Esta música nunca existiu
A banda-sonora de uma fantasia, o som de um universo paralelo, o da Califórnia da década de 1970
não é o retrato de uma época, não é o som de uma cena, não é o enfoque definitivo sobre o que quer que seja. Compilação organizada pelo alemão Markus Liesenfeld (DJ Supermarkt), com um título tão engenhoso e apelativo que, só por ele, a edição fica desde logo justificada, é a banda-sonora de uma fantasia, o som de um universo paralelo. O da Califórnia da década de 1970, principalmente da sua segunda metade, criada por cantautores fartos da seriedade dos cantautores e com vontade de dançar. Criada por quem deixava a batalha contracultural de lado, vestia bons fatos (ou fatos foleiros de veraneio), pedia um daiquiri ao grumete no iate e seguia Pacífico fora com um easy-listening muito descontraído, passe o pleonasmo, a pautar a viagem.
Falamos de música que não teve reconhecimento ao seu tempo e que foi completamente esquecida pela história. Até que. Até que, no processo de eterno retorno da pop, este yatch-rock, começou a ser resgatado. Os Gayngs deram-lhe, via 10CC, a dimensão e legitimidade de instalação criada por um supergrupo. Ariel Pink tem-no como base para as mais diversas subversões e bem-vindas patifarias sónicas e Destroyer passou-lhe à tangente na sua última revolução estética. E agora Too Slow to Disco, que agrupa desde nomes muito célebres como Fleetwood Mac ou The Doobie Brothers, com canções secundárias, a casos de culto recente, como Ned Doheny, ou a gente esquecida pela história pop como Rupert Holmes e one hit wonders como os Alessi Brothers. Música criada num contexto de abundância da indústria e em que músicos, cantores e compositores procuravam dar um passo em frente, trocando a seriedade por delícia lúdica, e procurando retirar algo da soul e do funk que davam vida às suas noites de boémia.
Too Slow To Discoé, digamos, ostentação pré-Miami Vice. Música aburguesada a soltar a franga e a mostrar-se curiosa e atenta o suficiente para experimentar o que então modernos sintetizadores podiam oferecer às canções.
Get it up for love, de Ned Doheny, introduz-nos no cenário: produção cristalina, o som esvoaçante de um Moog, a voz de alguém que fora folky mas que cedera sem culpa à sedução do groove. Uma grande, grande canção. Tanto quanto a da despedida, de um Jan Hammer, nascido na República Checa, tornado músico de jazz rock nos Estados Unidos mas que, no
Don’t you knowaqui incluído (do álbum
Melodies) fez uma pausa: música planando sobre orquestração generosa e sintetizador futurista, a bateria a abrir espaço para que o órgão Rhodes brilhe com misteriosa graciosidade e Hammer cantando com uma voz quente e cheia, como se nos sussurrasse aos ouvidos.
Nesta realidade alternativa há funk acetinado, opulento e sensual (Deco lady, de Rupert Holmes), há um Browning Bryant que teve a sorte de ser produzido por Allen Toussaint, mestre de Nova Orleães, e de ter gravado com os Meters, lendas de Nova Orleães (Liverpool fool, portanto, só podia ser boa peça). Há duas canções descontextualizadas (Saturday in the park, dos Chicago, e I’ve got a thing about you baby, de Tony Joe White, são belíssimos pedaços de música, mas declaradamente folk, sem iates à vista) e uma pequena porção de foleirada: Mickey Denne And Ken Gold, em Let’s put our love back together, a quererem ser Stevie Wonder mas a chocarem de frente com uns Bee Gees xaroposos; os Pages, de onde nasceriam os Mr Mister, a destruir If I saw you again com a produção plástica que minaria os anos 1980 e guitarras tremendamente azeiteiras. Pequenos percalços nesta narrativa criada por Markus Liesenfeld.
Enquanto navegamos estas águas tépidas e muito azuis, pose sempre impecável, copo bem servido na mão, camisa aberta e penugem peitoral ao vento, pensamos que boa vida nunca fez mal a ninguém. Não fez aos Alessi Brothers que não se cansavam de experimentar com sintetizadores e coros vagamente celestiais enquanto impunham ritmo constante na pista de dança (Do you feel it); não fez a Matthew Larkin Cassell, que acabaria samplado por Madlib, cabeça genial do hip hop contemporâneo, ou a Don Brown e à sua luxuosa Shut the door (percussões, cordas, coros, solo de saxofone, tudo a que temos direito).
O mundo de Too Slow To Disco nunca existiu. Mas neste que é o primeiro volume de uma série que conhecerá sequência nos próximos tempos, soa estranhamente cativante. Podíamos passar umas férias muito longas em música assim. E guardaríamos para sempre Ned Doheny e o Jan Hammer Group.