Hans vai receber finalmente o corpo da filha mas não perdoa a ninguém

Corpos das vítimas da tragédia do MH17 já estão em Kharhov, de onde serão transportados para a Holanda. Separatistas entregaram caixas negras e peritos já visitaram o local onde caiu o Boeing.

Fotogaleria
Observadores da OSCE junto ao comboio que transportou os corpos BULENT KILIC/AFP
Fotogaleria
Separatistas entregaram as caixas negras do avião Maxim Zmeyev/Reuters

“Muito obrigado, senhor Putin, senhores dirigentes separatistas ou governo ucraniano, pelo assassínio da minha querida e única filha”, escreveu, numa carta publicada na imprensa holandesa. “Espero que estejam orgulhosos de ter destruído a sua jovem vida e que amanhã se olhem ao espelho sem tremer.”

Hans encontrou no sarcasmo ácido a expressão para a dor e a revolta com o que aconteceu a Elsemiek, 17 anos. Servem-lhe de pouco – a ele como a qualquer dos familiares dos 298 mortos no derrube do avião que ligava Amesterdão a Kuala Lumpur, na quinta-feira – os desenvolvimentos de um caso que continua a motivar declarações de líderes mundiais e trocas de acusações entre a Rússia e a Ucrânia.

A carta deste pai holandês foi divulgada no dia em que os separatistas pró-russos autorizaram a partida, ao fim da tarde, em direcção a Kharkov – cidade nas mãos das autoridades do governo de Kiev – de um comboio com os corpos de 282 das vítimas. Estavam em Torez, na zona controlada pelos rebeldes pró-russos, a uns 15 quilómetros do local da queda, para onde foram levados a maior parte dos cadáveres. De Kharkov deverão seguir de avião para a Holanda.

A partida do comboio ocorreu depois de o primeiro-ministro da Malásia, Najib Razak, ter anunciado que recebeu garantias dos separatistas pró-russos da auto-proclamada República Popular de Donetsk de que os cadáveres seriam enviados para a Holanda, que as caixas negras do aparelho iam ser entregues ao princípio da noite a especialistas malaios e que os investigadores teriam “acesso seguro” ao local onde o avião caiu.

Horas antes, uma equipa de peritos examinou, pela primeira vez, cadáveres de vítimas guardados em carruagens supostamente frigoríficas. Peter van Leit, o líder desse grupo, disse, citado pela BBC, que estavam em boas condições. Mas os repórteres relataram cheiro de corpos em decomposição.

Mais tarde, a equipa de especialistas deslocou-se ao local da queda do avião, onde até então apenas tinha sido autorizada a deslocação de observadores da OSCE (Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa), a quem não foi permitido aproximarem-se dos destroços.

Dois jornalistas do New York Times encontraram um pedaço do avião num campo a vários quilómetros do local da queda, com marcas de estilhaços e que peritos dizem indicar que foi atingido com um projéctil – provavelmente um míssil supersónico – que explodiu muito perto do avião, alegadamente partindo-o. Os peritos da organização de defesa Jane’s que analisaram a imagem dizem que é impossível concluir qual foi o tipo de míssil usado, mas adiantam que é consistente com o tipo de danos que causaria o SA-11, que responsáveis americanos já apontaram como o provável causador da queda do Boeing.

O descontentamento com a demora no acesso ao local e com o repatriamento dos cadáveres levara o primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, a afirmar que estavam em cima da mesa opções de pressão “políticas, económicas e financeiras”. “Queremo-los de volta”, disse no Parlamento. Foi a Holanda que mais cidadãos perdeu no derrube do avião: 193.

Ao longo do dia, antes do anúncio de Najib Razak, sucederam-se  declarações, reproduzidas pelas agências. O Presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que tudo devia ser feito “para garantir a segurança dos peritos no local da tragédia”, mas manteve a acusação de que a tragédia só ocorreu porque as forças do Governo de Kiev retomaram, nas últimas semanas, a campanha militar no Leste. E apelou ao impossível: que a queda do avião não seja usada para fins políticos.

