A revolução também passou por aqui

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Para onde is? estreou numa garagem na Praça José Fontana, e marcou o início da Comuna

Ficamos sentados, domingo à tarde, a ver as pessoas entrarem para um espectáculo no barracão cor-de-rosa da Praça de Espanha, em Lisboa, e recuamos 38 anos: até à noite em que o que restava do Colégio Alemão, rasgado a meio para a construção da Avenida Calouste Gulbenkian, foi tomado de assalto, ocupado durante a noite, encontrado sem chão, sem janelas nem electricidade. Na cabeça ressoa ainda uma frase: "Saudades apenas do futuro." Dois dias depois de João Mota no-la ter dito, repetidas vezes, cadeira posta em frente à janela do seu pequeno gabinete com vista para a Praça do Rossio, é disso que nos lembramos. É um gabinete demasiado pequeno para um director do Teatro Nacional D. Maria II, achamos. "Não é nada disto que importa". Conversamos sobre o que o levou ali, a esse lugar de poder: a ele que, diz, sempre foi contra-poder. "Estou na Comuna há 40 anos. Nunca ninguém me pediu para não ser da Comuna. Dizem-me que mando há 40 anos. Não sei se mando. Sou contra-poder. Fui-o sempre. É preciso muito cuidado. O poder corrompe as pessoas. O poder oprime. E eu não gosto disso".

É assim, com frases curtas, que se atropelam, que João Mota, 70 anos este ano, distingue o cargo que agora ocupa como director do Teatro Nacional D. Maria II do encenador que é - num momento em que tem em cena uma peça - Onde estavas quando criei o mundo?, monólogo de Artur Ribeiro para Manuela Couto - precisamente no D. Maria II, e outra - A Controvérsia de Valladolid, de Jean-Claude Carrière - a estrear na próxima terça, 25 de Abril no São Luiz. O mesmo momento em que a Comuna, a casa de que nunca deixou de ser director, faz 40 anos.

Conversa com vista para o passado, com alguém que diz só pensar no futuro. "Há coisas de que é bom não falar", e mais não diz, olhando para o gravador. "Não me interessa nada o passado. Só me interessa o hoje, porque tudo o que faço, faço-o porque foi o que aprendi." É por isso que encena uma peça como A Controvérsia de Valladolid, escrita em 1992, que opõe dois homens com o mesmo Deus mas diferentes modos de ver a sua humanidade. Serão ou não os índios da América do Sul feitos à semelhança de Deus e, por isso, cristianizáveis, ou deverão ser escravos a vida toda às mãos dos conquistadores espanhóis? Mota resiste à comparação directa entre aquele e este tempo. "Estamos sempre a falar deste tempo, do tempo em que vivemos. A Europa dos ricos e a dos pobres, países a tomarem conta de outros e dentro de cada país há escravos, e nós mesmos, da mesma identidade, somos escravos. Veja quem tem e não tem dinheiro..."

É por isso que faz teatro. Foi por isso - explicou-o à revista espanhola Primer Acto no início dos anos 1970 - que voltou de Paris, das ruas do Maio de 68: "Para responder à morte com a vida, para transgredir. Para alertar. Para inquietar. Neste lugar de morte que é o teatro, porque ele morre todos os dias; neste lugar de vida, de vitalidade, de energia". Hoje é "um militante do quotidiano": "Enquanto não soubermos morrer e renascer todos os dias, não vamos saber viver. É reflectindo sobre o passado que vamos preparar o futuro". Daqui a 40 anos não vai cá estar e não é a Comuna que o preocupa. "É o país. Para onde vamos?", pergunta, como perguntava a primeira peça da Comuna, numa garagem na Praça José Fontana: Para onde is?

O jornalista Rodrigues da Silva contou no Jornal de Letras a experiência: "Passava-se tudo numa garagem ali mesmo em frente ao Liceu Camões, custavam os bilhetes 20 paus, paguei-os com aquele imenso gozo que na altura a gente tinha por achar que contribuía ainda que assim (e era, afinal, tão pouco), para subverter a merda do país em que vivíamos."

