África, o novo celeiro do mundo

As novas “minas de ouro” em África não são de cobre, gás ou petróleo. O potencial agrícola do continente está a criar uma corrida às terras aráveis: a China e o Brasil já lá estão, mas também Bill Gates.

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Secas prolongadas, cheias e enxurradas, subnutrição extrema, guerras, migrações forçadas de populações e uma fraquíssima produtividade aliada a métodos de cultivo rudimentares: esta imagem da agricultura em vários países africanos poderá estar já no passado. E há nomes sonantes a trabalhar para a mudar, como Bill Gates e a Fundação Rockefeller, Graça Machel, Bob Geldof ou o antigo secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan.

Machel, Geldof e Annan pertencem ao Africa Progress Panel (APP), fórum de dez personalidades de sectores privado e público que defendem o investimento equilibrado na agricultura em África aliado ao crescimento económico sustentado. No mês passado, a APP recomendou aos líderes africanos o investimento de 10% dos seus PIB na agricultura, de modo a que os países africanos possam beneficiar do crescimento populacional no mundo. Estima-se que dois terços dos africanos dependam da agricultura para viver, daí que “investir na agricultura é uma estratégia essencial para reduzir a pobreza e a desigualdade social”, diz o relatório.

“Se queremos alargar os recentes sucessos económicos do continente a uma maioria de habitantes de África, não podemos continuar a negligenciar as comunidades que dependem da agricultura e das pescas”, disse Kofi Annan. “A população mundial em crescimento precisa de alimento e África, o nosso continente, está numa boa posição para o providenciar. Temos recursos suficientes para alimentar não só a nós mesmos, mas outras regiões também. Temos de aproveitar esta oportunidade.”

Esta “revolução verde” já está em curso em vários países tornando África potencialmente no novo celeiro do mundo. Na Nigéria, Etiópia e Ruanda, esforços governamentais para desenvolver o sector agrícola estão a colher frutos nas economias nacionais. Num artigo de Maio da revista Forbes, o antigo Presidente da Nigéria, Olusegun Obasanjo, escrevia que a agricultura estava prestes a tornar-se no “novo petróleo” do país, ainda que o investimento estivesse nuns meros 1,6% do PIB. Com 84 milhões de hectares de terra arável, dois dos maiores rios de África e uma mão-de-obra jovem, calcula-se que a Nigéria seja auto-suficiente em arroz em 2015.

A crise do preço dos alimentos em finais de 2007 levou vários países a repensar a estratégia de investimento no sector agrícola. “Até então, a trajectória era a de uma redução contínua dos recursos de apoio ao sector agrícola, quer públicos, nacionais, com origem nos impostos, quer de origem externa por parte dos doadores, e essa redução culminou, nos primeiros anos do novo milénio, no seu ponto mais baixo”, explica à Revista 2, Lídia Cabral, investigadora especialista em cooperação para o desenvolvimento, associada ao Institute of Development Studies (IDS), baseado na Universidade de Sussex, no Reino Unido. A investigadora colabora igualmente com a Future of Agricultures, consórcio que reúne instituições de investigação de vários países africanos e britânicos, como fórum de debate sobre o futuro da agricultura em África.

Explica Lídia Cabral que, por causa da crise do preço dos alimentos, “houve uma viragem no discurso governamental e dos doadores em relação ao sector” e desenvolveram-se iniciativas que dedicaram maior atenção à agricultura. Entre outras, está a Food Security Initiative, liderada pela FAO e pelos países do G8 no encontro de 2009, em Aquila, Itália, em que os líderes mundiais se comprometeram a investir 20 mil milhões de dólares em três anos em agricultura sustentável para combater a pobreza e a fome. Seguiu-se a Feed the Future, iniciativa lançada pela administração Obama em 2010, com o apoio da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento (USAID), e, finalmente, o Comprehensive Africa Agriculture Development Program (CAADP), da União Africana, à escala continental.

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Cultura do algodão na Costa do Marfim ISSOUF SANOGO/AFP

Não é por acaso que 2014 é o ano da Agricultura e Segurança Alimentar para a União Africana: o Fórum para a Investigação em Agricultura em África (FARA) acabou de receber em Abril um reforço de 19 milhões de dólares da Comissão Europeia, fazendo um total de 53 milhões o investimento de doadores europeus em apoio ao desenvolvimento agrícola na África subsariana. O que aproxima todos estes projectos é, explica Lídia Cabral, “o reforço do investimento e o aumento das políticas públicas para o sector agrícola, estabelecendo-se compromissos, quer em relação ao crescimento, quer ao investimento da despesa pública no sector, traçando metas específicas e objectivos claros”.

Apesar de as iniciativas se sucederem, a crise mundial de 2008 veio alterar a forma como os governos passaram a ver o investimento. A crise “significou menos recursos disponíveis para a cooperação”, explica a investigadora. A alternativa “foi chamar o sector privado a intervir”, repensando o “papel que este poderia jogar no desenvolvimento do sector agrícola em África”. É nesta altura que, além dos investidores privados e daqueles considerados doadores tradicionais (Banco Mundial, FMI, países da OCDE), entra em cena a filantropia, com organizações como a Fundação Bill e Melinda Gates que, junto com a Fundação Rockefeller, criou a AGRA — Alliance for a Green Revolution in Africa, recuperando o espírito da “Revolução Verde” lançada nos anos 1960 pelas fundações Rockefeller e Ford em países como o México, a Índia, Paquistão e Filipinas, através da plantação de sementes de alto rendimento.

