten txeu skola na purtuges, e ki ta papia purtuges dretu, mas tudu algen ki ka e atrazadu mental, ta papia SE lingua dretu. N ka sabe si lingua purtuges sa ta afirma sima, menus o mas ki kes otu lingua ku prujeson internasio¬nal (ingles, franses, spanhol, etc.). Lingua purtuges e util pa nos i se afirmason internasional ta benefisia-nu. Di mumentu, infilismenti, ingles ten mutu mas prujeson internasional ki purtuges”, diz ao Expresso das ilhas o linguista Marciano Moreira.
Texto originalmente publicado no jornal Expresso das Ilhas (Cabo Verde) a 25 Junho 2014