Num tempo em que as promessas e as desilusões parecem disputar uma corrida sem fim à vista, um livro como "Experimentum Humanum - Civilção Tecnológica e Condição Humana", de Hermínio Martins, chega oportuno e necessário. Composto por vários artigos publicados em revistas científicas, alguns entretanto consideravelmente ampliados, compõe uma teoria crítica, desassombradamente crítica, da submissão da ciência à mercantilização, dos delírios das possibilidades tecnológicas, do tecnocentrismo. Ao olhar, sereno, ironicamente lúcido, deste professor emérito da Universidade de Oxford, antigo aluno de Karl Popper, nada passa desapercebido: da inteligência artificial às novas técnicas de reprodução, todos os futurismos são debatidos e escrutinados pelo racionalismo do humanista.
Para semelhante trabalho, Hermínio Martins convoca a sociologia e a filosofia da ciência e o inter-relacionamento destas com a economia e a tecnologia. Encontramos uma perspectiva interdisciplinar, avessa a solipsismos, que permite reexaminar toda uma literatura, subordinada ou associada às ciências sociais (Sociologia, Antropologia, História), naturais (Biologia) e físicas (Física, Química), fundamental para compreensão da nossa civilização tecnológica. Aliás, uma das maiores qualidades desta obra reside no facto de nos fazer olhar para o presente, iluminando (mesmo às expensas da nossa confortável bonomia) aquilo que XX deixou adormecido ou esquecido (a afinidade da técnica com os regimes autoritários, as experimentações científicas sobre os seres humanos, o eugenismo).
Aqueles confiantes na direcção actual da história da humanidade (mais ou menos tecnólatras, para utilizar uma expressão do autor) poderão ser levados a pensar que a obra de Hermínio Martins é fruto de uma deriva anti-progressista, eminentemente desconfiada dos avanços e benefícios da tecnologia ou da ciência. Que, enfim, a sua posição representa a de um conservador empedernido, que este "Experimentum Humanum" é, numa analogia forçada com a obra de Ortega Y Gasset, uma "Rebelião da Tecnologia". Pelo contrário: Hermínio Martins simpatiza com a visão Prometeica da técnica, ao serviço de fins humanos (como assim a concebiam Proudhon, Comte, ou Renouvier, autores que cita no Capítulo II - Tecnologia Modernidade Política), vê, embora sem ingenuidades (pois a visão prometeica leva à fáustica), no progresso tecnológico uma forma de prover o bem-estar material dos homens, de "mitigar as insuficiências e enfermidades da sua condição humana (pag. 20)". O que o inquieta, o que motiva a sua reflexão é o domínio crescente, disseminado, silencioso da "mercantilização e comercialização de toda vida" (pag 51.), da industrialização da ciência, da explosão de ignorância que acompanha a tão celebrada explosão de conhecimento.
Escreve no texto "Biologia e Política - Eugenismos de Ontem e de hoje": "Muito dos que partilhavam a visão de uma evolução consciente e dirigida do Homem em geral, visão particularmente importante a partir dos princípios do século XIX, veiculada pelo Positivismo, o evolucionismo e o Marxismo, pensavam em termos de uma solidariedade humana universal, solidariedade dos contemporâneos, solidariedade com as gerações anteriores (...). Não é o caso hoje." (pag. 420)O desencanto atento de Hermínio Martins advém do seu conhecimento profundo da História e da Filosofia da Tecnologia. Confronta-nos com a visão fáustica da técnica, como teorizada por Oswald Spengler, Heidegger e os engenheiros-filosófos de Weimar, e amplamente materializada pela Alemanha Nazi (a técnica ao serviço de uma vontade soberana); com a biomedecina enquanto arma da guerra científica (ilustrado com as práticas infames, na II Guerra Mundial, da Unidade 731 do cientista japonês Shiro Ishii), com a arrepiante missão do eugenismo, que até 1940 (incluindo em países com regimes democráticos) advogou e praticou a esterilização forçada dos incapazes, pobres e doentes.
É-nos revelado o lado obscuro, mefistofélico, da ciência (em muitos casos, ao longo do século XX, foram os cientistas, que tomaram a iniciativa de oferecer os seus serviços e descobertas aos militares), fomentado pela sua industrialização e comercialização, pelo entendimento da técnica e da fabricação como fins, como cultura. E o que tem - perguntarão - tal "descoberta" a ver com o presente? A tese de Hermínio Martins é a de que essa visão faústica da ciência (da ciência como tecnologia) não só sobreviveu, como permeia a nossa civilização: nas biotecnologias, na computação, na cibernética, na tecnomedicina, na criação de vida e inteligência artificiais, no desenvolvimento de novas técnicas de reprodução, na intensificação da tecnologia para resolver problemas económicos e sociais. Os efeitos, os custos, os males são diversos e conhecidos: nos ecossistemas, na saúde pública, na biodiversidade, na condição humana.
Então, como combater, resistir ao sublime e ao niilismo tecnológicos, ao monopólio da ciência sobre o poder espiritual, à anunciado vinda do pós-humano, à tentação do homem experimentar sobre si mesmo para criar um ser superior (que dispensará a sua existência humana, em carne e osso e a da biosfera). Numa sociedade de incertezas, em que o Código de Hipócrates corre o risco de ser suspenso (o eugenismo volta a ser defendido publicamente por cientistas) e em que a vida não é mais de um que uma informação veiculada por corpos orgânicos, Hermínio Martins propõe um humanismo cientifico, que reconhece a assimetria ente o bem e o mal, sustentado no altruísmo criativo, na solidariedade, no amor, na responsabilidade individual e colectiva para com as gerações do futuro e a natureza natural. São valores ultrapassados? Não, são valores perenes.