Estes objectivos visam alterar profundamente a paisagem agrícola africana, promovendo melhores infra-estruturas para facilitar a chegada dos produtos aos mercados, proporcionar o acesso a seguros de protecção das colheitas, protegendo-as de calamidades diversas, investindo na importação de fertilizantes e sementes de melhor qualidade, apoiar agricultores mais carenciados, e, acrescentava Olusegun Obasanjo na Forbes, aumentar as taxas importadoras para impulsionar a produção interna. Esta é também a teoria de Gordon Conway, professor no Imperial College, em Londres, e autor de One Billion Hungry: Can We Feed the World? (traduzido seria “Mil milhões com fome: Podemos alimentar o mundo”) Para Conway, que lidera o consórcio Agriculture for Impact (e que conta com o apoio de Kofi Annan e de Bill Gates), a solução está na concessão de microcréditos a pequenos agricultores e macro-investimento em novas tecnologias.

A “revolução” está, sobretudo, nas sementes e na sua qualidade. Estamos a falar de arroz, milho, trigo, mandioca e batata doce. Melhorar o sistema das sementes é uma das prioridades da AGRA, que quer reproduzir em países africanos o que já sucede, por exemplo, com culturas nos Estados Unidos. Durante séculos, o sistema de plantações em África foi feito com sementes que se guardavam de um ano para o outro, partilhadas em comunidade. Mas a utilização de sementes de melhor qualidade, transplantadas de outras regiões do planeta, onde já se tornaram mais estáveis e resistentes a pragas, doenças ou seca, é um dos objectivos para melhorar a produtividade das culturas.

A batata doce alaranjada fortificada com beta-caroteno é um exemplo. Estudos do British Journal of Nutrition, de 2011, mostram que o consumo regular de batata doce alaranjada em mulheres e crianças em Moçambique (ao contrário da batata doce produzida na região, de polpa branca ou amarela) elevou os níveis de vitamina A, cujo défice está associado à malnutrição e à cegueira infantil. O Prémio Champalimaud de Visão (no valor de um milhão de euros) foi atribuído em 2009 à organização Helen Keller International. Esta organização esteve a trabalhar em Moçambique incentivando o consumo de batata doce de polpa alaranjada e, desde o final dos anos 1990, foi substituindo a produção agrícola da batata doce de polpa branca com o apoio do Centro Internacional da Batata e do Instituto de Investigação Agrária de Moçambique. 

Apesar de o investimento inicial de cerca de 150 milhões de dólares em vários países africanos, a AGRA não tem sido isenta de críticas. Em Julho de 2013, na cimeira do G8 em Londres, cerca de 60 grupos da sociedade civil africana protestaram contra as políticas da AGRA, sobretudo aquelas que usam culturas geneticamente modificadas (chamados GMO), favorecendo megacorporações como a Monsanto, que recentemente reivindicou o “direito de propriedade” de uma série de sementes de alto rendimento: “A propriedade privada de conhecimento e recursos materiais (por exemplo, de sementes e de material genético) significa o fluxo de capitais para fora de África directamente para as mãos de empresas multinacionais”, explicou o grupo, num relatório apresentado pela IRIN, serviço de notícias apoiado pelas Nações Unidas. Uma das campanhas anti-Agra, o Agra Watch, dizia inclusive que a fundação de Bill Gates “se aproveita das crises mundiais de alimentos e de alterações climáticas para promover agricultura industrial e de alta tecnologia, direccionada para o mercado, gerando lucro para corporações, destruindo o ambiente e empobrecendo os agricultores. Estes programas são uma forma de ‘filantropicalismo’.”

Lídia Cabral reconhece que “a produtividade do sector agrícola africano continua muito baixa” e para que ela aumente “é preciso investir em tecnologia, em investigação e formação, facilitar o acesso ao mercado”. Mas o debate sobre a disponibilidade de alimentos também é acompanhado pelo “papel da agricultura na produção de bioenergia”, nomeadamente de culturas como soja para produção de biocombustíveis e não para a alimentação das populações. 

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A utilização de sementes de melhor qualidade, transplantadas de outras regiões do planeta, onde já se tornaram mais estáveis e resistentes a pragas, doenças ou seca, é um dos objectivos para melhorar a produtividade das culturas em África Paulo Whitaker/REUTERS

A entrada destas megacorporações na agricultura africana tem suscitado debates sobre questões problemáticas, como o land grabbing, a corrida às terras, que tem revelado também os novos actores no terreno, como a China, a Índia e o Brasil (os BRIC). Mas Lídia Cabral destaca igualmente um “debate que está longe de ser resolvido” em relação às “preocupações face ao tipo de tecnologia desenvolvida pela Gates e Rockefeller, e à promoção da utilização de culturas e sementes geneticamente modificadas: os GMOs são importantes para garantir o aumento da produtividade, mas há quem diga que são prejudiciais para os produtores e, potencialmente, para a saúde”, continua.

