Criminalização de sem-abrigo avança pela Europa

A penalização da mendicidade na Noruega é o derradeiro exemplo de uma tendência para aprovar leis, regulamentos ou medidas que dificultam a vida de quem dorme nas ruas da Europa. Ao mesmo tempo, há tentativas de integrar os sem-abrigo. Diversos países delinearam estratégias, como Portugal.

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Com a crise a semear pobreza, há cada vez mais gente sem casa pela Europa Paulo Pimenta

A Federação Europeia de Organizações Nacionais Que Trabalham com Sem-abrigo (FEANTSA) tem manifestado "preocupação" pelo modo como, em diversos pontos da Europa, se tem optado por "medidas repressivas". Em 2012, aliou-se à Housing Rights Watch e à Fondation Abbé Pierre para produzir o primeiro relatório sobre "a criminalização dos sem-abrigo na Europa".

No Sul e no Norte, no Ocidente e no Oriente, regiões e municípios têm avançado com regulamentos e medidas que dificultam o dia-a-dia de quem sobrevive nas ruas, diz Freek Spinnewijn, director da FEANTSA, ao PÚBLICO. Proíbem actos como deitar-se, dormir, comer ou guardar pertences pessoais no espaço público, mendigar, distribuir comida ou recolher lixo dos contentores.

A tendência vem dos Estados Unidos, com tradição de "lei e ordem" baseada em políticas como a "tolerância zero". Antes os sem-abrigo não faziam parte da chamada "população perigosa". Esse lugar pertencia aos ciganos e, na Irlanda e no Reino Unido, aos travellers. Com o aumento de estrangeiros entre os sem-abrigo, alguns tornaram-se "vítimas" de leis e regulamentos que punem o suposto risco de crime.

A Freek Spinnewijn a Noruega parece um caso "interessante". Tem um Estado social forte e um conjunto de leis progressistas. Os noruegueses não serão tão afectados pela proibição de mendigar. A medida, anunciada com a promessa de mais apoio à reinserção de toxicodependentes e expansão da habitação social, recairá mais sobre os estrangeiros indocumentados, em particular sobre os de origem cigana saídos da Roménia, da Bulgária e da Hungria.

Escalada na Hungria
Nenhum lugar preocupa tanto Freek Spinnewijn como a Hungria. Desde meados dos anos 2000 que as autoridades locais criminalizam a chamada "mendicidade silenciosa". E já então era proibido mendigar na companhia de crianças ou de forma "agressiva". A partir de 2010, com a subida da extrema-direita ao poder, o país começou a escalada para a criminalização dos sem-abrigo.

Primeiro, o Parlamento húngaro aprovou a lei que permite atribuir funções específicas ao espaço público e proibir quaisquer outras. Depois, Budapeste interditou o uso do espaço público para morar. Volvidos uns meses, o Parlamento decidiu punir com 60 dias de prisão ou 530 euros de multa quem, durante seis meses, por duas vezes violasse qualquer proibição de dormir no espaço público. Mais um mês e estava a proibir dormir no espaço público em todo o país.

"A criminalização dos sem-abrigo pode ter o perigoso efeito secundário de forçar as pessoas a procurarem lugares mais escondidos, onde é mais difícil receber a ajuda — amiúde vital — de cidadãos preocupados ou o acompanhamento de técnicos que se deslocam ao terreno", sustentou Balint Misetics, professor no Colégio de Estudos Avançados em Teoria Social, no referido relatório.

"A Hungria choca mais porque não teve o cuidado de esconder o que está a fazer e fá-lo a um nível nacional", considera Freek Spinnewijn. "Noutros países europeus, isso tem estado a acontecer de uma forma mais subtil, por vezes quase invisível, e a um nível das regiões ou dos municípios."

Cory Potts, criminologista da FEANTSA, e Lucie Martin, socióloga da Diagénes, pegam no caso da Bélgica para mostrar como tudo pode começar com sanções administrativas e acabar em prisão. Veja-se o caso de Liège. De acordo com o regulamento aprovado em 2011, mendigar é permitido entre as 8h e as 17h de segunda a sexta e das 7h às 12h de domingo; não podem estar mais de quatro mendigos numa rua; não se pode mendigar em cruzamentos, nem em entradas de edifícios públicos, empresas, casas. Desde 2012, quem desrespeita as regras cai na alçada da polícia. Na primeira vez, um aviso; na segunda, uma intervenção do serviço social; na terceira, detenção.

Os sem-abrigo não desapareceram da cidade. Há zonas de tolerância. Cory Potts e Lucie Martin temem que essa tolerância esteja ameaçada. Proliferam os locais "semipúblicos", o que abre caminho a novas restrições. E a requalificação que se vai fazendo vai tornando os sítios mais "defensivos". Basta colocar barreiras nos bancos públicos para impedir as pessoas de se deitarem neles, por exemplo.

Punir comportamentos

Há exemplos anteriores à crise que começou nos EUA em 2008 e se estendeu à Europa. A Câmara de Barcelona é emblemática: em 2005, optou por punir comportamentos que considera anticívicos, como vomitar, urinar, defecar, cuspir, pintar graffiti, mendigar na rua, exercer a prostituição ou fazer venda ambulante, com multas que oscilam entre 120 e os três mil euros.