"Vinte proletários escudos" escreveu Eugénia Vasques no livro dos 25 anos da companhia, editado em 1997, para entrar numa "salinha, com uma lotação máxima de 150 lugares, [que] custava 30 contos mensais", e que havia sido alugada, imagine-se a ironia, a Vasco Morgado, empresário de todos os costados de todo (ou quase) o teatro português que então respondia por esse nome". Outro espectador, António Reis, recorda a peça "não como mais um espectáculo de teatro, mas como [a sua] primeira ‘missa laica', carregada de ritualismo subversivo, em que [participou] como comungante, mais do que como espectador".

"O que é que isso interessa?", volta a perguntar-nos João Mota. "Porque é que têm que saber onde fomos, o que fizemos? O tempo passa e o nosso testemunho só serve para que coisas novas possam aparecer". Mas a história da Comuna, do seu início, é a história de um país a preparar-se para mudar. E a história do teatro como agente da transformação. Era o fim dos anos 1960, princípio da década de 1970, e começavam a surgir diferentes grupos: Teatro da Cornucópia (1973), Teatro do Nosso Tempo (1973), Grupo 4 (1967; em 1982 daria origem ao Teatro Aberto), Grupo de Teatro de Campolide (1972; depois transformar-se-ia na Companhia de Teatro de Almada), Os Cómicos (1975), A Barraca (1975). Vinham na senda de experiências como o Teatro Experimental de Cascais (1964) e o Teatro Estúdio de Lisboa (1964), e de grupos que se faziam e desfaziam, que surgiam de grupos universitários, após workshops com encenadores estrangeiros, em assumida dissidência com outros grupos...

1 de Maio de 1972 é a data inscrita no manifesto que os fundadores da Comuna (João Mota, Carlos Paulo, Manuela de Freitas, Melim Teixeira e Francisco Pestana) escreveram depois da experiência com Os Bonecreiros, em 1971, de onde sairiam. Diziam: "Fomos impotentes para resolver os problemas que tivemos? Fomos incapazes de triunfar sobre as divergências que nos separaram? Não somos heróis." E, depois, o lema que ainda hoje a companhia traz cosido ao peito: "Não lamentamos nada. Não acariciamos cadáveres, mansamente, à portuguesa". A Comuna, precisaria o crítico Carlos Porto em Dez anos de teatro e cinema em Portugal: 1974-1984, "obedecia a uma prática ritualista", com actores interessados "numa prática teatral que tinha mais a ver com [Antonin] Artaud, [Jerzy] Grotowski" e que viria a materializar-se em "duas linhas tangentes (...): linha burlesca e satírica e poética ou dramática". Ao longo dos anos, deram espaço aos autores portugueses, cruzaram os dramas clássicos com o café-concerto, formalizaram a criação colectiva, tornaram-se a casa de tantas outras companhias. Hoje, a Comuna é uma dos grupos com mais apoios do Estado. Mas continua a fazer contas.

Como os tempos foram

A história da Comuna começou antes do assalto ao barracão da Praça de Espanha: nuns estúdios da Gulbenkian onde Mota, Freitas e outros haviam rebolado pelo chão, maldiziam os colegas do D. Maria II de Amélia Rey-Colaço, num curso do argentino Adolfo Gutkin. Começavam a respirar-se outros tempos e o teatro, percebeu-se depois, antecedia a revolução de 1974.

Quando finalmente chegaram à Praça de Espanha, conquistada a liberdade, num país por fazer, continuaram os problemas. "Mas essas coisas não interessam. A Comuna não existiria ao fim de 40 anos se eu não tivesse saudades do futuro". E em discurso directo, quase sem cortes: "Fomos acusados de fazer coisas com crianças, para ver se nos tiravam a Comuna... Não lhe vou dizer quem... Apareceram-nos lá a Maria Velho da Costa e a Isabel da Nóbrega, pois: ‘passou-se isto e isto e isto'... Eh pá, como os tempos são... quiseram ocupar-nos a casa, tínhamos guardas lá... Quando foi a eleição do Eanes, que morreu o Sá Carneiro, ameaçaram-nos de bombas; eu, o Carlos Paulo, outros, passámos por coisas que não vos passam pela cabeça... e sempre para amanhã. Os chauffeurs de táxi recusavam-se a levar-nos à Comuna. Deixavam-nos no início da Praça de Espanha. Chamavam-nos de comunistas... Eu nunca fui comunista. Sou de esquerda e hei-de morrer de esquerda, mas nunca fui comunista". Há 40 anos a "ter dúvidas". "E a errar. Eu fico aflito quando as pessoas sabem tudo."