Esta investigadora — que está a desenvolver o seu doutoramento sobre cooperação para o desenvolvimento do Brasil em África no sector agrícola — trabalhou em Moçambique entre 1999-2004, como técnica assistente do Ministério de Planeamento e Finanças, e dá este país como exemplo do que se passou noutros países africanos.

Após a guerra civil, Moçambique foi “invadido” por agências de cooperação governamentais e ONG, em muitos casos, “importantes para a reconstrução no pós-guerra, para restabelecer instituições e de apoio às populações”, explica Lídia Cabral. Mas isso fez também com que o Governo tivesse “pouco controlo sobre os recursos geridos directamente pelas ONG e dos que eram atribuídos pelos doadores tradicionais”. Houve um progressivo “desmantelar do papel do Estado” em vários sectores, nomeadamente, no agrícola, e a entrada de capitais privados. Essa diminuição do papel do Estado levou a que “mais tarde se sentisse a necessidade de voltar a reconstruir algumas instituições, especialmente no campo da pesquisa da agro-pecuária, e também na criação de serviços de apoio aos agricultores”, conclui a investigadora.

É este o exemplo de Sónia Ataíde, investigadora moçambicana, especialista em agro-pecuária. “Depois da guerra civil, para fazer o repovoamento pecuário em Moçambique, tivemos de importar um grande número de bovinos similares aos nossos em termos de raças, de adaptação e vindos de regiões agro-ecológicas parecidas. Seleccionámos a África do Sul e a Suazilândia para importar estes animais”, conta à Revista 2. A investigadora está agora a desenvolver um doutoramento em Veterinária e melhoramento animal com uma bolsa do AWARD – African Women in Agriculture Research and Development, fundo de apoio à investigação agrária (que inclui especialistas em agro-pecuária, agrónomos, biólogos, veterinários) financiado pela Bill and Melinda Gates. Não é por acaso que o AWARD apoia mulheres: tal como “dentro da política moçambicana a questão do género é prioridade e o país tem apostado nessa política, por causa da falta de acesso das mulheres à educação e a meios de vida”, explica Ataíde, também para a FAO (e para a fundação Gates) o papel da mulher no sector agrícola tem de ser reconhecido, compensado e incentivado. De acordo com a FAO, na África subsariana a mulher contribui com mais de 50% do trabalho em propriedades rurais e mais de 60% das mulheres empregadas na região trabalha na agricultura.

Além do papel da mulher na investigação agro-alimentar, Moçambique tem sido também um “estudo de caso”, exemplo do que se tem passado a nível de investimento, corrida à concessão de terras e aumento da produtividade agrícola. Um caso bicudo tem sido o ProSavana, investimento do Brasil, Japão e do Governo moçambicano no corredor de Nacala, cobrindo três distritos no Norte de Moçambique, numa área de 14 milhões de hectares. A intenção será plantar soja, monocultura, portanto, para produção de energia. Investimentos como o ProSavana têm gerado polémica, tanto em Moçambique como no Brasil. A concessão de vários hectares de terra a estrangeiros levanta questões porque “a terra não estava necessariamente desocupada: as pessoas e as comunidades em Moçambique fazem um uso variado da terra, não só para produção agrícola mas também para outros fins”, assegura Lídia Cabral.

A terra já foi alocada mas a exploração ainda não começou. A sociedade civil moçambicana tem feito uma série de abaixo-assinados, em busca de maior esclarecimento. Diz Sónia Ataíde que, no fundo, “falta clareza: o que é o ProSavana e o que vai fazer? Falam-se de vários distritos mas, concretamente, em termos de terra, o que significa?” Em relação ao futuro dos camponeses também falta informação: “Os camponeses que sempre estiveram a trabalhar nessas terras vão deixar de produzir agricultura diversificada para passar a cultivar monocultura? Estas empresas vêm para cultivar soja, algodão? E se assim for como é que o camponês vai deixar de produzir o seu milho, o seu feijão, a mandioca?”, pergunta a investigadora moçambicana. Este é também o receio de Lídia Cabral relativamente ao investimento corporativo em áreas vastas de África: “Que estes programas sejam veículos de entrada de grandes interesses corporativos que ponham em causa a questão do acesso à terra, questões ambientais, de justiça social e de distribuição de rendimentos.” 

Algumas opiniões vão no sentido de que este investimento na agricultura é a nova “corrida ao ouro” em África: “Há um corporate takover na agricultura africana. Mas há algumas iniciativas positivas. A dúvida é: de que maneira África está ou não a beneficiar desta corrida? E se sim, quem em África? A preocupação é com as comunidades locais que vivem em condições de maior vulnerabilidade, até que ponto eles vão beneficiar deste investimento”, conclui Lídia Cabral.

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Mulheres da comunidade de Oru-ijebu, Nigéria, apanham mandioca Akintunde Akinleye/REUTERS

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