No ano passado, a Câmara de Madrid aprovou um modelo mais duro: punir com multa de 750 a três mil euros quem pedir esmola à porta de um centro comercial, acampe, faça malabarismos ou solicite serviços sexuais no espaço públicos, cuspa ou atire papéis para o chão, ofereça folhetos nos semáforos; perturbe os vizinhos, enquanto rega as plantas; alimente ou dê banho a cães na rua.

Em Itália, os exemplos multiplicam-se. Logo em 2008, a Câmara de Roma decidiu castigar com multas de 50 a 150 euros quem se pusesse a comer ou a beber, a cantar, a fazer barulho ou a dormir no centro histórico ou mesmo fora dele, se junto a monumentos. Também decretou que não se pode mendigar, nem vender flores ou outros pequenos objectos, a menos que se tenha licença.

Verona foi mais longe. A câmara resolveu passar multas de 25 a 500 euros a quem alimentar sem-abrigo. O presidente, Flavio Tosi, eleito pelo partido de extrema-direita anti-imigração Liga do Norte, diz que o objectivo é promover "a higiene" e "a imagem pública da cidade".

Tudo isto, na opinião de Freek Spinnewijn, reflecte ignorância e sensação de impotência. "Ser sem- abrigo não é uma escolha individual, é o resultado de uma série de desvantagens", sublinha. "Tornar a vida destas pessoas mais difícil não resolve o problema. As pessoas podem ficar menos visíveis, mas continuam lá."

Havia complacência, corrobora Sérgio Aires, presidente da Rede Europeia Antipobreza. Pensava-se os sem-abrigo como pessoas com problemas de saúde mental, dependência de bebidas alcoólicas ou drogas ilícitas. Essa ideia é mais redutora do que nunca. Muita gente tem perdido a casa com a crise.

Sérgio Aires lê nas leis, regulamentos e medidas que dificultam a vida dos sem-abrigo uma "intolerância para com os pobres" que lhe parece "estranha". As pessoas que estão a chegar às ruas são "mais parecidas com o cidadão comum". Muitas vezes tinham vidas integradas até perderem o emprego.

O fenómeno está na agenda europeia. Há meia dúzia de anos que a União instiga os Estados-membros a investirem na integração das pessoas sem-abrigo.

Diferentes países adoptaram estratégias para reduzir o número de pessoas a dormir nas ruas. Alguns optaram por abordagens mais baseadas na lógica "casa primeiro", como a Suécia, a Finlândia e a Dinamarca. Outros, apesar de considerarem isso importante, falam em aumentar a qualidade da rede de albergues e de serviços de apoio à habitação, como os Países Baixos, a França e Portugal.

Regras portuguesas

"Portugal não tem orçamento", comenta Freek Spinnewijn. Apesar disso, o país cabe no rol de exemplos positivos. "Tem uma estratégia nacional. Ainda está no papel, mas tê-la já é um princípio."

Segunda a Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem Abrigo, aprovada em Portugal em 2009, ninguém deve permanecer na rua mais de 24 horas, a menos que seja essa a sua vontade. Existiriam centros de emergência — estruturas de resposta imediata, das quais se sairia, com um diagnóstico feito, para alojamento temporário ou permanente. Em lado algum foram criados.

A estratégia aponta para a organização local. Sempre que o número de sem-abrigo justifique, deve constituir-se um Núcleo de Planeamento, Intervenção a Sem-Abrigo e delinear-se um conjunto de respostas integradas. "Vai funcionando no Porto", afiança Sérgio Aires. Em Lisboa não tanto. Tenta-se agora reactivá-la. "Há muita coisa a acontecer e essa não é uma das prioridades." Congratula-se por não haver em Portugal a intolerância de outros países. Nem um clima rigoroso.

No ano passado, pelo menos 4420 pessoas viviam em jardins, estações de metro ou camionagem, paragens de autocarro, estacionamentos, passeios, viadutos, pontes e abrigos de emergência de Portugal. O número peca por defeito. Corresponde às pessoas acompanhadas no âmbito da Estratégia.

Os técnicos encontram resistência entre alguns sem-abrigo. Os albergues não permitem animais. Nem deixam entrar quem emite sinais de estar de consciência alterada. Têm rigorosos horários de entrada e saída. As pessoas têm de sair e de voltar cedo. São forçadas a passar o dia na rua. E, na maior parte das vezes, não têm privacidade no albergue. Mesmo assim os que existem não chegam para as encomendas. A Segurança Social recorre então a pensões, amiúde, de baixíssima qualidade.

"Aquelas pessoas querem viver numa casa, como as outras, mas precisam de algum apoio para isso", diz Freek Spinnewijn. Alargar o mercado social de arrendamento parece-lhe a melhor hipótese. "Em muitos países, o Estado e a Igreja e outras organizações têm inúmeras casas vazias."

Há uns meses, o diário britânico The Guardian fez as contas: na Europa existem umas 11 milhões de casas vazias e uns 4,1 milhões de sem-abrigo. Em Portugal a desproporção também é grande 4420 sem-abrigo e, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), 735 mil casas vazias.

O exemplo de Portugal pode ajudar a perceber o quão inalcançável pode ser uma casa. O preço das rendas permanece alto para quem recebe 179 euros de rendimento social de inserção ou 235 euros de pensão social, como já explicou ao PÚBLICO Henrique Pinto, director da Cais.

Sérgio Aires também faz a defesa das bolsas de habitação. Não a construção de bairros, modelo que criou não lugares por toda a Europa, mas a recuperação de casas situadas em ruas comuns, "com dignidade, a custos controlados". Na certeza de que tal não será solução para todos.

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