Onde estavas quando criei o mundo?, de Artur Ribeiro, é sobre dúvidas e questões. A primeira delas sobre a eutanásia. Uma mulher, em frente a um colectivo de juízes que decide se deve ser condenada pela morte do seu filho. Texto para uma actriz formada na Comuna, Manuela Couto, que Mota trata por menina. Só não é um regresso a casa porque, tantos anos depois de ter saído, "foi como se tivesse guardado tudo numa caixa e plof!, saiu". Manuela Couto lembra como Mota, "o professor que se distinguia", "não impunha marcações de cena: "Respeita os processos, e quando não gosta de alguma coisa espera um dia ou dois para ver se se vai repetir. Deixa uma margem enorme de criação para os actores". "Ajudá-los a ser pessoas" é como ele define o que faz. "Antes do 25 de Abril era proibido errar. Mas hoje continuar a sentir que é proibido errar é um erro. E é mentira."

Nas memórias de Manuela de Freitas, sobre as saídas que a companhia foi fazendo - a Comuna é um dos grupos mais viajados do teatro independente português, com presenças nos mais importantes festivais -, a actriz reflecte sobre um caminho feito "conforme a intransigência e a resistência, conforme a paixão ou a falta dela". "Tudo quando em nós era conceito, memória, ou sonho, ou medo, feito teatro vivo, no corpo, no objecto, na palavra. Feito. Com a mesma profundidade e o mesmo rigor para os três mil do pavilhão da Colômbia, para os oitocentos do celeiro de Trancoso, para os quinhentos do palácio de Florença, para os duzentos da eira de Pinhel, para os mil da Ópera de Stuttgart, para os cento e oitenta diários na sede emprestada, de paredes húmidas e vigiadas pela censura fascista, ou na outra, depois, conquistada por nós e aberta por nós ao teatro, na cidade liberdade. A mesma resposta, porque sempre outra, porque sempre outro desafio".

"Quem é que se lembra disso hoje?", questiona João Mota. Há quem venha, às vezes, conta ele, lembrá-lo de um espectáculo que viu. "Homens feitos, advogados, mulheres que já são mães e levam os seus filhos" vêm perguntar-lhe se ele tem noção do importante que foi para eles terem ido ali fazer teatro, ver teatro. E ele volta a dizer que "o tempo passa" e que "a obra nunca está feita".

"Pergunta-me se estou cansado? Como qualquer pessoa. Às vezes dizem-me que pareço triste. Mas só estou cansado por fora". E então perguntamos-lhe porque aceitou ele ser director do TNDMII. Em que é que ainda acredita? "Não é um problema de acreditar. O casaco está ali. Conhecem o meu feitio. Eu não tenho a ver com isto. Não queria vir para o Teatro Nacional. Aceitei porque..." , e interrompe-se. Tentamos: porque em momentos de crise se espera que aquelas que são as nossas referências tomem a dianteira? "Um exemplo e uma referência podem ser um mau exemplo e uma má referência", responde. "Fiquei com medo de que viesse para aqui um tecnocrata, pronto. Fiquei com medo. Se é para isso, é melhor ser eu. Obviamente".

É isso que se espera de uma referência em alturas destas. Ao longo dos anos, as referências foram sendo convidadas, todas em alturas diferentes, e foram dizendo que não, ao mesmo tempo que construíam um discurso sobre o papel do Teatro Nacional. Foram todos dizendo que não... "porque não interessa nada estar no Teatro Nacional". "A Comuna fica a perder. Há coisas que tornam tudo mais difícil". Onde estavas quando criei o mundo? Tinha sido pensada para uma das salas do barracão da Praça de Espanha. A Controvérsia de Valladolid vai para lá quando acabar a carreira de duas semanas no São Luiz. De 31 para 1 de Maio há festa, com sardinhas e amigos, repetindo o ritual que todas as quartas-feiras os junta à mesma mesa, um almoço com toda a equipa.

"Temos de ter alguma coisa em comum. Vai a uma estação de comboios e o que têm as pessoas em comum? Têm o ponto de partida. Vai a um restaurante e o que têm as pessoas em comum? A necessidade de comer. Vai a um teatro e o que têm as pessoas em comum?" Espera por uma resposta. Esperamos pela resposta. E depois João Mota diz: "Nada. É isso que me assusta".

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