Mais tarde, o Presidente dos EUA insistiu com a Rússia para que obrigasse os separatistas a permitirem a investigação e questionou o facto de dificultarem o acesso ao local. “O que é que eles estão a tentar esconder?” Barack Obama foi desta vez mais longe do que em momentos anteriores. “A Rússia treinou-os. Sabemos que a Rússia os armou, incluindo com armas anti-aéreas. Os líderes separatistas são cidadãos russos”, disse. “A Rússia, e o Presidente Putin em particular, são responsáveis por os obrigarem a cooperar com a investigação. É o mínimo.” Horas antes, o seu secretário de Estado, John Kerry, dissera que “a falta de acesso diz alguma coisa sobre a culpabilidade e responsabilidade”.

Já ao final da noite, numa cerimónia descrita pelo Guardian como “surreal”, as caixas negras (na verdade cor-de-laranja) foram entregues por Alexander Borodai, o autoproclamado primeiro-ministro da também autoproclamada República de Donetsk, a uma delegação malaia, numa sala guardada por combatentes rebeldes de kalashnikov ao ombro.

A entrega tinha sido negociada durante 12 horas e aparentemente conseguida depois do telefonema do primeiro-ministro da Malásia a Borodai. Este voltou a repetir que os rebeldes pró-russos não têm qualquer responsabilidade na queda do avião, dizendo que só Kiev tem “tanto a capacidade técnica como motivo” para querer derrubar o avião.

As caixas negras estão em bom estado, disse o líder da delegação. Os dados que contêm permitirão saber o momento exacto do incidente, a altitude e posição precisa do avião, diz a BBC. Aquelas poderão ainda conter registos de conversas no cockpit, que se espera que possam dar pistas sobre a causa da queda.

"Momento decisivo"
O primeiro-ministro britânico, David Cameron,  defendeu maior dureza para com a Rússia. Considerou improvável que o avião tivesse sido atingido deliberadamente mas definiu o actual momento como “decisivo” e defendeu um agravamento das sanções. “É hora de fazer sentir o nosso poder, influência e recursos”, disse, aludindo às sanções de nível 3, dirigidas a sectores estratégicos da economia russa. Poderá ser essa a posição do Reino Unido na reunião de ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia desta terça-feira, a menos, o que é pouco provável, que considere relevantes os avanços das últimas horas. Já ao fim do dia, o Conselho de Segurança da ONU condenou, por unanimidade, a queda do aparelho e apelou aos separatistas para permitirem o acesso em segurança ao local da queda do voo MH17.  

Quatro dias passados sobre a queda do avião, sem que tenha sido completamente clarificada a autoria do derrube, as trocas de acusações entre a Ucrânia e a Rússia não param. O primeiro-ministro do governo de Kiev, Arseni Iatseniuk, disse que o sistema anti-míssil que teria derrubado o avião não podia ter sido utilizado por “terroristas pró-russos bêbedos” mas apenas por “profissionais” – uma clara alusão ao alegado envolvimento russo.

A Rússia desmentiu, pelo seu lado, ter fornecido aos separatistas do mísseis Buk, suspeitos de terem causado da queda do avião. E contrapôs que um caça ucraniano SU-25 se encontrava perto do aparelho pouco antes da queda. “Observámos a subida de um avião ucraniano SU-25 em direcção ao Boeing malaio que se encontrava a uma distância de três a cinco quilómetros”, disse, Andrei Kartapolov,  general do Estado-Maior. A reacção chegou pelo Presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko, que desmentiu a acusação. “Não é verdade”, disse à CNN.

As trocas de acusações, as ameaças de agravamento de sanções, as peripécias da investigação dirão pouco às famílias das vítimas, incluindo Hans Borst. No caso dele porque Elsemiek não terminará o secundário no próximo ano o secundário, como previsto, nem estudará engenharia civil na universidade de Delft.

Sugerir correcção
Comentar